EDUCAÇÃO

Formação para professores ou cursos caça-níqueis?

A proliferação de cursos milagrosos para uma das áreas mais estratégicas da educação preocupa os especialistas; em geral com falsa gratuidade ou a preços irrisórios e em EaD
Por Flávio Ilha / Publicado em 10 de agosto de 2022

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Formação para professores ou cursos caça-níqueis

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Já pensou em estudar Pedagogia de graça, sem precisar de nenhum pré-requisito, sem sair do lugar e com reconhecimento do Ministério da Educação? Pois é exatamente o que anuncia o portal Educaweb – embora isso não seja verdade. A proliferação de cursos milagrosos para uma das áreas mais estratégicas da educação preocupa os especialistas: além dos enganosos “cursos gratuitos”, há oferta de formação exclusivamente em ensino a distância (EaD) e com mensalidades irrisórias, às vezes inferiores a R$ 100.

O 0caso da Educaweb é um dos mais emblemáticos. O marketing da empresa oferece, de maneira enganosa, formação gratuita em várias áreas profissionais. Além de Pedagogia, campos tão díspares quanto Farmácia, Direito, Economia e até um improvável “curso de autismo”.

A fórmula é simples: basta se inscrever nas plataformas de cada área, escolher a formação e assistir aos vídeos hospedados no site. Não há nenhum pré-requisito para acessar os conteúdos. A avaliação final consiste em uma prova online com 10 questões, das quais o formando precisa acertar pelo menos seis.

Só que, para garantir a obtenção do certificado, que, teoricamente, vai turbinar as carreiras de quem se dispuser a assistir às aulas, é preciso pagar uma taxa que varia de R$ 24,90 para um curso de 10 horas-aula até R$ 99,90 para uma formação de 360 horas. Se o pagamento for por Pix, a Educaweb garante que o documento fica disponível em até cinco minutos.

O certificado, entretanto, não vale nada, embora a propaganda da empresa, no caso do curso de Pedagogia online, sugira que o aluno sairá apto para o mercado de trabalho. Apesar de tratar as videoaulas como formação na área da educação, inclusive para ingresso em um mercado de trabalho “constantemente aquecido”, a empresa reconhece que não habilita profissionais. “Nossos cursos são na modalidade livre, de aperfeiçoamento profissional. É possível utilizar (os certificados para diversos fins, como progressão ou promoção. Mas para ser pedagogo, precisa de graduação”, informou um comunicado da empresa enviado à reportagem.

O Educaweb é um dos campeões de queixas no portal Reclame Aqui, com mais de uma centena de postagens relatando problemas variados – desde certificados pagos e não entregues até cursos incompletos – e pedidos de devolução dos valores investidos.

“Procurei no Ministério da Educação se o certificado é válido, mas não aparece nada dessa empresa”, garantiu uma usuária do interior de São Paulo. A professora Marhen Ornellas, da rede pública de Mato Grosso, também não teve o certificado emitido pela empresa aceito pela Secretaria de Educação do estado porque não constam, no documento, nem data nem local de realização do curso. A professora não conseguiu a progressão funcional prometida pela propaganda da empresa.

Questionada sobre o reconhecimento por parte do ministério, a Educaweb alega que os cursos livres, modalidade na qual se enquadra, “têm total amparo e base legal”. Mas admite que não cabe ao MEC reconhecer sua certificação. “O aluno deverá checar as exigências contidas nos editais de concursos, processos seletivos e empresas onde pretende apresentar o certificado, pois cada instituição tem normativos educacionais próprios”, informou. Além disso, a Educaweb adverte que, após emitido, o certificado não é reembolsável.

Graduações a preço de banana

Não são as únicas pegadinhas nos cursos de formação de educadores que proliferam pelo país. No Rio Grande do Sul, dezenas de faculdades anunciam graduação em Pedagogia com mensalidades abaixo de R$ 200. Em pelo menos uma delas, com aulas exclusivamente a distância, o valor fixado é de R$ 99. “Vemos essas ofertas com muita preocupação na medida em que precarizam o processo de formação docente. Só quem ganha são as escolas mercantilistas, que deixam de investir em qualidade para privilegiar o lucro”, afirma o professor Sani Cardon, diretor do Sinpro/RS.

Nas três unidades da Anhanguera em Porto Alegre, a licenciatura em Pedagogia custa a partir de R$ 159 mensais utilizando apenas a nota do Enem para ingresso. É possível escolher as modalidades a distância e semipresencial, na qual os alunos vão à faculdade apenas uma vez por semana. A avaliação do curso pelo MEC varia de notas 2 e 3 – dependendo do índice –, em uma escala que vai até 5.

Nas quatro unidades da Estácio de Porto Alegre, por sua vez, a licenciatura em Pedagogia é oferecida por mensalidades a partir de R$ 169 na modalidade a distância – um desconto de 60% sobre o valor original. É possível inscrever-se em poucos minutos, utilizando a nota do Enem ou o chamado “ingresso simplificado”, em que o aluno envia apenas uma carta de apresentação. A avaliação do MEC também é insatisfatória, situando-se entre as notas 2 e 3.

“É um escândalo. A preponderância dessa lógica mercantil está acabando com a qualidade acadêmica. Hoje, oito em cada dez alunos de Pedagogia no país cursam suas graduações a distância”, alerta o educador Ivan Gontijo, diretor da ONG Todos pela Educação.

Segundo ele, o crescimento desenfreado desses cursos resulta em aulas meramente teóricas e nenhuma prática de ensino para os futuros professores. “Tanto os cursos presenciais quanto a distância são muito teóricos. O estudante lê sobre os grandes pensadores da educação e tem aulas expositivas, mas com poucas oportunidades de estágios supervisionados e raras discussões de casos reais”, alerta.

Em 2010, o índice de ensino a distância nos cursos de formação de professores mal a chegava a 30%. Em 2017, esse índice passou a 60%, enquanto no ano passado se aproximou dos 80%. No período, o número de novos alunos na área cresceu 163% na modalidade a distância e recuou 14% na modalidade presencial.

Isso acontece, de acordo com Gontijo, pela confluência de alguns fatores. “Não só existe uma grande demanda por novos professores, como os custos de se manter um curso a distância de licenciatura são menores do que em algumas carreiras que demandam, por exemplo, equipamentos de laboratório. Além disso, outras áreas que também têm alto número de matrículas no presencial, como o Direito, não podem ser oferecidas na modalidade EAD, devido, em parte, à pressão das categorias profissionais”, explica.

O perfil desses estudantes, por outro lado, é feminino e majoritariamente pobre. Segundo um levantamento da IDados, empresa especialista em pesquisas de educação, ao ser comparada com as demais carreiras de graduação, a Pedagogia se destaca pela prevalência quase total de estudantes mulheres (93%) e pela maior incidência de estudantes que vêm de famílias com poucos recursos.

Estudantes vulneráveis

Para Frei David Santos, diretor-executivo da Educafro, ONG com sede em São Paulo focada na inclusão de estudantes negros, a carreira de Pedagogia tem esse perfil porque é estruturado para atrair a classe social mais vulnerável: mulheres pobres. “Existe um total desinteresse da classe média em ser professor”, pontua.

“O curso a distância tem sido uma opção em vista da adaptação ao horário, a disponibilidade de tempo, para cuidar de filho, cuidar da casa”, diz Santos. Conforme ele, as pessoas que estudam e trabalham são, em geral, de famílias com renda mais baixa, que não podem se dedicar apenas à faculdade. Além disso, ele ressalta o fato de que as faculdades privadas investem em cursos de Pedagogia pelo baixo investimento exigido.

O novo regulamento dos cursos de Pedagogia, aprovado em 2019, reconhece que a formação de professores deve estar estritamente associada à prática, que “precisa ir muito além do momento de estágio obrigatório, devendo estar presente, desde o início do curso, tanto nos conteúdos educacionais e pedagógicos, quanto nos específicos”. As normas preveem pelo menos 800 horas de prática pedagógica, metade das quais em estágio supervisionado e outra metade em sala de aula. Poucas faculdades, porém, atendem a essa determinação.

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