EDUCAÇÃO

Negar educação de qualidade é um projeto, não um cochilo

Em entrevista exclusiva, Gaudêncio Frigotto critica o esvaziamento das políticas públicas de incentivo à educação em âmbito federal e os constantes ataques aos professores
Por Cristiano Goldschmidt / Publicado em 30 de abril de 2019

Professor e escritor Gaudêncio Frigotto

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Em rápida passagem por Porto Alegre, RS, onde participou de evento organizado pelo Grupo de Pesquisa, Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (Tramse), realizado na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), no último dia 29 de abril, o professor Gaudêncio Frigotto (UFF e PPFH/UERJ) falou sobre os retrocessos nas políticas educacionais nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Antes da palestra, que contou com um auditório lotado, Frigotto concedeu entrevista exclusiva ao jornal Extra Classe. O professor demonstrou preocupação com o esvaziamento das políticas públicas de incentivo à educação e com os constantes ataques aos professores. Embora traçando um panorama sombrio, que diz ser típico de governos autoritários, o pesquisador mantém esperança na aliança de setores da sociedade que entendem que o caminho da valorização do professor e da educação são a única saída para o desenvolvimento de um país que se pretende forte, competitivo e respeitado no cenário internacional.

Extra Classe – Como o senhor avalia os cortes de investimentos nos cursos de Filosofia e Sociologia, anunciados recentemente pelo governo Bolsonaro?
Gaudêncio Frigotto – É um sinal muito ruim, porque expressa o processo de um bloco de poder que é anti-ciência, anti-conhecimento e, sobretudo, anti-pensamento que analisa com mais profundidade a sociedade, ou seja, tirar Filosofia, Sociologia, História, etc., é algo muito negativo pra uma sociedade que queira ser cientificamente e economicamente competitiva. Então, é um sinal extremamente preocupante, que é acompanhado por outras medidas que atacam o pensamento divergente, o pensamento que é minimamente elemento de um regime democrático.

Extra Classe – O crescimento das instituições de ensino superior mercantilistas e o avanço da Educação a Distância, inclusive no ensino médio, resultam em uma educação cada vez mais precarizada. Qual o impacto disso na formação dos jovens e para a sociedade como um todo?
Frigotto – O impacto é muito negativo do ponto de vista de se construir as bases de conhecimento e de visão de mundo de uma Nação. No fundo, o que está se aprofundando é aquilo que os nossos intelectuais que analisaram a nossa formação histórica, como Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, mostram que, diferentemente das sociedades das revoluções burguesas clássicas, a nossa burguesia optou por um papel de associação menor com os grandes grupos, mantendo uma sociedade e uma base alheia ao conhecimento. Então, na divisão internacional do trabalho, nós estamos postos para as tarefas do trabalho simples e também para a exportação de produtos de pouco valor agregado. A nossa chance, como vários livros mostram – eu citaria dois, O preço da riqueza, do alemão Elmar Altvater, que diz que você não transfere tecnologias sem perdas humanas e perdas econômicas, e A ilusão do desenvolvimento, de Giovanni Arrighi, que diz que se a gente não encontrar nosso caminho na ciência e tecnologia nós nunca vamos competir no mundo – é que nós teríamos grandes espaços. Então, o impacto disso é absolutamente negativo com a cidadania, com a construção de uma Nação soberana que deseja formar cidadãos plenos, criar espaços de trabalho complexos, de valor agregado, e também de exportação de produtos com valor agregado.

Extra Classe – Governos e empresários, apoiados por setores da imprensa, costumam desconsiderar a responsabilidade do Estado e responsabilizam os professores pelo fracasso escolar dos alunos e pela baixa avaliação da educação brasileira. Dessa forma, jogam a população contra os docentes e contra a instituição escolar. O que podemos fazer para tornar a sociedade aliada dos professores?
Frigotto – Eu prefaciei um livro que se chama Trabalho docente sob fogo cruzado, e há muito tempo eu chamava a atenção num debate para o fato de que o professor virou uma espécie de Geni, da música do Chico Buarque de Holanda, porque o professor é o culpado de tudo. Desde a década de 1990 foram implementando políticas que desautorizam, diminuem a formação docente, a função docente e o trabalho docente. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, tem o “adote uma escola”, “voluntariado na escola”, “amigos da escola” etc, um conjunto de perspectivas que coloca o professor contrário àquilo que era até a década de 1950, um elemento absolutamente considerado e respeitado na sociedade. Como recuperar isso? Acho que esse é o nosso grande papel enquanto professores, nas nossas organizações, nos próprios sindicatos, de que nós temos que chegar na escola, mas temos que chegar ao pai e à mãe, ou ao responsável, porque tem muita gente envolvida. E é um trabalho capilar que tem que ser feito, porque nós não temos grandes instrumentos de mídia pra todo dia dizer da importância do professor.
No livro Escola ‘sem’ partido, que conta com vários colaboradores, o professor Fernando Penna escreveu o artigo Escola sem Partido como chave de leitura do fenômeno educacional, e ele tem feito esse exercício de discutir com os pais o que é o projeto escola “sem” partido, de denunciar o professor, de colocar o professor como inimigo, o professor como estuprador. Ele dialoga com os pais e encontra ali expressões e manifestações interessantes. E penso que temos que usar os meios, inclusive os meios jurídicos, pra nos defender. Eu acho que, por exemplo, um programa de televisão, A escolinha do professor (Raimundo), como é apresentado, tem um papel brutal de deseducação da sociedade. Não fazem isso com o judiciário, não fazem isso com o bispo, não fazem isso com as forças armadas, mas fazem com o professor, então nós temos também que começar a usar do aspecto jurídico. Eu vi ontem (28/04) o presidente da República no twitter estimulando uma aluna que gravou a professora. Nós temos que dizer: pra você publicar isso eu tenho que te autorizar. Se alguém me grava, precisa da autorização de uso de imagem. Nós temos que começar a dizer e falar para os pais: ninguém vai entrar com gravador nem com celular dentro da minha sala de aula, porque eu estou sendo ameaçado, estou perdendo a minha liberdade. Nós temos que começar a buscar meios de defesa, e também de uma defesa coletiva, nas nossas instituições, sindicatos, organizações científicas, culturais. É um angu quente, como diria Brizola.

Extra Classe – Para além do aspecto jurídico, como fazer a sociedade refletir sobre esses episódios e de que forma combatê-los?
Frigotto – É interessante, porque eu recebi uma mensagem de um cara que eu conheci aqui em Porto Alegre, um italiano chamado Alessio Surian, que participou dos Fóruns Sociais Mundiais, e o Alessio, depois eu o convidei pra ir pro Rio de Janeiro, mandou uma mensagem pro Instituto Paulo Freire dizendo que na Alemanha, um tempo atrás, um partido de extrema direita tinha a mesma proposta pra que os alunos denunciassem os professores, e milhares de professores escreveram uma carta coletiva com seus nomes dizendo algo como “nós continuamos falando, tendo nossa liberdade de pensar, usamos nossos autores, e estamos nos denunciando coletivamente”. Isso mostra um poder coletivo, e eu acho que esse é o papel de discussão com os sindicatos, de dizer que não vou renunciar à perspectiva de utilizar o texto que eu acho que esteja dentro da minha autonomia e da minha liberdade que a constituição me faculta. Porque estão ao limite de proibir palavras e termos, e nós não podemos cair nessa armadilha. Eu gosto sempre de citar um pensador, Alfred de Vigny, que é citado num texto do Antônio Cândido, de 1972, “O caráter da repressão”, e ele, ao final, cita esse pensador, que no diário de prisão dele diz: “Não tenha medo da pobreza, nem da prisão, nem do exílio, nem da morte, mas tenha medo do medo”. E o Noam Chomsky dizia numa conferência que a violência e o medo são formas de gestão política hoje no mundo. Quer dizer, hoje nós temos que ir conquistando a sociedade, e a tua questão é muito importante nisso, porque é uma sociedade difícil de ser conquistada, porque massificada por “n” formas, por exemplo, visões de alienação brutal religiosa, que não tem nada com teologia. Nós temos que usar os nossos mecanismos pra renascer das cinzas.

Extra Classe – Qual seria o projeto de governo ideal para o desenvolvimento de um país?
Frigotto – Essa é uma pergunta difícil pra responder. Em nossa história, o Brasil que eu acho que aponta pra um projeto de sociedade construído de baixo pra cima vem da Semana da Arte Moderna, quando dissemos que nós temos o nosso pensamento, temos nossa literatura, nossa arte; vem das lutas pós-ditadura Vargas, das reformas de base, da educação pública, da arte, da cultura, depois interrompida por um golpe empresarial-militar. E aí vem o próprio debate da constituinte. A constituição foi um embate de pontos de vista e de lutas, mas ela trouxe “n” perspectivas exatamente antagônicas ao que temos aí. Então, é um Brasil que se constrói de baixo pra cima. E o que nós temos que romper é aquilo que o Luis Fernando Veríssimo diz muito bem naquele artiguinho O ódio, nós temos que romper o DNA da classe dominante, porque toda vez que existe a possibilidade de ampliar a Nação nos seus direitos, com as armas ou sem elas, vem um golpe. É por isso que a negação de uma educação de qualidade não é um cochilo, é um projeto, como dizia o Darcy Ribeiro. Mas nós temos memória e história de um país que pode se construir numa Nação. Florestan Fernandes dizia isso, quando, num de seus livros de sociologia, fez um pequeno balanço sobre a geração dele. Ele refletiu sobre o que queríamos, onde erramos, por que erramos e como aprender com o erro. Acho que isso dá o horizonte de que país queremos. Não erramos pra defender a Nação, construir uma Nação autônoma, e nem porque queríamos a democracia, o nosso erro foi de outro calibre, querer fazer isso com uma minoria prepotente junto a uma maioria desvalida. E o nosso papel é outro, é estar com o povo pra que ele adquira o quanto antes a revolução social necessária, que é o povo que faz. E a educação tem um papel fundamental nisso. A educação no sentido de compreensão da realidade, e é por isso que tem a Filosofia, a Sociologia. E a contrarreforma do ensino médio raleia isso e coloca aquele núcleo comum que é basicamente aprender a ler, escrever e fazer contas. Quebrando isso e dando ao povo o patamar de conhecimento que se tem hoje na ciência, aí as pessoas construirão uma nação. A tua pergunta é uma pergunta difícil porque às vezes as pessoas dizem: se eu conquistar o poder eu vou fazer isto, e o velho Marx dizia: está na tua cabeça, mas não necessariamente você faz isso, depende das forças que você tem pra cumpri-lo.

Extra Classe – De que forma a suspensão de investimentos na educação, iniciada pelo governo Temer e intensificada por Bolsonaro, afetará o país a curto, médio e longo prazo?
Frigotto – Afeta eu diria radicalmente, a curto prazo, no desemprego, por exemplo, com 25% de mestres e doutores desempregados. Desemprego brutal. Então, no curto prazo nós temos que salvar as pessoas que estão na inanição, muitas delas estão na rua. A médio prazo você perde o bonde da história, e a longo prazo nós seremos a periferia da história. E a longo prazo isso vai levar a uma coisa ainda mais grave do meu ponto de vista, levar àquilo que nós nunca experimentamos aqui, absolutamente perigoso, que é o resultado do incentivo de armar o povo. Armar pra defesa, mas se há arma do lado de lá, há arma do lado de cá. É só olhar a história de como surgiu as Farc: é quando os movimentos que lutam por direitos chegam à conclusão que pela via democrática não há caminho, e aí é longo o processo, como nós vimos na Colômbia, de mortes especialmente dos mais fracos.

Extra Classe – Como a sociedade e os educadores podem reagir contra a precarização da educação brasileira, minimizando seus efeitos? Qual nosso maior desafio educacional?
Frigotto – Acho que há um grande trabalho no nível do próprio magistério, ajudá-lo a perder o medo. Eu sinto muito o medo, e isso indica pouca organização, então estou estimulando a sindicalização, porque mais do que nunca é importante estar vinculado a alguma instituição, mais do que nunca poder ser representado, ter retaguarda, e o magistério é um campo importante, não por nada ele cria um movimento de “policial-professor” da sua autonomia. E é muito interessante, porque ele tem experiência principalmente com os jovens, e o jovem se abre com aquele professor que vai além da aula. O jovem tem mil demônios na cabeça, e num documentário, as mesmas perguntas que fazia aos jovens, eu fiz à Regina Novaes, que foi Secretária da Juventude no governo do Rio de Janeiro, e ela coloca uma questão muito interessante pra termos um movimento mais forte, e que nós temos que trabalha-la com os jovens, com os professores e com as famílias: Qual era o grande tabu da minha geração? Católico não casa com protestante, mulher casa virgem e homem tem que ter passado num prostíbulo, pelo menos. Era sexo e religião. Resolvemos isso? Não. Mas se avançou muito, do ponto de vista da religião o que tem de famílias formadas como resultado da união de diferentes religiões. Eu mesmo estou casado, juntado, abençoado por um pastor e um padre. Se as religiões dividem, por que ficar com elas? Mas eu respeito muito quem tem a sua religião, que é uma coisa da vida privada. Então, acho que nós temos que penetrar nesse universo em que o professor tem um papel interessante junto aos jovens. E qual é o tabu de hoje? O futuro do trabalho. O sexo e a religião nós superamos. O jovem não acredita mais na escola como futuro do trabalho, e ele tem razão em não acreditar, porque não adianta ter diploma se você não tem uma sociedade que lhe oferece condições ideais de trabalho.

Extra Classe – Qual seria o papel do professor nesse processo todo?
Frigotto – O professor ajudar a cada aluno, a cada um que chega junto dele e leva-lo àquilo que o Paulo Freire dizia: ampliar a sua visão de leitura do mundo. No bairro em que ele vive, na sociedade em que ele vive, e tentar contribuir para que mais gente entre na política no sentido de “P” maiúsculo. Política, dizia Rancière, é a luta dos que estão fora do direito pra pôr na agenda o seu direito. E o papel do professor é ajudar a que o aluno e o povo vejam os seus direitos, e se organizem pra conquistá-los.

Comentários