EDUCAÇÃO

Empresas descumprem direitos

Conglomerados educacionais com perfil mercantilista focam no lucro a qualquer preço, rebaixando a qualidade do ensino e precarizando direitos dos professores que atuam nas instituições
Por Gilson Camargo / Publicado em 12 de maio de 2014
Empresas descumprem direitos

Foto: Igor Sperotto

Sede da Anhanguera em Porto Alegre, no bairro Cavalhada, com 36 mil m2, foi inugurada em 2012 e oferece cursos de graducação, tecnológicos e EaD

Foto: Igor Sperotto

Historicamente dominado por instituições confessionais e comunitárias, o cenário da educação superior do Rio Grande do Sul vem sendo impactado nos últimos anos por uma ofensiva mercantilista protagonizada por grandes grupos empresariais que operam no mercado de capitais e que ostensivamente trabalham com a perspectiva do lucro a qualquer preço nas suas ofertas de ensino. Explicitada nas salas de aula superlotadas, essa realidade tem reflexos na qualidade do ensino, com a padronização pedagógica à base de cartilhas adotadas em todas as unidades país afora. Essa homogeinização, ou “macdonaldização” do ensino superior, é apontada por professores e alunos como responsável pela fragilização do ensino, por frustrar o processo de ensino-aprendizagem e puxar para baixo a qualidade da educação.

Para o Sindicato dos Professores do Ensino Privado (Sinpro/RS), trata-se de uma lógica mercantilista que visa a maximização dos lucros das companhias e aposta na precarização das relações e do ambiente de trabalho dos professores, já que direitos trabalhistas consolidados pela Convenção Coletiva de Trabalho firmada com o Sindicato patronal são desrespeitados de forma sistemática. “A percepção reiterada dessa realidade e do sistemático descumprimento dos direitos trabalhistas dos professores tem levado o Sinpro/RS a uma redobrada atenção a essas empresas. As iniciativas visam superar o diálogo pró-forma e sempre inócuo com os representantes dessas instituições, uma vez que as tentativas de solução sempre redundaram em evasivas e alegação de encaminhamentos a “instâncias superiores”. Diante dessa postura, o Sindicato elegeu a frente judicial como via de enfrentamento dos problemas detectados”, ressalta Amarildo Cenci, diretor do Sinpro/RS.

O primeiro grupo econômico a investir nesse modelo de educação em larga escala no estado, a Anhanguera Educacional, organizou-se como companhia de capital aberto em 2003, iniciando sua ofensiva a partir da ascensão econômica da população e a ampliação do acesso ao ensino superior. A companhia mira nas Classes C e D com um apelo ao “sonho de estudar e construir uma carreira” da “nova classe média brasileira”. No Rio Grande do Sul, a Anhanguera adquiriu a Faculdade Atlântico Sul, em Pelotas e Rio Grande, e a Faplan, em Passo Fundo, além de instalar polos de ensino a distância por todo o estado. “Para atingir suas metas, a empresa investe em renovados mecanismos de burla à legislação trabalhista, arrochando os salários dos professores, deixando de pagar por trabalhos realizados, superlotando as salas de aula e com redistribuição arbitrária de carga horária”, aponta Cenci.

Ações judiciais
Enquanto instituição de ensino privado que atua no RS, a Anhanguera está vinculada às normas da Convenção Coletiva de Trabalho firmada entre Sinpro/RS e Sinepe/RS. “O cumprimento de direitos e obrigações há muito consolidados tem sido objeto de intensas disputas judiciais, em ações coletivas que tramitam na Justiça do Trabalho em Pelotas, Rio Grande e Passo Fundo”, ressalta o advogado Henrique Stefanello Teixeira, do Departamento Jurídico do Sinpro/RS.

Segundo eles, a empresa educacional empregadora insiste em ignorar as disposições normativas e, mesmo já tendo sido derrotada diversas vezes na esfera judicial, continua remunerando os professores empregados com valores de hora-aula diferenciados, de acordo com a atividade desenvolvida. “Ou seja, o empregador somente remunera com base no valor da hora-aula cheia aquelas atividades realizadas em sala, todos os demais afazeres docentes são remunerados em rubricas específicas (horas-atividades, ATPS, estágios etc.), sempre com valor minorado, na maioria dos casos correspondendo a 70% do valor integral da hora, e sem a repercussão no Repouso Semanal Remunerado e das 4,5 semanas. Essa prática encontra óbice no Art. 320 da CLT e na Cláusula 36 da Convenção Coletiva de Trabalho (CCT), e, ainda, fere o princípio da irredutibilidade salarial”, destaca.

Outra prática que afronta a CCT, segundo a entidade, refere-se ao pagamento das atividades realizadas em orientação de trabalhos de conclusão de curso, já que a empregadora paga de forma aleatória as orientações (por vezes pagando por turma
ou mesmo deixando de remunerar). De acordo com a Cláusula 16 da CCT, o professor deve ser remunerado com base em meia hora-aula semanal por aluno orientando, enquanto perdurar a orientação.

Esse critério de remuneração deveria ser adotado também quando o professor é convidado para participar de bancas da avaliação desses trabalhos ou na orientação de estágios, hipóteses nas quais deve receber integralmente pelo período em que estiver à disposição do empregador. “Na Anhanguera, nada disso é respeitado”, destaca Amarildo Cenci, da Direção Colegiada do Sindicato.

Audiência pública na Assembleia Legislativa, em 2012, sobre demissões e irregularidades na Anhanguera

Foto: Grazieli Gotardo

Audiência pública na Assembleia Legislativa, em 2012,
sobre demissões e irregularidades na Anhanguera

Foto: Grazieli Gotardo

Resistência à isonomia salarial
Uma das conquistas históricas dos professores do ensino privado, amplamente reconhecida pelas instituições, a isonomia salarial desde o início do contrato, expressa na Cláusula 9ª, também enfrenta a resistência da Anhanguera. De acordo com a norma, é vedada ao estabelecimento de ensino a contratação de professor com salário inferior à remuneração do docente já empregado da instituição com menor tempo de serviço, considerando-se o nível e o grau em que atue, ressalvadas as vantagens pessoais.

Essa garantia, de respeito ao valor hora-aula mínimo praticado na instituição, impede o empregador de contratar novos professores com salário inferior ao daqueles que já prestam serviço na instituição. No caso de aquisições de instituições de ensino superior, deve-se sempre observar os valores praticados antes da alteração da gestão, ante o princípio da sucessão de empregadores. Diante da sucessão de ações trabalhistas por reiterados descumprimentos sempre dos mesmos direitos, o Sindicato decidiu priorizar o enfrentamento dos problemas da Anhanguera. “O Sinpro/RS levou a defesa judicial dos direitos dos professores empregados na Anhanguera à prioridade do  Departamento Jurídico da entidade, buscando, no ajuizamento de novas ações, mecanismos que inibam a continuidade das práticas ilícitas (tutela inibitória) e a condenação da empresa ré a danos morais coletivos por, de forma contumaz, infringir o patrimônio jurídico dos professores empregados”, conclui Henrique Teixeira. O Grupo Anhanguera foi procurado pela reportagem e não respondeu aos pedidos de entrevista.

Uniasselvi
O reinício das atividades letivas em 2014, no Uniasselvi, em Porto Alegre, foi marcado por uma nova política de distribuição de carga horária aos professores tutores da empresa. Os profissionais atualmente empregados na Uniasselvi, empresa do grupo Kroton, segundo denúncia do Sinpro/RS, tiveram sua carga horária correspondente a novas turmas repassada para novos tutores, contratados a um valor de hora-aula inferior. “Esse procedimento provocou a redução de carga horária e do salário dos professores empregados, para os quais foi imposta a redução em sua carga horária de forma totalmente unilateral e irregular, porque essa redução não está enquadrada nas condições previstas em cláusula da Convenção Coletiva de Trabalho”, destaca Marcos Fuhr, diretor do Sinpro/RS. O Sindicato ajuizou ação coletiva na Justiça do Trabalho e obteve liminarmente o cumprimento da CCT na distribuição da carga horária. Outras ações nesse sentido foram ajuizadas em Porto Alegre, Passo Fundo e Camaquã, pleiteando a isonomia da remuneração.

Kroton e a Anhanguer – Fusão será julgada em junho
A fusão entre os dois maiores grupos econômicos de educação no país, a Kroton e a Anhanguera, está em análise no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que prorrogou até junho deste ano o prazo para o julgamento da proposta. Em dezembro, a partir de uma ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), a Superintendência do Cade reconheceu problemas na fusão, alertando para o risco de surgimento de um superconglomerado prejudicial para as demais instituições de ensino e para os alunos. O parecer adverte que “o ato de concentração, se aprovado sem restrições, poderia gerar condições prejudiciais para os alunos dos cursos e municípios afetados, tais como elevação de preços, redução da oferta dos serviços e queda na qualidade de ensino”.

Além do julgamento no Cade, o negócio é ameaçado por divergências entre os dois parceiros. Diante da desvalorização das ações da Anhanguera, que em 2013 alcançou resultados abaixo do esperado, a Kroton resolveu revisar os termos da fusão, de olho numa fatia maior da empresa resultante da eventual fusão. A Anhanguera quer a manutenção do acordo firmado em abril de 2013, que prevê 57,5% da nova empresa para acionistas da Kroton e 42,5% para acionistas da Anhanguera. E estabelece multa de R$ 250 milhões em caso de desistência. A fusão dessas empresas, se concretizada, poderá criar o maior grupo educacional do mundo, com um capital aberto de R$ 12 bilhões. Juntas, terão mais de 800 unidades de ensino superior e quase 1 milhão de alunos, sendo 486 mil no ensino presencial e 516 mil no modelo de ensino a distância.

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