EDUCAÇÃO

Particulares de elite criticam ministro da Educação

Grupo de escolas publica carta ao MEC afirmando que o problema da educação não é ideologia, mas falta de formação e valorização aos professores
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 9 de janeiro de 2019
O novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez é teólogo e entende que o principal objetivo do MEC é combater o comunismo nas escolas e a ideologia de gênero

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez é um teólogo católico ultraconservador; ele entende que o principal objetivo do MEC é combater o comunismo nas escolas e a ideologia de gênero

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O primeiro contraponto à visão ultraconservadora do recém empossado ministro da Educação, o teólogo Ricardo Vélez Rodriguez, veio logo depois da sua posse, no último dia 1º de janeiro.  Em resposta ao seu artigo intitulado Um Roteiro para o MEC, em que o ministro defendeu as teses do movimento Escola Sem Partido e criticou uma suposta “influência comunista” na educação brasileira.  A resposta foi imediata e veio do ensino privado, logo no dia 2.  Um grupo de escolas particulares de elite, o Critique, endereçou uma carta à Vélez dizendo entre outras coisas o seguinte: A insistência em enfatizar problemas ideológicos serve apenas para desviar o foco do problema real e prejudica o aprimoramento da educação escolar, tão essencial para que o país se torne viável. A Educação Básica é um problema nacional importante e grave demais para que se reduza a acusações a pretensas maquinações de esquerda.

A educadora Sonia Barreira, que está à frente do Grupo Critique, vê com preocupação as ideias que sustentam o projeto do governo Bolsonaro, “por não estar atualizado com as pedagogias contemporâneas, discutidas e estudadas em todos os países do mundo que se preocupam em formar gerações que consigam interpretar a realidade, em sua complexidade, para lidar com as transformações decorrentes do mundo digital”.

A educadora atua na Escola da Vila desde sua fundação, há 37 anos. Nesse período, foi professora de Educação Infantil e do Ensino Fundamental I, orientadora, coordenadora, e, nos últimos 25 anos, foi responsável pela direção-geral da Escola da Vila e do Centro de Formação. Em seu currículo tem passagens por assessorias a Prefeituras, projetos de formação continuada, e mantém há 15 anos um grupo de assessoria a diretores de escolas privadas. Trabalhou com Emilia Ferreiro na implantação da Rede Latino-Americana de Alfabetização e acompanhou grupos de educadores em visitas a escolas de diversos países, tais como: Espanha, Estados Unidos, Canadá, Argentina e Portugal. Ela comentou o episódio em entrevista exclusiva ao Extra Classe.

Foto: Gustavo Morita/Critique/Divulgação

Sonia Barreira, do Grupo Critique

Foto: Gustavo Morita/Critique/Divulgação

Extra Classe – Qual a motivação do Grupo Critique ao escrever a carta aberta ao ministro?
Sonia Barreira –
Entendemos que é nossa obrigação contribuir com a qualidade da educação no nosso país e, neste momento, nos pareceu fundamental propor um novo foco para o debate sobre como atuar para melhorar a educação de nossas crianças e jovens.

EC – Como o grupo se situa na nova política do país?
Sonia Barreira –
 Não temos posicionamento político partidário. Como todos os brasileiros desejamos que nosso país possa se desenvolver e oferecer melhores condições de vida para a população brasileira. Estamos na expectativa e na torcida para que o novo governo encontre o caminho mais adequado para isso.

EC – Como enxerga o discurso de Bolsonaro de abolir Paulo Freire do MEC? Sonia Barreira – Entendemos que a obra de Paulo Freire tem relevância histórica para os educadores e que é uma referência importante para a área educacional. Não vemos grande influência das ideias freirianas no sistema educacional brasileiro.

EC – O governo defende o Escola sem Partido, o que o Critique acha do projeto?
Sonia Barreira –
 Já nos posicionamos a respeito do projeto em artigos, que podem ser encontrados no nosso site, e também na Carta Aberta ao Ministro. De modo geral, vemos com preocupação as ideias que sustentam o projeto, que não está atualizado com as pedagogias contemporâneas, discutidas e estudadas em todos os países do mundo que se preocupam em formar gerações que consigam interpretar a realidade, em sua complexidade, para lidar com as transformações decorrentes do mundo digital.

EC – Como o grupo vê as mudanças no Ensino médio colocadas pelo último governo?
Sonia Barreira –
 Entendemos que era necessária uma reforma neste segmento dadas as evidências de falta de motivação dos alunos, baixos resultados e evasão escolar. No entanto, as propostas do novo ensino médio ainda não estão suficientemente esclarecidas e a implementação de percursos distintos oferecidos aos jovens ainda requer diretrizes mais concretas para as escolas.

Carta para evitar o retrocesso na educação

Na carta, o Grupo Critique pede que Rodriguez não permita que “o país entre numa rota de retrocesso”, o documento critica as afirmações de que as escolas e os professores do país estão com agentes infiltrados ensinando “ideologia de gênero” e “doutrinação marxista”.

Citando um artigo de Vélez Rodriguez, intitulado Um roteiro para o MEC,  em que o ministro diz se preocupar com uma estrutura armada para desmontar valores tradicionais da nossa sociedade, como família, religião, cidadania e patriotismo, a carta dos educadores do Critique afirma: “Isso soa como um discurso anacrônico que remete aos anos da guerra fria no século 20. E é, mais uma vez, um deslocamento da questão realmente grave que é a da dificuldade de tornar as crianças e jovens brasileiros aprendizes eficientes e preparados para os desafios do mundo atual”.

No documento, assinado pelas Escola Balão Vermelho (BH), Colégio Mangabeiras Parque (BH), Escola Parque (RJ), Escola da Vila (SP) e Escola Viva (SP), o grupo assegura “que o que existe, de fato, é a dificuldade de aprender dos alunos. Para tanto, os professores não necessitam de vigilância, mas de formação e de valorização”. Concretamente, para os signatários, o problema das escolas não são “ideologias de esquerda em sala de aula, mas a incapacidade do sistema de conseguir que os alunos aprendam”.

Rebatendo ainda a posição do ministro e do presidente Jair Bolsonaro sobre questões consideradas “ideologizadas” no Enem, os professores do Critique afirmam que “a prova não é elaborada por pessoas mal intencionadas que desejam prejudicar jovens”, mas, sim, construída por professores que tentam ligar o conhecimento a diversos contextos. “Para nós, conhecer é conseguir aplicar o conhecimento em diversas situações, é estabelecer relações entre os saberes, é saber usar na vida o que se aprendeu”, afirma a carta.

Fundado em 2017, com a parceria e a colaboração de algumas Escolas de educação básica que têm as teorias construtivistas como fundamento de suas práticas pedagógicas, junto com a Bahema Educação, o Critique ainda frisa na carta endereçada a Velez Rodrigues que é a desvalorização da figura do professor uma das justificativas para o descrédito do sistema. “Antes podemos nos lembrar da ausência de apreço que se tem, no Brasil, pela escola e a pouca valorização que se dá ao professor, à sua ação e formação”.

Leia a íntegra do documento:

“Senhor Ministro da Educação,

Nossa longa e ampla experiência na escola nos impele ao dever de contribuir para a atual discussão sobre a educação escolar brasileira. Precisamos começar por esclarecer que o problema de nossas escolas não são ideologias de esquerda em sala de aula, mas a incapacidade do sistema de conseguir que os alunos aprendam. São muitas e complexas as razões que trouxeram a Educação Básica aos péssimos resultados que se repetem há alguns anos. Mas, certamente, entre as muitas principais delas, não estão ideologias de esquerda. Antes podemos nos lembrar da ausência de apreço que se tem, no Brasil, pela escola e a pouca valorização que se dá ao professor, à sua ação e formação. Para citar apenas duas bastante relevantes.

A insistência em enfatizar problemas ideológicos serve apenas para desviar o foco do problema real e prejudica o aprimoramento da educação escolar, tão essencial para que o país se torne viável. A Educação Básica é um problema nacional importante e grave demais para que se reduza a acusações a pretensas maquinações de esquerda.

Considerar que a escola ensina e a família e a igreja promovem a educação moral é uma opinião desatualizada, pois o desenvolvimento moral é inseparável do desenvolvimento intelectual, e a educação das crianças não se limita a memorizar informações e fatos. O conhecimento existe em um contexto, numa abordagem que, necessariamente, envolve o desenvolvimento emocional, social, intelectual, moral e físico do aluno.

Confundir educação moral – que temos como objetivo construir a autonomia do sujeito – com moral religiosa obscurece o conhecimento e relega a aprendizagem a uma pedagogia transmissiva obsoleta.

Aguardamos de Vossa Excelência um projeto coerente, fundamentado, lógico e sensato para enfrentar as dificuldades da nossa educação escolar que precisa cumprir sua função de garantir que as novas gerações compreendam e contribuam para o aperfeiçoamento da sociedade.

Não concordamos que – num país em que muitos alunos não chegam a aprender a ler – se tenha como meta principal vigiar professores e criar Conselhos de Ética, nas escolas, para “zelarem pela “reta” educação moral dos alunos”. Excelência, escola é lugar de falar de alfabetização, comunicação, pensamento lógico, científico, humanidades, moral, tudo o que fundamenta o acervo cultural da humanidade. O pensamento moral implica transformação interna do sujeito, que se constrói discutindo ações e conhecimentos, e não com punição e obediência.

No texto “Um roteiro para o MEC”, Vossa Excelência se preocupa com “uma estrutura armada para desmontar valores tradicionais da nossa sociedade, (…) da família, da religião, da cidadania, em suma, do patriotismo”. Asseguramos que o que existe, de fato, é a dificuldade de aprender dos alunos. Para tanto, os professores não necessitam de vigilância, mas de formação e de valorização.

Alertamos que a Escola sem Partido, que Vossa Excelência considera “uma providência fundamental”, não está atualizada com as pedagogias contemporâneas, discutidas e estudadas em todos os países do mundo que se preocupam com  formar gerações que consigam interpretar a realidade, em sua complexidade, para lidar com as transformações radicais decorrentes do mundo digital.

A acusação de que supostas ‘educação de gênero’ e ‘ideologia marxista’ estão infiltradas na escola soa como um discurso anacrônico que remete aos anos da guerra fria no século 20. E é, mais uma vez, um deslocamento da questão realmente grave que é a da dificuldade de tornar as crianças e jovens brasileiros aprendizes eficientes e preparados para os desafios do mundo atual.

O Brasil precisa se educar para o novo mundo, criado pelas novas tecnologias, com questões demasiadamente desafiadoras para a humanidade. Não há tempo a perder com convicções vetustas que parecem ignorar que a humanidade foi capaz de levar o homem à Lua, que é capaz de manipular genes, descobrir curas para doenças, inventar máquinas que facilitam a vida, tudo isso porque a espécie humana é dotada de mentes curiosas, criadoras e inventivas. Essa capacidade de pensar, discutir, refletir e trocar conhecimento trouxe a humanidade até aqui. Cercear essa capacidade é preocupante e, mais ainda, se nossa educação básica é sabidamente ruim, com menos discussão, troca e reflexão certamente não vai melhorar.

Quanto ao exame do Enem, Senhor Ministro, a prova não é elaborada por pessoas mal intencionadas que desejam prejudicar jovens. Não, pelo contrário, a prova é construída por professores que tentam ligar o conhecimento a diversos contextos, que é o que se busca hoje na educação escolar. Quando Vossa Excelência diz que a “prova tem que avaliar realmente os conhecimentos. O aluno não pode ter medo de levar pau” não é claro como Vossa Excelência significa o conhecimento. Para nós, conhecer é conseguir aplicar o conhecimento em diversas situações, é estabelecer relações entre os saberes, é saber usar na vida o que se aprendeu. Não consideramos que conhecimento são conteúdos memorizados e descontextualizados. Quanto ao receio de o aluno de ser reprovado deve-se à má qualidade da educação escolar e não a intenções perversas de quem corrige as provas.

Senhor Ministro, sua biografia informa que é autor de mais de 30 obras e professor emérito da Escola de Comando do Estado Maior do Exército. Também é mestre em pensamento brasileiro pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); doutor em pensamento luso-brasileiro pela Universidade Gama Filho; e pós-doutor pelo Centro De Pesquisas Políticas Raymond Aron. Com tanto lastro intelectual, é difícil acreditar que V. Excia considere a Escola sem Partido “providência fundamental”. Afinal, é um grupo de amadores, que carece de saberes básicos sobre educação, e que divulga fantasias sobre influência de partidos políticos sobre estudantes dentro de escolas de Ensino Fundamental e Médio. Com tanto embasamento cultural, esperamos que Vossa Excelência não aceite esses ataques ao conhecimento.

Concordamos com sua opinião de que “doutrinação não é boa para o aluno, nos primeiros anos, no ensino básico, fundamental”, mas vamos mais longe: doutrinação não é boa nunca. O que forma a consciência cidadã é a discussão e a dúvida, o que é muito diferente de reprimir a expressão e incentivar a denúncia, ação altamente deseducativa do ponto de vista moral.

Falar sobre gênero, senhor ministro, é  falar de um conceito moral muito mais amplo, que abrange ideais de respeito e aceitação do outro, essenciais para o convívio. Todos têm a liberdade de ser como são, sem moldes determinados. Isso é respeitar o indivíduo, sem regulamentação do que ele é por decreto, numa interpretação oposta a que Vossa Excelência manifestou numa entrevista.

Saber que planeja melhorar as condições do ensino, nas escolas municipais, para “resgatar a qualidade do nosso ensino” é alvissareiro, porém ficou faltando esclarecer como isso será proposto e realizado.

Como educadores que dedicaram sua vida profissional à escola, pedimos que Vossa Excelência não permita que o país entre numa rota de retrocesso, a partir da instituição escolar. Para assegurar a laicidade da educação, como prevista na constituição brasileira, pedimos que não deixe que a exploração da credulidade dos despossuídos, por meio da religião, se imiscua no processo da educação escolar. O conhecimento e a cultura são patrimônio de um país. A arte atravessa a História da Humanidade e é expressão de civilização, que não pode ser demonizada.

E, com sua formação, Vossa Excelência sabe que criacionismo e darwinismo não são histórias equivalentes para serem objeto de opção. Crença e conhecimento são coisas muito diferentes. Uma é fé, e outra é ciência.

Até aqui, senhor ministro, suas declarações deixaram a desejar. Ainda aguardamos um plano criterioso que assegure a aprendizagem que vai preparar nossas crianças e jovens para enfrentarem, entre outros muitos desafios, o aquecimento global, as mudanças climáticas, as questões éticas da manipulação genética, da inteligência artificial, e os muitos problemas ainda desconhecidos, mas que sabemos que virão com a transformação cada vez mais rápida da realidade.

Grupo Critique

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