ECONOMIA

Retomada da industrialização é estratégica para o Brasil

ENTREVISTA | PAULO KLIASS
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 14 de março de 2022

Retomada da industrialização é estratégica para o Brasil - Entrevista com Paulo Kliass

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Na conversa que antecedeu esta entrevista, o economista Paulo Kliass foi taxativo: “Não basta a gente ter que se contentar em ter perdido indústrias e investir só no agronegócio, na economia primária exportadora ou na área de serviços de baixa qualidade. Temos que continuar o caminho da industrialização, porque ela, a indústria, é que gera produtos de valor agregado cada vez mais concreto”.

Ao afirmar ser a retomada da industrialização no Brasil uma das principais estratégias para recuperar o que chama de tempo perdido, Kliass – que é doutor e pós-doutor em Economia pelas consagradas Université Paris 10 (Nanterre) e Université Paris 13 (Sorbonne Paris Nord) – explica que a nossa desindustrialização foi correspondida por um crescimento expressivo do agronegócio, e que isso nos torna cada vez mais dependentes e reféns de uma economia primária exportadora.

Em suas palavras, trata-se de processos que se inserem na nova divisão neocolonial, com nações do terceiro mundo, exportando commodities e importando produtos manufaturados. “Essa era a história do Brasil nos séculos 16, 17, 18, que, agora, está se repetindo de uma forma moderna”, diz. Aponta que, assim, o país perde renda para o resto do mundo.

Graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV/SP), Kliass passou a integrar, em 1997, a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculada ao então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, o qual foi extinto pelo presidente Jair Bolsonaro em 1º de janeiro de 2019.

Extra Classe – A partir da visão desenvolvimentista de Getulio Vargas, o Brasil lançou bases concretas para sua industrialização. Ela atingiu o ápice nas décadas de 1970 e 1980. Desde então, apesar de um ensaio de retomada nos governos Lula, só vem decaindo. Como isso se deu?
Paulo Kliass – A nossa desindustrialização guarda muito a relação com um processo de internacionalização da nossa economia, que começou com uma forma mais acentuada a partir da década de 1990, com o governo Collor. Aquela coisa da abertura desenfreada e irresponsável; uma coisa de ficar elogiando tudo o que vinha de fora, porque o que “vem de fora é necessariamente melhor do que é produzido internamente”. Se deixou de produzir internamente para importar o produzido lá fora. Esse é um pouco o retrato do que foi ocorrendo ao longo das últimas décadas desde então.

EC – Você chamou a abertura econômica de Collor como irresponsável. Por quê?
Kliass – Abriu-se completamente nossa economia para o comércio internacional sem estabelecer nenhuma estratégia do ponto de vista de um projeto de desenvolvimento. Normalmente, quando os países fazem algum tipo de abertura, eles se protegem nos setores estratégicos; eles protegem os setores onde a competitividade não está tão madura a ponto de conseguir encarar uma concorrência internacional. Veja, vai tentar exportar produtos agrícolas que não sejam soja e trigo para a União Europeia. Não consegue! Por quê? Os países europeus protegem os seus agricultores. Vai tentar exportar produtos agrícolas que não sejam essas commodities para setores sensíveis e estratégicos nos Estados Unidos. Não consegue. Porque o Estado norte-americano também protege os seus agricultores. No caso do Brasil, é exatamente o oposto. Essa loucura de incorporar a ideologia neoliberal faz com que as próprias elites brasileiras trabalhem de uma certa maneira contra os interesses nacionais e, no limite, contra seus próprios interesses.

EC – Como o país incorporou esta ideologia neoliberal?
Kliass – A gente também precisa pensar do ponto de vista do contexto histórico. Essas últimas três décadas a que a gente se refere, a partir da década de 1980, 1990 em especial, foram décadas em que, no mundo capitalista e no Brasil em particular, houve uma hegemonia do chamado paradigma neoliberal. Ele significava, entre outras coisas, além de privatizações, a busca do Estado Mínimo. A ideia de que qualquer política pública, qualquer política econômica, qualquer política industrial era sinônimo de palavrão. Tudo o que pudesse dar uma ideia de algum grau de presença do Estado, seja na produção ou na regulamentação apenas da economia, era malvista. Por exemplo, política industrial: vamos estimular setores da indústria que o Brasil possa eventualmente ser um parceiro importante no futuro. Isso não se fez. Ficou tudo deixado ao Deus-dará, as chamadas forças livres de mercado, onde o capital privado tem por interesse o curto prazo e o lucro máximo. Assim, qualquer projeto de país se perde. Foi exatamente o que aconteceu no Brasil.

EC – O resultado concreto?
Kliass – A gente foi perdendo capacidade internacional e foi perdendo capacidade nacional. Isso significou o sucateamento da indústria brasileira. A gente não apenas não se modernizou para alcançar o que se fazia na vanguarda da economia global; a gente retroagiu no parque industrial antigo. Muito se fala sobre a saída da Ford. É impactante, é negativo, são empregos, mas vamos lembrar que a indústria automobilística é uma coisa do passado; não é uma coisa do futuro. Ou seja, mesmo a coisa do passado, a gente está perdendo. O Brasil voltou na história! Ele retrocedeu para ser uma economia primária exportadora. O país se especializou, com base na importância do agronegócio, em ser exportador de soja, de trigo, de cana de açúcar, de carnes. Isso é um círculo que se perpetua. Tem que se ter um momento em que se rompa com isso e diga: não, tudo bem, o agronegócio é importante, gera divisas porque exporta, mas ele não pode ser o foco da nossa atividade.

EC – Por quê?
Kliass – Por duas razões. Primeiro, como a gente no economês diz, ter preocupação com o processo de agregação de valor, que vem através da indústria. O outro aspecto relevante é que o campo deve ser primordialmente voltado para produzir alimento para a população brasileira. Essa é a prioridade. A gente vive uma contradição. Somos um país onde cada vez mais gente está passando fome, que não consegue atender às necessidades mínimas de sobrevivência, ao mesmo tempo que se especializa em ter vastas superfícies do seu território destinado à exportação de commodities para o resto do mundo. A gente produz soja para engordar o gado, o rebanho de fora do Brasil. Isso é uma loucura.

 EC – O Brasil se tornou escravo do agronegócio?
Kliass – Lógico! Bem, não é que o Brasil se tornou escravo; eu diria que o Brasil ficou dependente do agronegócio. Mas em um modelo que tem uma racionalidade e uma intenção política por trás. A gente está em algumas décadas no que eu chamo de desenho neocolonial da divisão internacional do trabalho. Assim como tinha a divisão internacional do trabalho quando o Brasil era colônia, no Império, ou logo nos primeiros anos da República em que a gente exportava produtos de origem agrícola, primeiro a cana de açúcar, depois o café. Agora, a gente está retroagindo. Em vez de esquecer esse período e utilizar a atividade agrícola como suporte, ela passou a ser o centro da nossa economia. Veja que não somos um país pequeno. Somos um país de dimensão continental, com biomas diversos, com uma população expressiva e que tem todas as condições de ser autônomo em seu projeto de desenvolvimento. Mas, não! Abrimos mão disso para ficarmos, como você disse, escravos e eu, dependente, do agronegócio.

EC – Além desse pensamento neoliberal que você disse ter contribuído para a ausência de políticas públicas que dessem amparo à nossa indústria, o que mais contribuiu para a decadência do setor?
Kliass – Outro elemento, que é localizado, é a política cambial. Esse período que estamos falando foi marcado por processos de valorização da moeda brasileira. A política do tripé macroeconômico fez com que a taxa de juros interna, a Selic, fosse muito elevada ao longo dessas três décadas. O Brasil se tornou o paraíso da especulação financeira internacional para atrair recursos. Só que não foram recursos produtivos. Foram recursos para o mercado financeiro. Isso fez com que o Real, deixado à livre força do mercado, ficasse muito valorizado. Real valorizado significa o quê? Baixa capacidade de concorrência com os preços internacionais. Para exportar, por um lado, e facilidade para importar, por outro. Era uma importação indiscriminada. Principalmente para produtos de origem asiática, especialmente chineses.

EC – A industrialização do país não poderia ser de interesse do próprio agronegócio, ou há uma disputa aí de recursos públicos?
Kliass – Essa é uma boa pergunta. Se você pensar, abstraindo a realidade concreta das forças políticas e das forças econômicas, deveria obviamente interessar. Qualquer setor das classes dominantes brasileiras deveria ter em conta que, para vender, para fazer negócios, é preciso ter um país com renda interna para consumir. Isso é o óbvio. Deveria ter apoio a processos de redistribuição de renda, apoio à redução da miséria, à redução da pobreza. Isso significa programas públicos. Deveria, sim, ter apoio também a projetos em que se tivessem outros setores operando para criar condições no Brasil de um ciclo de crescimento virtuoso. Como você falou, políticas de subsídios. Mas o que acontece? O agronegócio, não apenas ele, setores das elites econômicas em geral acabam pensando de uma forma mesquinha, no curto prazo e no seu próprio interesse. Então, “eu, agronegócio, quero todas as vantagens do Estado para a minha atividade e eu boicoto a presença do Estado, do orçamento, para auxiliar outros setores da economia”.  O que tem, como agravante nesse caso, é que o agronegócio, exatamente por estar só pensando na exportação, acaba pouco ligando para a realidade interna. De como estão as condições de vida e de consumo da população brasileira. Isso também, ao médio e longo prazo, é um tiro no pé.

EC – Um exemplo…
Kliass – Dá para ficar no próprio campo. A agricultura familiar, por exemplo, que produz mais de 70% dos alimentos que vão para a mesa do povo brasileiro. A agricultura familiar precisa ser muito apoiada, ao contrário do que o governo tem feito ao longo dos últimos anos. Essa falta de um pensamento mais estruturado acaba fazendo do Brasil uma república das bananas, com todas as consequências graves do ponto de vista social e político. Se quisermos ser um país do futuro, mais civilizado, com menos desigualdades, com menos concentração de renda, a gente tem que abraçar um projeto que seja de integração do conjunto dos setores que hoje estão marginalizados.

Retomada da industrialização é estratégica para o Brasil - Entrevista com Paulo Kliass

Foto: Jane de Araújo/ Agência Senado

Foto: Jane de Araújo/ Agência Senado

“Essa loucura de incorporar a ideologia neoliberal faz com que as próprias elites brasileiras trabalhem, de uma certa maneira, contra os interesses nacionais e, no limite, contra seus próprios interesses.”

EC – O Brasil adotou uma estratégia de reduzir o refino de petróleo cru internamente e importar derivados, como gasolina e óleo diesel. Qual é a lógica, sendo o Brasil um país autossuficiente de petróleo?
Kliass – Se tem uma lógica, é uma lógica irracional. Mas esse exemplo é muito cristalino para a gente entender como acontece, na prática, o processo de desindustrialização. O Brasil atingiu em 2006 a autossuficiência de petróleo porque vinha em uma crescente descoberta de novas reservas e vinha em uma crescente capacidade instalada de refino da Petrobras, por suas várias refinarias espalhadas pelo país. O que estava acontecendo era o que qualquer projeto racional de país pudesse desejar. Energia é fundamental e a gente conseguiu explorar petróleo e produzir seus derivados.

EC – Aquela história de agregar valor ao produto in natura?
Kliass – Sim. Ninguém quer petróleo, a gente quer petróleo transformado em gasolina, óleo diesel. O governo, já na época do Michel Temer, inverteu a lógica. Pegaram um discurso oportunista baseado nos escândalos da Lava Jato, com a Petrobras na berlinda, sendo acusada, e promoveram uma verdadeira destruição da capacidade industrial do nosso complexo petrolífero. Adotaram, de novo, uma regra de livre mercado que é suicida, que é antinacional; um crime de lesa pátria. Se reduz a capacidade de refino, que é onde tem a geração de valor agregado, e passa a importar os produtos refinados do exterior. Transfere renda para o exterior e se especializa em exportar óleo bruto. Uma loucura! O Brasil teria todas as condições de fazer a transformação do seu petróleo aqui dentro e garantir combustíveis de alta qualidade e mais em conta, se não fosse esse discurso anti-Estado que eu chamo de liberaloide porque nem liberal é.

EC – Então, poderíamos dizer que o que foi feito nos últimos anos seria uma espécie de síntese didática da nossa desindustrialização?
Kliass – Olha que ainda são indústrias do atraso, do passado, porque daqui a 30 anos, isso daí vai estar meio que sucateado. Já estamos na Indústria 4.0. Já se fala da 5.0. Mas ela ainda é importante hoje. Qualquer país capitalista do mundo sabe que sua área petrolífera é estratégica e a protege. Felizmente, como a Petrobras não foi privatizada, apesar de eles estarem tentando vender umas refinarias, a capacidade instalada ainda está preparada para uma retomada. Nesse caso, basta vontade política para reverter. É assim: “Olha, acabou. A política de preços da Petrobras vai mudar. A gente tem condições de estabelecer preço aqui dentro”. Temos que retomar a capacidade de refino, é óbvio. Isso significa, de alguma maneira, dar norte de reindustrialização.

EC – Como partir da desindustrialização ao resgate da indústria nacional?
Kliass – Se criam estímulos de demanda interna em um setor que é bastante importante para toda uma cadeia de geração de valor. A Petrobras, por exemplo, tem condições de estabelecer uma política de compras. Eles (governo federal) acabaram também. O chamado conteúdo nacional. Se for fazer uma nova plataforma, então deve-se exigir que 90% dos componentes sejam produzidos no Brasil.

EC – Isso, de certa forma, foi feito nos governos do Lula?
Kliass – Exatamente. Além das plataformas, toda a indústria naval que estava envolvida. Seja por um lado ou por outro, você importa e exporta por frota naval. O Brasil tinha todas as condições nos seus estaleiros de criar uma demanda a partir de um estímulo de compras governamentais. E isso foi também totalmente colocado como uma coisa a ser evitada. Agora, se o Brasil perdeu essa capacidade por causa de decisões políticas, tem toda a capacidade de recuperar também.

EC – Você falou das indústrias 4.0 e 5.0. Como viu a iniciativa do governo Bolsonaro de fazer a liquidação da Ceitec, única empresa produtora de semicondutores da América Latina?

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A seguir, trecho complementar exclusivo para leitura on-line:

 

Foto: Jeferson Rudy/Agência Senado

Foto: Jeferson Rudy/Agência Senado

“Somos um país onde cada vez mais gente está passando fome, que não consegue atender às necessidades mínimas de sobrevivência, ao mesmo tempo que se especializa em ter vastas superfícies do seu território destinado à exportação de comoditties para o resto do mundo.”

Kliass – Esse é um dos muitos escândalos das tentativas de privatização. O Paulo Guedes, quando, na época da campanha do candidato Bolsonaro, dizia que ia privatizar todas as empresas estatais do Brasil. Não ia sobrar nenhuma. Para além da bravata, isso representa, de uma forma muito clara, o que uma parte da elite ligada ao financismo, como eu chamo, pensa o país. Ela pensa um Brasil como o paraíso das forças livres de mercado. O Estado tem que ser zero. Tem que ser mínimo. Ele (Guedes) privatizou áreas importantes da Petrobras, está tentando privatizar a Eletrobras e, como não conseguiu privatizar a Ceitec, partiu para a liquidação. Um absurdo.

EC – Qual é a dimensão desse ocorrido?
Kliass – Veja o que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos. Eles oferecem para o mundo todas aquelas coisas das empresas do Vale do Silício, aqueles grandes conglomerados. Nasceram como? Se vangloriam de terem nascido em garagens, em quintais, que começaram pequenas, que cresceram na meritocracia, pela competência dos seus donos. Só que, na verdade, não é bem assim, não. Tudo aquilo começou com um projeto de demandas públicas. Foram a Nasa e os setores estratégicos vinculados setor militar dos Estados Unidos que ofereceram recursos públicos a fundo perdido para estimular, há 30, 40 anos atrás, áreas que seriam de vanguarda tecnológica. Hoje, essas empresas cresceram, se constituíram, se multiplicaram, e são gigantes no mundo. Mas, na origem, tem recurso público, sim. No caso da Ceitec, seria uma situação parecida. A iniciativa foi pública, o governo federal, em um certo momento, foi convencido de que essa área da microeletrônica é importante e investiu um pouco. Deveria dar uma continuidade. O problema é que isso foi boicotado por outras empresas do setor que não queriam ter justamente a presença do Estado na economia numa área estratégica.

 

 

 

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