EDUCAÇÃO

Educação precisa ser vista como essencial também pelo MEC

Katia Stocco Smole vê falta de foco no MEC na continuidade de políticas educacionais importantes e na resolução de problemas, tanto no retorno às aulas, quanto para a pós-pandemia
Por Marcelo Menna Barreto* / Publicado em 13 de maio de 2021

Fotos: Catarina Chaves/MEC e Acervo Kátia Smole

Fotos: Catarina Chaves/MEC e Acervo Kátia Smole

Katia Stocco Smole é doutora na área de ensino de Ciências e Matemática e mestre em Didática pela Universidade de São Paulo (USP). Ativista das causas educacionais, ela preside a Câmara de Educação Básica no Conselho Estadual de Educação de São Paulo, integrou o Conselho Nacional de Educação e chegou a ser Secretária de Educação Básica no Ministério da Educação (MEC), em 2018.

Diretora do Instituto Reúna, que busca o desenvolvimento de conhecimento técnico-pedagógico para o ensino e a aprendizagem e uma contribuição para tornar o sistema educacional mais coerente, ela discorre nesta entrevista para o Extra Classe sobre os prejuízos acarretados para os estudantes devido à ausência presencial nas salas de aula.

Sua fala não se restringe às séries iniciais, já que participou dos Programas Ensino Médio Inovador e Solução Educacional para o Ensino Médio do Instituto Ayrton Senna.

Para a educadora, não basta que a educação seja vista como atividade essencial durante a pandemia, mas também como prioridade para os governos e, principalmente, para o MEC. Katia vê falta de foco no Ministério para a continuidade de políticas educacionais importantes e resolução de problemas, como a questão do retorno às aulas presenciais no Brasil, que diz ter “a triste marca de ser atualmente um dos países que há mais tempo não tem aulas na escola, nem no modelo semipresencial, ou híbrido”.

De fato, segundo a educadora, “nada anda” no que chama agenda ideológica da pasta. “Está brigando por coisas sem nenhuma importância, como a educação domiciliar, por exemplo.”

Pragmática, Katia não foge à polêmica sobre a volta às aulas em plena pandemia. Ela contraria, inclusive posições consideradas mais corporativas. “Estou feliz que finalmente ela (a vacina) esteja chegando aos educadores em pelo menos alguns estados. Mas não vai dar para vacinar todo mundo e só depois voltar para a escola. Hoje há inúmeros protocolos de segurança sanitária que permitem a volta”, polemiza.

Extra Classe – Completado quase um ano e meio de pandemia, somam-se três semestres letivos com fortes limitações tanto no acesso à educação, quanto na qualidade das aulas, quando ocorrem. Quais são os maiores prejuízos para os estudantes, em termos de conteúdo e sociabilidade?
Katia Smole – Estar sem escola presencial, ainda que seja em modelo híbrido, é uma perda em si. Estudantes em etapas diferentes têm perdas de aprendizagem. Por exemplo, já é sabido que na educação infantil as crianças perdem por não conviver com adultos diferentes da sua família, por não brincar com outras crianças, por não ampliarem os espaços de desenvolvimento. Há estudos mostrando a perda no desenvolvimento de linguagem oral, de autonomia, de convivência com os diferentes, e, claro, na ampliação de conhecimentos, que cabe à escola fazer.

EC – Como se percebem essas perdas na fase inicial?
Katia – Nos anos iniciais, especialmente entre sete e onze anos, pesquisas diversas no Brasil e no cenário internacional indicam que há perdas sensíveis nas aprendizagens em língua materna e Matemática, mesmo em situações em que há acesso adequado à tecnologia, como na Holanda, por exemplo. Os dados indicam que em Matemática as perdas são mais importantes do que em língua e que entre os estudantes de nível socioeconômico mais baixo, é possível não apenas que a aprendizagem não ocorra, como especialmente pode haver retrocesso de até três anos no cenário criado pela pandemia.

EC – E entre jovens e adolescentes?
Katia – Entre os adolescentes e jovens, os riscos estão centrados na socialização, no aumento de casos de depressão e, muito especialmente, na evasão escolar. O maior problema é que eles saem e não voltam. O país, que já tem problemas sérios com educação, deve ver isso se aprofundar muito mesmo. Para se ter uma ideia, foi feita uma avaliação das aprendizagens dos estudantes das escolas públicas estaduais que mostrou perdas imensas. Os alunos de quinto ano apresentaram níveis abaixo de terceiros anos em muitos casos. Considerando que esta rede investiu pesadamente em tecnologia e acesso, e manteve muitas atividades de busca ativa, de levar atividades para os estudantes de muitas formas, temos uma ideia do impacto que acontecerá em lugares nos quais ações desse tipo não aconteceram.

Foto: Cesar Lopes/PMPA

Foto: Cesar Lopes/PMPA

“Não há milagre. É preciso uma visão sistêmica articulada entre as diferentes esferas de atuação e responsabilidade política. É um projeto que precisa ser articulado na micropolítica e que deve envolver Ministério da Educação (MEC), governos estaduais e municipais, as equipes gestoras das secretarias, das escolas e os professores”


EC – Existe maneira de recuperar essas perdas?
Katia – Vamos precisar de uma força-tarefa para apoiar ações de redução de defasagem escolar e garantir aprendizagens essenciais. Priorização curricular, como a que propusemos nos Mapas de Foco desenvolvidos pelo Instituto Reúna, em parceria com o Itaú Social; apoio aos professores; uso de estratégias de ensino híbrido para ampliar tempo de acesso a atividades de apoio à aprendizagem; planejamento de ações para terceiros anos usando a ideia de continuum curricular e estratégias de buscar os alunos para que não desistam são algumas das possibilidades para interferir e evitar um desastre absoluto.

EC – Questão bem séria, não?
Katia – É preciso lembrar que podemos comprometer a aprendizagem e o desenvolvimento de uma geração inteira de cidadãos brasileiros e, como consequência, aprofundar o fosso de desigualdade que este país tem. Nenhum de nós, esteja onde estiver, pode dormir com a ideia de que não se comprometeu em evitar esse cenário desastroso. As grandes ações precisam ser coordenadas pelo Ministério da Educação em regime de colaboração com estados e municípios. Mas todos devemos apoiar de alguma forma, nem que seja orientando alguém próximo a não deixar que o filho saia da escola. É preciso que permaneçam para que possamos fazer com que aprendam.

EC – De que forma planejar um retorno e políticas que compensem os prejuízos no pós-covid?
Katia – Com foco no que importa: aprendizagem e apoio às escolas e aos professores. Não há milagre. É preciso uma visão sistêmica articulada entre as diferentes esferas de atuação e responsabilidade política. É um projeto que precisa ser articulado na micropolítica e que deve envolver Ministério da Educação (MEC), governos estaduais e municipais, as equipes gestoras das secretarias, das escolas e os professores. Além disso, é muito importante organizar políticas integradas das áreas da saúde e da educação. Assim, ainda que seja o planejamento de uma escola, é preciso considerar as questões pedagógicas, alinhadas a um plano maior, que envolve de acolhimento socioemocional das pessoas, segurança sanitária, atendimento à comunidade educativa, replanejamento do que será ensinado, como, para quem e onde será ensinado.

EC – Tipo?
Katia – Um ponto muito relevante é que a educação deve ser feita com base em evidências e, agora, além de dados de avaliação da aprendizagem, é preciso basear o planejamento de ações relativas à educação nas pesquisas que tratam de informações da covid-19 para os estudantes, seja no que diz respeito a contágio, vacinas ou aprendizagem e desenvolvimento.

EC – Estamos em um período marcado por uma forte discussão na sociedade. O retorno às aulas presenciais, que virou uma certa queda-de-braço entre profissionais de educação e pais preocupados em não se infectar e uma parcela das escolas, pais e governos querendo o retorno, mesmo em situação de alto contágio e poucas UTIs, como ocorre no Rio Grande do Sul e em outros estados. Como você vê isso?
Katia – Olha, eu sou favorável às aulas presenciais. Todas as pesquisas no mundo mostram que o contágio é bem menor na escola que em outros lugares. Se os profissionais da saúde não quisessem se arriscar, o que seria de nós? Por que um caixa de supermercado pode se arriscar trabalhando e os profissionais de educação que são tão ou mais essenciais que os da saúde não? Claro que aumentou o contágio e se passamos a sair, pode aumentar mais. Ocorre que estamos todos à mercê de que a educação não é prioridade, de fato, neste país, no meio de uma guerra de desinformação e que cria muita insegurança na sociedade, em especial, nas famílias. O Brasil tem a triste marca de ser atualmente um dos países que há mais tempo não tem aulas na escola, nem no modelo semipresencial, ou híbrido, como temos chamado. Não é possível mais conviver com isso. A vacina é importante, estou feliz que finalmente ela esteja chegando aos educadores em pelo menos alguns estados, mas não vai dar para vacinar todo mundo e só depois voltar para a escola. Hoje, há inúmeros protocolos de segurança sanitária que permitem a volta. Alguns que me leem agora podem dizer: ‘Olha, mas e as escolas sem isso, sem aquilo’. Bem, elas devem ter o apoio necessário, mas também ser a exceção e não a regra. Eu estou bem feliz de a educação ter sido colocada como atividade essencial. Ela sempre foi, mas, mais do que nunca, precisa socialmente se assumir assim. Escola não é dispensável.

Foto: Acervo pessoal/Katia Smole/Divulgação

Foto: Acervo pessoal/Katia Smole/Divulgação

“A única agenda que importa é a da aprendizagem. O ministério, atualmente, tem uma agenda ideológica, está brigando por coisas sem nenhuma importância, como a educação domiciliar, por exemplo. Sem foco, sem continuidade de políticas importantes, sem equipe educacional focada em resolver problemas, mais do que criá-los, nada anda”

EC – Como você entende que seria a forma de retorno mais adequada, se considerarmos que morreu mais gente nos primeiros meses de 2021 do que em todo o ano passado, quando as escolas estavam fechadas?
Katia – Não tenho uma resposta para isso. Não há bala de prata. Como eu disse antes, deve ser uma combinação de empenho, planejamento, vontade política e ciência. Uma coisa é certa: a explosão de contágio se deu por falta de vacina, falta de política nacional coordenada de apoio à prevenção de contágio e, sim, também por irresponsabilidade das pessoas que se aglomeraram em muitos lugares. Aliás, boa parte do contágio na reabertura das escolas pode ter vindo de fora para dentro da escola, desse período de descaso com protocolos de uso de máscara, distanciamento social. Abriram bares e restaurantes e todo mundo correu para lá. E a escola é que deve ser responsabilizada? Não!

EC – Poderia nos citar algum exemplo internacional desse retorno?
Katia – Na Inglaterra. No início do ano, o contágio também foi enorme, a escola fechou por três semanas, mas houve o compromisso público assumido pelo primeiro-ministro Boris Johnson de que ela abriria antes do comércio e dos bares. E isso, de fato, aconteceu, antes da vacina, e sem picos de contaminação.

EC – Em geral, qual é o resultado?
Katia – Bem, as pesquisas mostram que, nos países com os melhores resultados de aprendizagem escolar, as escolas nunca fecharam ou fecharam por pouco tempo. Nesses locais, é impensável não ter escola. Há saídas, mas é preciso foco e valorização da educação por todos.

EC – De que forma, em seu entendimento, o Ministério da Educação poderia contribuir para, digamos, compensar esses prejuízos que tivemos até agora? Falta planejamento? Falta norte político e pedagógico?
Katia – Basta que faça seu trabalho, isto é, coordene as políticas educacionais que deve coordenar, em parceria com estados e municípios. Ocorre que nos perdemos na agenda. A única agenda que importa é a da aprendizagem. O ministério, atualmente, tem uma agenda ideológica, está brigando por coisas sem nenhuma importância, como a educação domiciliar, por exemplo. Sem foco, sem continuidade de políticas importantes, sem equipe educacional focada em resolver problemas, mais do que criá-los, nada anda.

EC – O que existe de planejamento nesse sentido? E, se não existe, como deveria ser feito?
Katia – Se existe, não é claro, não é público e nem percebido. Eu creio que já falei bastante do papel de coordenação da política nacional, com escuta aos estados e municípios, que o Ministério da Educação deve ter e fazer.

EC – Qual é, no seu entendimento, o maior gargalo imposto pela pandemia? Agravou deficiências já conhecidas da educação brasileira?
Katia – Não há um só gargalo. Mas, sem dúvida, a desigualdade de acesso à tecnologia foi um fator muito relevante. Isso aliado ao tempo de distanciamento da escola e à falta de coordenação nacional para evitar o desastre educacional me faz pensar que muitos dos avanços conseguidos nos últimos 20 anos estão seriamente comprometidos.


*Com a colaboração de César Fraga.

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