EDUCAÇÃO

Quando o acesso à escola passa pelo território do tráfico

Em regiões dominadas por facções criminosas que disputam o controle do tráfico de drogas nas periferias de Porto Alegre, o acesso à escola é um desafio diário para estudantes, professores e especialistas
Por Jacira Cabral da Silveira / Publicado em 10 de abril de 2018

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Nos relatos, os traumas que a territorialização representa ao processo de aprendizagem, impondo dificuldades ao desenvolvimento das relações devido ao nomadismo, à adultização precoce, à violência e ao medo.

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O clima é de retorno às aulas. Rafael, de 12 anos, acompanha a irmã, Suelem, do primeiro ciclo do ensino fundamental de uma escola municipal de Porto Alegre. Quando os alto-falantes começam a reproduzir Aquarela do Brasil, ela vai para junto dos colegas de turma e todos no pátio passam a formar filas, aos poucos conduzidas às salas de aula. Cora, a diretora, tem orgulho do ambiente de relativa tranquilidade e atribui isso ao fato de as crianças sentirem-se seguras ali dentro. Assim como outras escolas da rede pública, essa está em uma região de disputa entre facções pelo controle do tráfico de drogas, condição que acaba determinando não apenas o acesso à escola, como também a permanência nela. No dois últimos anos, 30 de seus alunos foram obrigados a trocar de escola porque não poderiam passar pelo território dominado por uma facção em disputa com aquela que controlava o local onde moravam.

Alguns desses alunos, segundo Dagmar, coordenadora de turno, são filhos de funcionários do colégio que moram nessa localidade. “As crianças relatavam que eram ameaçadas durante o trajeto até a escola”, afirma. De acordo com um levantamento da assistência social da região, ao qual a coordenadora teve acesso, 22 famílias foram expulsas pelo tráfico: “porque as facções tomaram suas casas ou porque eram ameaçados de morte”. Certa ocasião, quando precisou levar em casa uma aluna que estava se sentindo mal, a garota foi orientando a professora pelo caminho por se tratar de uma das áreas de conflito. Em um dado momento, ela garantiu à professora: “Dag, pode entrar tranquila porque ali os rapazes todos são amigos da minha mãe”. O medo que a coordenadora experimentou naquela ocasião é o mesmo de seus colegas que colaboraram com essa reportagem – as crianças e os servidores estão identificados por pseudônimos para assegurar sua integridade, assim como foram omitidos a identificação e o local da escola.

A escola de Suelem atende a um grande número de crianças. São 650 alunos, desde as turmas de educação infantil até Educação de Jovens e Adultos (EJA). Dos menores, muitos vão sozinhos para a escola ou com um irmão maior. Em períodos críticos de confronto entre traficantes, Dagmar comenta que até mesmo a escola é obrigada a fechar os portões. “Uma vez, nós estávamos aqui dentro e o tiroteio foi muito intenso. Algumas crianças não conseguiram chegar e outras nós tivemos que chamar a família para buscá-las. Foi um ano bem complicado”, recorda a coordenadora.

Esse contexto tem reflexos na sala de aula, nos relacionamentos que se criam na escola, algumas vezes dificultando o aprendizado, dizem as professoras. “O que o nosso aluno menos tem é empatia. Ele não consegue se colocar no lugar do outro, está sempre na defensiva”, avalia Cora. “Aqui é um espaço de poder ser criança e adolescente, porque lá fora o mundo é muito cruel. Eles são adultizados”, resume Dagmar.

No início deste ano, Cora encaminhou à Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre um documento relativo ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) durante a reunião de planejamento do ano letivo de 2018, realizada no dia 22 de fevereiro. Nele, a diretora questionava o item referente ao fluxo versus aprendizagem, em que o fluxo é a relação entre idade e série escolar. “Pensa bem, uma criança que tem que fugir, que não pode vir à escola, ela vai conseguir se alfabetizar? Se minha mãe saiu daqui e fugiu para outro lugar, aí só arranjei uma vaga dois meses depois”, compara. Um dos propósitos do documento é demonstrar o quanto essa situação exige um estudo por parte da Smed.

Territorialidade imposta

De acordo com a socióloga e pesquisadora da PUCRS Ane Briscke, que está desenvolvendo uma tese sobre a interferência das territorialidades do tráfico de drogas no cotidiano de crianças e jovens, essa segregação, além de afetar o acesso às escolas, também dificulta o uso da rede de saúde e de assistência social existente na comunidade. “Às vezes, o posto de saúde fica numa zona em que a criança não pode passar porque ela mora numa zona conflituosa com a do posto”, ilustra.

Em momentos de conflito, a circulação fica impedida. “Eles são proibidos de sair de casa, porque, como os territórios são muito próximos uns dos outros, as crianças podem ser usadas para levar informações.” Ane explica que as crianças, a maioria na faixa dos sete anos de idade, não têm consciência de que estão sendo usadas pelos traficantes, que comumente são pessoas conhecidas dos estudantes. Por outro lado, com exceção dos momentos de conflito, as crianças podem circular tranquilamente, mas “as que têm algum envolvimento são impedidas de andar em certos lugares”.

Nomadismo escolar e laços frágeis

Insegurança vivenciada pelas crianças afeta o desenvolvimento cognitivo e fragiliza as relações, avalia Carmem Craidy

Foto: Gustavo Diehl/Secom/UFRGS

Insegurança vivenciada pelas crianças afeta o desenvolvimento cognitivo e fragiliza as relações, avalia Carmem Craidy

Foto: Gustavo Diehl/Secom/UFRGS

Para Carmem Craidy, doutora em Educação e professora aposentada da Faculdade de Educação da Ufrgs, são graves as consequências para a trajetória escolar de crianças e jovens que vivem em localidades em conflito. Para ela, o fato descrito pela diretora Cora quanto ao comportamento arredio e desconfiado de seus alunos ante a aproximação do outro, evitando demonstração de afeto, é preocupante, uma vez que “um dos fatores principais do aprendizado é a criança sentir-se bem, sentir-se aceita, perceber que confiam nela. A confiança e a afetividade são decisivas, motor da aprendizagem”.

Quanto à imposição de nomadismo escolar desses educandos, expulsos de suas casas juntamente com suas famílias em função da territorialidade de disputa entre facções, a educadora destaca alguns reflexos. Um deles é a questão curricular, pois cada escola tem suas particularidades, fazendo com que o aluno sinta-se perdido para acompanhar os conteúdos em sala de aula. Outra dificuldade, segundo ela, é quanto às relações afetivas, pois a criança perde os laços desenvolvidos no ambiente escolar anterior. “A criança aprende através das relações. Relações com o colégio, com o adulto, com os colegas”, argumenta. Nesse contexto, os laços também se fragilizam no âmbito da vizinhança, tendo em vista que essas crianças e adolescentes deixam para trás familiares e amigos.

A especialista ressalta ainda o quanto a insegurança vivida nessas comunidades afeta o desenvolvimento cognitivo desses alunos. Carmem critica especialmente o comportamento generalizado entre as atuais lideranças do tráfico que não concebem outra forma de resolver divergências que não seja através da troca de tiros. “Os índices de morte no Brasil são horrorosos, 60 mil por ano (segundo a plataforma de dados do Instituto Igarapé), superiores a países em guerra. E é claro que essa população vive amedrontada, e as condições da criança se desenvolver são altamente prejudicadas, e dos jovens também que acabam cooptados pelo crime,” diagnostica.

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