ECONOMIA

Lítio: “ouro branco” é fundamental para o futuro de uma Bolívia quase sem gás

Com as maiores reservas do mundo, a Bolívia agora luta para extrair o recurso de forma eficiente – e o mais rápido possível; Brasil pode ser parceiro
por Maurício Brum / Publicado em 22 de setembro de 2023

Lítio ouro branco é fundamental para o futuro de uma Bolívia quase sem gás

Foto: www.ylb.gob.bo/Governo Boliviano

Foto: www.ylb.gob.bo/Governo Boliviano

Após quase duas décadas usando recursos do gás natural para bancar os programas sociais iniciados por Evo Morales, o país andino vê o recurso próximo do fim em um momento em que uma nova commodity se torna a bola da vez: o lítio, usado em baterias de carros elétricos. Com as maiores reservas do mundo, a Bolívia agora luta para extrair o recurso de forma eficiente – e o mais rápido possível.

No final de julho, o presidente Luis Arce, da Bolívia, fez um anúncio que deu esperanças ao país: segundo novas estimativas oficiais, a nação andina conta com reservas de lítio ainda maiores do que imaginava até então. Hoje, são pelo menos 23 milhões de toneladas da commodity já confirmadas em território boliviano, 2 milhões a mais do que na última contagem.

“Temos a maior reserva de lítio do mundo e precisamos saber como explorar isso de forma inteligente e transformar esse recurso”, bradou o mandatário – ciente da importância da matéria-prima, e também das dificuldades do país em aproveitá-la da melhor maneira.

Embora a Bolívia realmente seja a líder mundial em reservas, ela sequer pega pódio entre os maiores produtores do planeta, uma lista que conta com Austrália, Chile e China.

NESTA REPORTAGEM
E extrair adequadamente o lítio, o “ouro branco” tão cobiçado para fabricar baterias em um mercado crescente de veículos elétricos, é fundamental para o governo conseguir manter seus programas sociais em dia: afinal, outro produto que hoje centraliza a pauta de exportação em La Paz, o gás natural, está muito próximo do fim.

De forma quase simultânea ao anúncio otimista de Arce, na mesma semana, um novo estudo mostrou que a Bolívia está vendo suas reservas de gás se exaurindo rapidamente e, até 2030, deve inclusive se tornar importadora do produto.

Hoje, em função de uma queda na produtividade, o país já enfrenta uma redução das suas reservas internacionais de dólares, o que, no início do ano, chegou a provocar uma corrida ao sistema bancário por medo de uma iminente crise cambial – que, no entanto, ainda não se confirmou.

A necessidade de encontrar um novo caminho, porém, é um fato inegável dentro e fora da Bolívia.

“Os governos do MAS (Movimento ao Socialismo, partido de Evo Morales e Luis Arce) enfrentam não apenas a urgência da geração de divisas por meio da exportação para garantir seu programa de cunho social, mas também a problemática da conservação de biomas e proteção de comunidades tradicionais, centrais como base de apoio popular em suas sucessivas vitórias eleitorais”, argumenta a doutora em Relações Internacionais Heloisa Gimenez, professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu (PR).

Até recentemente, o caminho escolhido pela Bolívia para aproveitar o recurso foi manter a exploração inteiramente nas mãos da gestão pública, sob a batuta da estatal Reservas de Lítio Bolivianas (YLB, na sigla em espanhol).

O modelo, no entanto, revelou-se pouco eficiente: sem tecnologia ou recursos suficientes para avançar com a velocidade necessária, o governo Arce passou a procurar alternativas fora de suas fronteiras.

No início de 2023, a Bolívia, enfim, anunciou a assinatura de um convênio com grupos chineses para a instalação de duas fábricas nos desertos de sal de Coipasa e Uyuni, onde estão os depósitos do mineral: o objetivo é que, uma vez em plena operação (algo previsto para o próximo ano), cada planta seja capaz de produzir 25 mil toneladas de lítio por ano, uma revolução frente às 600 toneladas que a Bolívia conseguiu produzir por conta própria em 2022 – número que, mesmo modesto, já foi um recorde nacional.

Lítio ouro branco é fundamental para o futuro de uma Bolívia quase sem gás

Foto: Oton Barros (DSR-OBT-INPE)/Creative Commons

Imagem captada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) da mina de lítio no deserto de sal de Uyuni (o maior do mundo, com 8.000 km2), na Bolívia. As piscinas para evaporação e concentração da salmoura, parte do processo de extração do lítio, aparecem em um padrão quadriculado

Foto: Oton Barros (DSR-OBT-INPE)/Creative Commons

Equilíbrio diante da cobiça estrangeira

Luis Arce corre contra o tempo não somente porque o gás está acabando: sentado em riquezas capazes de ver a Bolívia virar uma espécie de “Arábia Saudita do lítio”, uma analogia ao que o petróleo fez para a economia da nação do Oriente Médio, o país sul-americano sabe que não faltam interessados em colocar as mãos no recurso que hoje ainda está pouco explorado.

“Politicamente, a situação da Bolívia é muito crítica. Lideranças ligadas ao MAS e o próprio Evo Morales já acusaram potências, em especial os Estados Unidos, de apoiarem o golpe de 2019 interessadas diretamente no domínio do lítio”, comenta a cientista social e economista Angelita Matos Souza, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Rio Claro (SP).

Em 2019, após concorrer de forma controversa a um novo mandato consecutivo, Evo Morales teve sua vitória nas urnas questionada por mobilizações encabeçadas pela direita. Em pouco tempo, polícia e Forças Armadas se juntaram ao movimento, levando o presidente – que estava no cargo desde 2006 – a renunciar de maneira forçada para tentar evitar derramamento de sangue.

Lítio ouro branco é fundamental para o futuro de uma Bolívia quase sem gás

Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

“Vamos dar golpe em quem quisermos! Lidem com isso”, publicou o bilionário Elon Musk em
sua conta no X (antigo Twitter). Bolsonaro, enquanto presidente, ofereceu a Musk a exploração
de nióbio, que foi recusada pelo empresário devido ao seu interesse principal pelo lítio

Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

Pouco depois, já com a Bolívia sob a gestão interina de Jeanine Áñez (hoje presa por seu envolvimento no golpe), o bilionário Elon Musk escreveu no X (antigo Twitter): “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lidem com isso”.

Nunca ficou claro até que ponto Musk falava sério ou ironizava seus críticos, mas é certo que ele tem interesse íntimo na exploração do lítio: além de ter se tornado desde então o dono do próprio X, o oligarca ainda é proprietário da Tesla, uma das maiores empresas do mundo no setor de veículos elétricos, que dependem das baterias feitas a partir da matéria-prima para andar.

Antes mesmo de um possível efeito da ingerência norte-americana ser sentido na concessão do recurso, porém, o golpe acabou fracassando: um ano após a derrubada de Evo, o MAS voltou ao poder com Arce sendo eleito democraticamente.

O resultado, agora, é uma política em que o Estado boliviano ainda tenta manter o controle sobre as jazidas, mas com o novo entendimento de que precisa do know-how estrangeiro.

“Hoje, há uma disputa entre Estados Unidos e China, e também países europeus, por esse recurso. É algo que pode favorecer os países latino-americanos ricos em lítio, que podem jogar com essa concorrência”, entende Angelita. Por uma questão que também envolve a afinidade ideológica, a primeira opção da Bolívia para chegar lá foi se aproximar dos chineses.

Segundo os especialistas, uma das formas de tirar proveito da disputa estrangeira pelo lítio é exigir termos mais favoráveis nos acordos para explorar as reservas: um negócio que passa pela transferência de tecnologia, modelo que, no médio prazo, daria autonomia ao país para fazer os processos de transformação da commodity em seu próprio território.

“Não adianta só exportar carbonato e hidróxido de lítio (a matéria-prima extraída). Se fizermos isso, vamos apenas reproduzir a velha estrutura da nossa região. É preciso modificar o cenário para entrar de vez na quarta revolução industrial. Não é à toa que, quando fez o anúncio do convênio, Luis Arce falou que começava a era da industrialização do lítio na Bolívia”, diz o doutor em Economia Política Internacional Bernardo Salgado Rodrigues, pesquisador do Laboratório de Estudos de Hegemonia e Contra-hegemonia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Em suas falas públicas, o presidente boliviano garante que, “até o primeiro trimestre de 2025”, o país deve começar a exportar baterias de lítio feitas ali mesmo, dando um passo decisivo para se afastar da simples venda de matéria-prima.

Brasil pode ter papel de mediação no novo mercado

Lítio ouro branco é fundamental para o futuro de uma Bolívia quase sem gás

Foto: Presidência da Bolívia/Reprodução redes sociais

Arce e Lula discutiram agenda bilateral de integração física, hídrica e energética e de cooperação mútua durante a Cúpula do Brics, em Joanesburgo, na África do Sul, no dia 24 de agosto

Foto: Presidência da Bolívia/Reprodução redes sociais

Quando o assunto é lítio, a conversa dificilmente sai dos países com a Cordilheira dos Andes em seu horizonte. Pudera: estima-se que pelo menos 60% das reservas mundiais do recurso estão no chamado “Triângulo do Lítio”, composto pela própria Bolívia, que tem as maiores jazidas, pela Argentina e pelo Chile.

Isso não quer dizer, no entanto, que o Brasil necessariamente vai ficar alheio à nova realidade. Por um lado, o país também tem uma extração – modesta – do recurso, hoje conduzida pela iniciativa privada estrangeira no norte de Minas Gerais.

Por outro, a importância brasileira como liderança regional pode ser essencial para que as várias partes interessadas consigam chegar a consensos em bloco sobre como explorar e negociar o produto e seus derivados.

“O Brasil não pode interferir diretamente na condução do manejo do recurso pelos países do Triângulo do Lítio, mas pode, e faz sua defesa ampla pela integração regional e autonomia da região frente ao Norte Global – nem que seja de forma discursiva”, argumenta Heloisa Gimenez, professora da Unila.

Para os pesquisadores ouvidos pelo Extra Classe, o canal que poderia viabilizar essa nova realidade é a ressurgida União das Nações Sul-Americanas (Unasul), órgão multilateral deixado à míngua nos anos de Jair Bolsonaro e cuja importância vem sendo resgatada no primeiro ano do governo Lula.

“A Bolívia não teria condições de liderar um projeto de política integrada, mesmo tendo mais lítio. O Brasil é o país que pode e deve fazer isso, como já tenta fazer hoje em relação à preservação da Amazônia. E não precisa ser uma relação de subordinação e dependência, mas de integração”, defende Angelita Matos Souza.

Em qualquer cenário, a Bolívia e seus vizinhos sul-americanos estão diante de uma janela de oportunidade para assumir um posto central na busca em andamento no mundo inteiro por encontrar uma alternativa aos combustíveis fósseis, um processo conhecido como “descarbonização”.

Essa janela, no entanto, não é infinita: hoje, o lítio é o futuro, mas pode continuar a ser por muito menos tempo do que se imagina. Analistas apontam que o ciclo das baterias tende a ser mais curto que o dos hidrocarbonetos, que há mais de um século movimentam o transporte terrestre, aéreo e marítimo em todo o mundo.

“Talvez daqui a 10 ou 20 anos não seja mais o lítio o responsável por essa transição energética: podem surgir baterias mais eficientes com outros materiais ou, quem sabe, vem o hidrogênio como a grande alternativa ‘verde’ viável”, argumenta Bernardo Rodrigues. “O que temos que fazer é buscar sementes de futuro. Precisamos modificar a estrutura que existe hoje e potencializar nossas indústrias para o mundo descarbonizado, independentemente da tecnologia que estiver na ordem do dia”, conclui.

 

 

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