EDUCAÇÃO

O que vocês querem aprender?

Por Roberto Villar Belmonte / Publicado em 23 de julho de 2006

Considerada uma das maiores especialistas na obra de Jean Piaget, a professora Léa da Cruz Fagundes, do Laboratório de Estudos Cognitivos da Ufrgs, luta há duas décadas para mudar a concepção de ensino nas escolas. O seu trabalho pioneiro com a informática em sala de aula lhe rendeu recentemente uma homenagem da Unesco. “Ensi-nar não é trans-mitir, e nem condicionar por estímulo e resposta”, insiste sempre a pesquisadora de 76 anos. E também não é necessário partir do simples para o complexo, nem do próximo para o distante. É preciso deixar a gurizada mergulhar no conhecimento. “Com orientação”, ela avisa.

O som estridente da sirene avisa que está na hora de começar a aula. Os alunos falam pelos cotovelos. São todas crianças curiosas, cheias de interesse pelo mundo. A professora entra e começa a colocar ordem na sala. Pede silêncio e conduz todos para os devidos lugares. Calados têm que ficar para ela uma nova lição transmitir. Com a tropa sob controle, a mestra vai para o quadro. Escreve algumas frases e manda os pequenos copiarem. Quem executa com perfeição a ordem é premiado com palavras de reforço, tais como “ótimo”, “jóia”, “muito bem”, “continue assim”. Os outros levam frases punitivas do tipo “tens que caprichar mais” ou “precisa melhorar”. Na hora da informática, eles brincam com CDs de joguinhos e digitam – ipsis litteris – os exercícios do caderno.

Imagine outra escola, onde a sirene também toca e as crianças, em alvoroço, entram no mesmo turbilhão para a sala de aula. A professora chega e, ao sentir o clima borbulhante da criançada, vai logo perguntando: “O que vocês querem aprender hoje?”. Alguns olham desconfiados, incrédulos com o convite. “Podemos mesmo aprender o que a gente quiser?”, conferem. Uma lista de curiosidades emerge. A profe orientadora organiza uma votação. Os temas mais votados viram projetos de pesquisa. Grupos são formados, com horário marcado no laboratório de informática. Os temas vão do funcionamento da digestão dos alimentos no cachorro à curvatura do arco-íris. Os trabalhos ganham páginas na internet, e os alunos a responsabilidade da autoria e autonomia para resolver problemas.

O nome da segunda professora é Léa da Cruz Fagundes. Apesar dos 76 anos, ela é superativa. Acho até que algumas orientadoras pedagógicas a tachariam de hiperativa. Foi difícil entrevistá-la. Quando ela não está em sala de aula, está orientando projetos ou reunida com professores Brasil afora. Consegui conversar com ela em seu apartamento no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, em uma sala ampla e iluminada, decorada com folhagens. Na estante alta de madeira bege chama a atenção um livro grande de capa preta sobre neurociências. Ela recém havia voltado de Brasília, onde recebeu um prêmio da Unesco, no dia 7 de junho, em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro no uso da informática em sala de aula que iniciou uma revolução na área da inclusão digital em escolas públicas.

– Aprende-se tendo curiosidade, fazendo perguntas. Mas para que a curiosidade tenha bom resultado, é preciso orientar os alunos. Este é o papel do professor, orientar o aluno a escolher, buscar e depois refletir. O mais poderoso no ser humano é a representação mental, a capacidade de abstração e reflexão. Na maioria das escolas ninguém reflete, pois só colocam certo e errado. Os alunos têm que aprender a buscar informações em diferentes fontes, comparar os dados divergentes sobre o mesmo tema, complementar a pesquisa com os livros das bibliotecas e consultas a especialistas. Eles vão aprender a planejar o projeto, fazer cronograma, planejar as atividades. Não dá para fazer no computador o exercício copiado do caderno. Computador é para hipertexto.

“O professor não pode ensinar o aluno a usar o computador, porque isso ele não sabe e nunca vai saber. Ele tem que ser um parceiro para orientar a pessoa a pensar, a descobrir e experimentar”, adverte a doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Segundo Léa Fagundes, os professores são formados com um analfabetismo digital, pois quando utilizam o computador nas licenciaturas, usam para um uso burro, limitado, como digitar texto no Word, fazer planilhas no Excel e apresentações em Power Point. O computador tem que ser usado para se comunicar e interagir. “O professor fica em pânico com isso. Mas o que deixa ele mais atordoado é mudar a estrutura, a concepção. Ele não é mais quem ensina, ensinar não é transmitir, ele aprende junto com o aluno.”

– Toda a escola está errada. Ela só faz as classes populares se sentirem desprezadas, derrotadas, fracassadas. Eu não estou atrás de uma nova maneira de melhorar o rendimento da escola. Isto não me interessa, pois a escola quer a resposta certa para uma listagem de coisas específicas. E não quer ver como o talento funciona, como é que os estudantes interagem e buscam informação nova. Nada disso interessa para os que ainda acham que ensinar é transmitir. O professor deve ser um orientador, e aprender junto. Aprender é pesquisar. A pesquisa é a fonte da aprendizagem – explica a professora Léa Fa-gundes, coordenadora do Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC) do Instituto de Psicologia da Ufrgs e presidente da Fundação Pensamento Digital.

Uma outra estrutura possível

No lugar da estrutura hierárquica das escolas, copiada das instituições como as Igrejas, as Forças Armadas, as fábricas e até o Congresso Nacional, Léa Fagundes defende uma organização heterár-quica e mais cidadã nas salas de aula para estimular a participação cooperativa e solidária dos sujeitos que estão se desenvolvendo. Na Sociedade da Informação, a própria comunicação está cada vez mais heterárquica. “As pessoas podem fazer as redes de hierarquia que quiserem. Não há um poder irradiando e dominando os outros. Em uma rede tu podes ser autoridade, na outra não. Isto faz com que cada pessoa possa aprender a negociar, a chegar a consensos”, destaca.

– Quando uma pessoa chega a um consenso, tem o seu nível ético elevado, pois ela está fazendo algo porque quis, porque aceitou, e não por obrigação, então se sente responsável. Se um aluno simplesmente copia e a professora coloca “jóia”, ela desloca o valor do trabalho; no caderno ele não é o autor. O professor não pode dizer como é, pois a retenção não fixa. O aluno tem que resolver o problema sozinho. Assim ele opera em cima da informação e a reestrutura. E o que ele lembra é o caminho da reestru-turação. Tudo é interação, desde que nascemos.

Léa da Cruz Fagundes é considerada uma das maiores especialistas na obra de epis-temologia sistêmica e cons-trutivista de Jean Piaget (1896-1980), pesquisador que publicou cerca de 70 livros e, segundo ela, ainda é ignorado no Brasil porque as pessoas lêem e não entendem. O resultado disso ela vê nas escolas. “Com todo este condicionamento nas salas de aula, muitos talentos estão sendo perdidos. Como o ensino está na mão dos que têm mais poder, não se concebe que uma pessoa de menor desenvolvimento possa aprender”, lamenta. Saí da entrevista com duas perguntas que a professora de 76 anos me fez durante a nossa conversa de uma hora: Quem diz que tudo o que a gente aprende tem que ser ensinado? O que aprender, afinal?

Mãe de sete filhos e pesquisadora

Léa Fagundes é mãe de sete filhos, cinco mulheres e dois homens. Desistiu do curso de Letras por falta de tempo para estudar, pois dava aulas e tinha que cuidar das crianças pequenas. Depois do sexto filho, decidiu voltar aos estudos. Com 38 anos, ingressou no curso de Pedagogia (68-72) e não parou mais. Fez mestrado em Educação (75-77) e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (82-86). Por questões burocráticas da época (dava aula, mas não podia orientar o estágio), cursou a graduação em Psicologia (83-88) durante o curso de doutorado. Ela coordena o Laboratório de Estudos Cognitivos da Ufrgs. O LEC nasceu nos anos 70 a partir dos cursos sobre cognição humana e epistemologia genética ministrados em Porto Alegre pelo professor argentino Antonio Battro, do Centro Internacional de Epistemologia Genética da Universidade de Genebra, onde ele estudava com Piaget.
Prêmio da Unesco

Na comemoração dos 60 anos da Organização das Nações Unidas para a Educação, realizada em Brasília no dia 7 de junho, a professora Léa da Cruz Fagundes foi homenageada. Ela recebeu o Diploma de Reconhecimento por seu trabalho pioneiro no uso da informática em sala de aula, que, segundo a Unesco, iniciou uma revolução na área da inclusão digital em escolas públicas brasileiras e ajudou a promover mudanças profundas no processo de aprendizagem.

“Entendemos que as suas pesquisas nas linhas de inclusão digital, formação continuada de professores em serviço, fundamentos da psicologia aplicados à informática na educação sintetizam a essência do que compreendemos como sendo a melhor mensagem do uso das novas tecnologias para a educação”, foi a justificativa do prêmio. “Esta é uma homenagem a milhares de professores brasileiros, educadores corajosos e sonhadores que acreditam que é possível mudar a educação brasileira”, disse Léa Fagundes ao receber a homenagem.

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