ECONOMIA

Orçamento de guerra retira recursos das áreas sociais

Auditoria Cidadã da Dívida aponta contradições na PEC emergencial de enfrentamento da pandemia de covid-19 aprovada na Câmara e em votação no Senado
Por Gilson Camargo / Publicado em 6 de abril de 2020

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O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, fala à empresários da indústria, durante encontro sobre os ‘Diálogos da Indústria com o Congresso sobre os impactos das reformas estruturantes para o setor industrial’, na sede da Firjan

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Aprovada em tempo recorde pelo plenário da Câmara dos Deputados em duas votações virtuais na sexta-feira, 3, a Proposta de Emenda à Constituição 10/2020 do “orçamento de guerra” foi incluído na pauta do Senado para ir a plenário no decorrer desta semana.

De autoria do presidente da Câmara, Rodrigo Maia e de outros nove deputados de vários partidos, a matéria não deve encontrar grandes resistências entre senadores. Apresentada no calor da disputa política em torno do combate à pandemia de coronavírus, o projeto permite a separação do orçamento e dos gastos realizados pelo governo para enfrentamento da crise de saúde do orçamento geral da União.

As regras terão vigência durante o estado de calamidade pública, ou seja, até 31 de dezembro deste ano, e convalidam os atos de gestão praticados desde 20 de março. A intenção da proposta é criar um regime extraordinário para facilitar a execução do orçamento relacionado às medidas emergenciais, afastando possíveis problemas jurídicos para os servidores que processam as decisões sobre a execução orçamentária.

Se aprovado, o “orçamento de guerra” deverá deixar muitas vítimas pelo caminho, a começar pelas áreas sociais, que por meio de pedaladas fiscais legalizadas deverão contribuir com a maior fatia dos recursos que serão drenados para o combate ao coronavírus. Apesar de levantar o teto de gastos, instituído pela PEC da morte em 2019, na prática, a estratégia de “guerra” aprovada pelos deputados atira para matar contra a Lei de Responsabilidade Fiscal e libera o governo para, além das pedaladas fiscais, gastar o que quiser com o que bem entender – no caso, socorrer a iniciativa privada e os bancos com dinheiro público.

Em nota técnica divulgada logo após o protocolo da PEC 10/2020 na Câmara, a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) aponta que o texto original da proposta prevê a transferência de recursos da conta única do Tesouro Nacional, referentes a receitas vinculadas às áreas sociais para atender a calamidade. Ao mesmo tempo, não permite o acesso a centenas de bilhões que só podem ser destinados para o pagamento da dívida, a exemplo dos R$ 162 bilhões de lucros do Banco Central, R$ 81 bilhões recebidos por juros e amortizações de estados, municípios e BNDES, R$ 13 bilhões referentes a lucros das estatais e R$ 505 bilhões obtidos por meio da emissão excessiva de títulos da dívida no passado.

Fattorelli: “O novo pacote de ajuda aos bancos compromete recursos do orçamento público de forma desastrosa e gera dívida pública sem limite, tudo para engordar ainda mais o lucro dos bancos"

Foto: Ana Volpe/Agência Senado

Fattorelli: “O novo pacote de ajuda aos bancos compromete recursos do orçamento público de forma desastrosa e gera dívida pública sem limite, tudo para engordar ainda mais o lucro dos bancos”

Foto: Ana Volpe/Agência Senado

AJUDA AOS BANCOS – A mudança na Constituição foi aprovada a jato para beneficiar os mesmos bancos que há anos já vêm acumulando bilhões de lucro, aponta Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida.

“O novo pacote de ajuda aos bancos compromete recursos do orçamento público de forma desastrosa e gera dívida pública sem limite, tudo para engordar ainda mais o lucro dos bancos. Agora, a responsabilidade do Senado é enorme, pois essa armadilha não pode fazer parte da Constituição Federal”, alerta.

A ex-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal destaca que, o pretexto para a aprovação do “orçamento paralelo” é socorrer empresas durante a crise do coronavírus, mas não é isso que está escrito no inciso nono da nova redação dada ao artigo 115 que a PEC 10/2020 introduz ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição brasileira. O dispositivo estabelece que “o Banco Central do Brasil, limitado ao enfrentamento da referida calamidade, e com vigência e efeitos restritos ao período de duração desta, fica autorizado a comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional, e direito creditório e títulos privados de créditos em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos”.

“Imaginem um funcionário do Banco Central ao telefone, comprando bilhões em papéis podres. Sem contrato escrito, sem estudo sobre previsão orçamentária, ou sobre o tamanho do dano ao erário que tal operação pode representar. Seria por isso também que a MP 930 torna o pessoal do Banco Central inatingível pela lei de improbidade administrativa?”

Para Maria Lúcia, “é altamente temerária” a ideia de atuação do Banco Central em mercados secundários, o mercado de balcão que envolve a negociação por telefone, nenhuma regulação, nenhuma supervisão, sem referências de preços dos ativos como acontece numa bolsa de valores, onde existe transparência e consolidação das melhores ofertas de compra e de venda.

Em momentos de crise, alerta, essa falta de referência fica ainda mais grave. “Imaginem um funcionário do Banco Central ao telefone, comprando bilhões em papéis podres. Sem contrato escrito, sem estudo sobre previsão orçamentária, ou sobre o tamanho do dano ao erário que tal operação pode representar. Seria por isso também que a MP 930 torna o pessoal do Banco Central inatingível pela lei de improbidade administrativa?”, desconfia.

Banco Central: especulação financeira com dinheiro público

"O orçamento paralelo transforma dívidas privadas em públicas, por meio de operação em que um banco intermediário é quem vai ganhar nas duas pontas do negócio", alerta a coordenadora da ACD em artigo assinado com o economista Eduardo Moreira

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“O orçamento paralelo transforma dívidas privadas em públicas, por meio de operação em que um banco intermediário é quem vai ganhar nas duas pontas do negócio”, alerta a coordenadora da ACD em artigo assinado com o economista Eduardo Moreira

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Além de autorizar negociação de títulos da dívida pública, o que já é previsto no artigo 164 da Constituição, o artigo 115 abre as portas para a atuação do Banco Central em mercados secundários, inclusive internacionais que operam em dólar. “O Banco Central poderá utilizar as reservas internacionais para recomprar títulos públicos das mesas de tesouraria de grandes bancos e especuladores no exterior, modificando completamente sua função original que é de proteção do real e da economia brasileira. Na prática, o BC junta-se aos especuladores utilizando dinheiro público para isso. O que pode custar bilhões aos cofres públicos que se reverterão em lucros para os bancos.

Em outro trecho, o parágrafo 9º é ainda mais grave, pois coloca o BC como um receptáculo de papéis podres, sem limite ou controle algum, beneficiando os bancos que adquiriram tais papéis no mercado financeiro, destaca. A operação será bancada com 25% de recursos do Tesouro Nacional no ato da compra, como prevê o inciso 10º do mesmo artigo 115, porém, ao final, todo o rombo recairá sobre o Tesouro, que arca com todos os prejuízos do Banco Central, conforme estabelece o artigo 7º da Lei de Responsabilidade Fiscal. “Esse rombo pode custar trilhões, diante do grande volume de papéis podres existentes no mercado e a completa falta de restrição ou limite no texto da PEC 10, que abre a possibilidade dessa temerária compra pelo Banco Central envolver até papéis de bancos nacionais e estrangeiros tecnicamente quebrados”, ressalta.

PAPÉIS PODRES – Na prática, o orçamento paralelo transforma dívidas privadas em públicas, por meio de operação em que um banco intermediário é quem vai ganhar nas duas pontas do negócio, afirma Fattorelli em artigo publicado em coautoria com o economista Eduardo Moreira. Segundo os autores, o banco intermediário lucra ao adquirir, a um custo muito baixo devido à desvalorização de papéis provocada pela crise, os títulos de crédito de empresas em dificuldade. “E também ganhará o que quiser em cima do Banco Central, ao qual poderá vender esses títulos podres pelo preço que bem entender, pois no mercado secundário não há referência, controle ou supervisão alguma”, constatam. O socorro às empresas não passa de canto da sereia, pois quem lucra são os bancos privados que atravessam as operações. “As empresas em dificuldade não receberão um tostão sequer, como diz a propaganda dos que querem aprovar essa aberração. Se esta for realmente a intenção, o governo terá que enviar outro texto ao Congresso, explicitando a ajuda diretamente a empresas brasileiras em dificuldade, exigindo inclusive que as empresas beneficiadas garantam os empregos de seus funcionários e se comprometa a não demiti-los”, desafia o artigo.

Risco público, lucro privado

São os bancos que assumem o risco da especulação com títulos públicos ou privados. Normalmente, a instituição financeira adquire papéis desvalorizados e aposta na ocorrência de uma reação que lhes permitiria ficar com todo o lucro. Quando isso não acontece, cabe ao banco arcar com a perda decorrente de sua atividade especulativa. A pretexto de socorrer empresas em crise por causa da pandemia, a PEC do “orçamento de guerra” tira a corda do pescoço dos bancos privados. Isso porque o inciso 9º do artigo 115 “joga para a conta do Tesouro Nacional, ou seja, onera o orçamento público e cria dívida pública, para que o Banco Central assuma todos os riscos e compre a papelada podre adquirida por bancos que atuaram como especuladores”, discorrem os autores. “Assumir os prejuízos dos especuladores das mesas de tesouraria, sem contrapartida alguma, sem ajudar as empresas em dificuldade donas dos títulos e endividando o Estado para depois cobrar a conta da maioria pobre do povo brasileiro é um dos maiores absurdos já propostos neste que é o país mais desigual do mundo e o lugar do planeta onde os bancos têm maior rentabilidade”, arremata Maria Lúcia.

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