EDUCAÇÃO

Contato corporal no processo de ensino e aprendizagem não é assédio

Seminário do Sinpro/RS debateu limites entre a interação do professor com seus alunos em uma dimensão pedagógica e a diferença entre toque e assédio
Por Gilson Camargo / Publicado em 27 de maio de 2023

Foto: Igor Sperotto

Debate foi realizado de forma presencial e virtual na manhã de sábado e estabeleceu a diferença entre a interação em sala de aula e o assédio

Foto: Igor Sperotto

Realizado na manhã de sábado, 27, pelo Sinpro/RS, o Seminário Limites entre o Afeto e o Assédio na Escola debateu as diferenças e os limites na interação entre os educadores e seus alunos em uma dimensão pedagógica e o constrangimento moral.

Com ampla participação de professores e profissionais da saúde, o evento realizado de forma híbrida, na sede do Sinpro/RS em Porto Alegre e também on-line, estabeleceu as diferenças entre o toque corporal que acontece como interação fundamental na formação de vínculos afetivos e o toque que inadequado, que viola o corpo e constrange.

Também foram abordadas as implicações psicológicas e legais do assédio e o papel dos professores na proteção das crianças e adolescentes.

Foto: Igor Sperotto

Mesa: a professora Silvane Isse, a psicóloga Luciane Susin, a diretora do Deca, Virgínia Machado, e a diretora do Sinpro/RS, Cecília Farias, mediadora do debate

Foto: Igor Sperotto

O debate foi mediado pela professora Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e coordenadora do Núcleo de Apoio ao Professor contra a violência (NAP), projeto do Sindicato que acolhe os professores em situações de constrangimentos no ambiente escolar e acadêmico.

De acordo com a dirigente, a proposta do debate surgiu a partir de situações relatadas pelos professores ao NAP.

O Seminário contou com painéis da professora de educação física da Univates Silvane Fensterseifer Isse, orientadora do Programa Residência Pedagógica em Educação Física e coordenadora do Projeto de Extensão Universitária Marias: Corpo e Linguagem na Instituição Prisional; da psicóloga Luciane Susin, psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto Appoa, com atuação em psicologia clínica e psicanálise na Equipe Especializada em Saúde da Criança e do Adolescente, na Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre; e da delegada de polícia Caroline Virgínia Bamberg Machado, diretora da Divisão Especial da Criança e Adolescente (Deca/DPGV/PC).

Limites entre afeto e assédio

Foto: Igor Sperotto

Silvane Isse: “A pandemia foi um momento de distanciamento corporal e a gente sentiu a falta desse olhar, o que tem a ver com a perda de empatia”

Foto: Igor Sperotto

“Há uma linha muito tênue entre o contato corporal relacionado ao afeto e à orientação do professor ao aluno e uma situação de assédio”, destacou Silvane Isse.

“A gente diz, dá uma organizada aqui no teu abdômen, na tua postura, e quando aquele aluno não tem uma boa percepção e consciência do próprio corpo, a gente ajuda nesse processo perceptivo”, ilustrou.

“Em sendo professora de educação física é desse lugar que eu vou falar, desse lugar onde a gente trabalha o tempo inteiro com o corpo, onde o toque corporal é tão presente e tantas vezes tão necessário e relevante, mas não dá pra gente esquecer que vivemos em uma cultura de assédio onde o toque corporal e a erotização do toque são questões muito próximas e muito misturadas”.

Silvane destacou a importância do toque corporal para a formação de vínculos. “Para a construção de afetos e do processo de socialização dos alunos, de sensação de pertencimento. O tato, o contato, o toque são um dos sentidos fundamentais para que a gente possa entender, compreender e perceber o mundo. E quanto menores forem os nossos estudantes, mais importante e mais necessário é esse toque no processo de aprendizagem”, explicou.

A professora citou o sociólogo e antropólogo David Le Breton, professor da Universidade de Strassburgo e autor do livro Antropologia dos sentidos (Vozes, 2016): “cada um de nós vai ter um limite confortável entre o toque compreendido como afeto, como ação pedagógica e o toque que agride, que viola, que desestrutura, que produz silêncio e indisciplina”.

Denunciar situações de assédio

Ela destacou o papel dos professores em perceber e denunciar situações de assédio e a violência não física.

“A escola é um lugar onde se faz muita piada e muitos professores fazem de conta que nada está acontecendo. Muitas vezes as pessoas se preocupam com a agressão quando ela é física, mas o assédio acontece em diferentes dimensões e a agressão que se dá de forma oral marca até muito mais que o assédio físico”, diferenciou.

Segundo Silvane, o contexto cultural, onde as questões de corpo e sexualidade ocupam um lugar muito central o tempo inteiro, aparece muito nas salas de aulas.

“Há um apelo. As masculinidades e as feminilidades estão muito pautadas no quanto somos capazes de produzir atração, produzir o desejo do outro. Muitas vezes, todo o funcionamento de uma pessoa acaba se voltando para isso, e todo toque acaba sendo pensado nessa perspectiva erótica. Mas o toque não é só isso”, alerta.

“Em um tempo em que a violência, a discriminação e o preconceito estão tão presentes, lutar pela empatia na escola é fundamental”, ressaltou.

“A forma como se ampliam essas experiências interfere amplamente na forma como nossos estudantes vão estar na escola. Quanto mais os nossos estudantes se sentem confortáveis, acolhidos, escutados mais confortáveis se sentem para vivenciar o que é fundamental para a aprendizagem”, apontou.

Segundo ela, os educadores devem deixar claras as intenções nessa interação com os alunos.

“Pergunte ao aluno como ele se sente cada vez que alguém se aproxima e se essa proximidade é agradável. A pandemia foi um momento de distanciamento corporal e a gente sentiu a falta desse olhar, o que tem a ver com a perda de empatia”, reparou.

Silvane citou que um estudo da Unicef mostrou que o assédio sexual na rede privada é maior do que na rede pública.

“Muitas vezes a gente acha que é uma questão da escola pública. Não é. É questão de uma sociedade contemporânea que tem comportamentos que são aprendidos e produzidos culturalmente”.

“Os temas transversais como as questões de gênero e sexualidade precisam estar na pauta da escola”, alertou.

“A gente teve um período esquisito em que tentaram nos convencer que não podemos falar de ideologia de gênero, mas hoje a gente começa a retornar essas discussões com mais tranquilidade. A gente precisa pensar juntos formas de tratar dessas questões e não fazer disso um assunto velado”, concluiu.

Infância, puberdade e adolescência

Foto: Igor Sperotto

Luciane Susin: “a tarefa é sustentar o limite entre o afeto e o assédio, a diferença e a simetria nessas relações, pois não sabemos qual é o limite de cada adolescente”

Foto: Igor Sperotto

A psicóloga Luciane Susin destacou que a diferenciação entre toque e agressão devem ser percebidas de acordo com os diferentes tempos dos alunos.

“Devemos perceber como isso se apresenta na infância, na puberdade e adolescência”, apontou.

“A dimensão do afeto e do acolhimento na infância passa pelo toque, mas como continência, cuidado, de assegurar à criança sua consistência corporal, indicando a separação entre ela e o outro para que ela possa apropriar-se do seu corpo”, conceituou.

Ela destacou que as professoras da educação infantil assumem na relação com as crianças a construção da individuação, “mas sempre numa condição que não é de posse”.

Com relação ao tempo da puberdade, destacou que é uma espécie de recolhimento. “É um período de preparação. A criança tem que dar muito mais conta das transformações corporais do que propriamente estar colocando isso na relação com o outro”.

Ao destacar que a maior incidência de violência sexual é contra adolescentes, a psicóloga, destacou a necessidade de um “olhar diferenciado” para a adolescência. “Na sua constituição subjetiva, o adolescente se depara com questões como o questionamento da sua própria identidade, da identidade dos pais e do laço social. Passa do micro ao macrossocial e sofre uma mudança no estatuto do sujeito. Essa passagem é um momento lógico e não cronológico”, explicou.

Segundo ela, em torno de 30% a 40% das situações que chegam para atendimento em saúde mental infanto-juvenil em Porto Alegre são de abuso e violência sexual.

Rito de passagem

De acordo com Luciane, os adolescentes vivem um movimento de desfazer o gênero, de indefinição e experimentação, do despertar feminino contra a violência de gênero. “O corpo toma na adolescência uma dimensão muito central. É por isso muitos autores afirmam que nessa fase o corpo é palco. Na medida em que a sociedade contemporânea não tem muitos ritos que identificam a passagem da infância para a adolescência, isso acaba se produzindo no corpo, na forma de cortes, tatuagens, piercing”, identificou.

Nesse sentido, disse, “a vulnerabilidade e o vulnerável que se colocam também na lei, tanto na infância com a sua dependência do outro, quanto na adolescência por esse momento crítico, o cuidado que a gente tem que ter na relação de produzir uma continência e um cuidado, a dimensão do traumático fica muito mais presente e é muito mais difícil se situar diante do que está se produzindo na adolescência”, constata.

Para a psicóloga, cabe aos professores estabelecer a confiança na relação com os alunos. “A escola é um espaço de vida. Ali o lugar do adulto, do professor, assegura ao aluno a confiança de poder experimentar, ele sabe que o outro, o professor, não vai sair do seu lugar, vai acolher o que está acontecendo com ele”.

Por outro lado, ressaltou, “quando a gente pensa onde está o limite entre o afeto e o assédio, talvez a principal tarefa seja sustentar o limite, a diferença e a simetria nessas relações, pois não sabemos qual é o limite de cada adolescente”.

Para ela, escutar a criança e adolescente, mais do que um procedimento político-pedagógico, deve se constituir como uma reparação do silêncio histórico a que foram submetidos no que se refere à violência. “Afinal, a legislação que protege a criança e o adolescente é muito recente e ainda vem numa construção. Nosso trabalho como profissionais envolvidos tanto na educação quanto na saúde é o reconhecimento da violência, o rompimento com o silenciamento pra que a gente não opere numa lógica de desmentido. É importante que a gente possa abrir a possibilidade de escuta”.

Assédio nas escolas

Foto: Igor Sperotto

Caroline Machado: “Falar pra vocês que são educadores sobre assédio é muito importante, porque dentro da escola certas situações são naturalizadas. Vocês podem dar voz aos pedidos de socorro das crianças e adolescentes”

Foto: Igor Sperotto

De acordo com a delegada Caroline Virgínia Bamberg Machado, delegada de polícia, diretora da Divisão Especial da Criança e Adolescente (Deca/DPGV/PC) e mediadora do projeto Papo de Responsa, as situações de assédio sexual dentro das escolas são um tema relevante que cada vez mais tem chegando às autoridades.

Ao destacar as diferenças básicas entre os delitos, ela lembrou que o assédio sexual já não se restringe às relações corporativas, mas se estende à relação aluno-professor, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Os demais crimes são a importunação sexual, um delito relativamente novo, e a injúria.

“Já foi dito que não é só o toque que causa sofrimento, mas a questão verbal também, as injúrias, os xingamentos, as piadas de mau gosto que a gente cresceu escutando e não deu a atenção devida”.

De acordo com a policial, existe uma cultura muito forte no sentido de naturalizar esse tipo de violência.

“A violência verbal está por trás de muita coisa, de alunos, de adultos que vão se construindo em pessoas violentas. Falar pra vocês que são educadores sobre isso é muito importante pra nós como polícia também porque dentro da escola certas situações são naturalizadas. O que percebo é que muitas vezes a escola não toma partido nessas situações”.

Caroline destacou que os professores exercem um papel fundamental na questão de detectar casos de violência e de repassar essas informações para os canais competentes.

Ela lembrou que o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a obrigação de comunicar qualquer tipo de crime que envolva crianças e adolescentes, mas que isso não é cumprido.

A Lei Henry Borel (14.344) promulgada no ano passado, tipifica como crime a omissão, no artigo 26, com pena de seis meses a três anos de prisão, podendo ser aumentada se da violência resulta algum tipo de lesão corporal grave ou morte.

A delegada destacou que muitos crimes sexuais contra crianças e adolescentes que estão sob investigação foram denunciados por professores e relatou casos de escravidão virtual por assediadores e aliciamentos feitos pelas próprias mães de crianças e adolescentes, e enfatizou que “a polícia só vai agir se ela tiver conhecimento de algum fato, vocês vão dar voz a esse pedido de socorro, nós não vamos agir de ofício”. O disque 100 funciona e assegura o anonimato do denunciante, reforçou.

Segundo a policial, ocorrem em média 1,3 mil denúncias por ano nas três delegacias especializadas de Porto Alegre e 90% dos casos são de abusos sexuais.

“Antes de instaurar um procedimento, a denúncia é verificada, pois existem muitos casos de alienação parental, mas 30% a 40% das denúncias são verdadeiras. São crianças que em algum momento deram um sinal de que estavam sendo vítimas de abuso, mas ninguém percebeu”.

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