EDUCAÇÃO

Como os transtornos psicológicos impactam nas salas de aula

A realidade hoje é complexa, com jovens doentes, sem tratamento, e professores exaustos, fazendo verdadeiros malabarismos para enfrentar esse universo tão complexo e desafiador que é a mente humana
Por Caren Souza / Publicado em 14 de março de 2024
Como os transtornos psicológicos impactam nas salas de aula

Foto: Igor Sperotto

Quando os transtornos interfere no comportamento, principalmente quando gera agressividade, é fundamental ter um laudo com o diagnóstico para a solicitação de um professor de apoio

Foto: Igor Sperotto

Que problemas como depressão e ansiedade vêm crescendo entre crianças e adolescentes, não é novidade. Somado a isso, outros transtornos que envolvem diretamente a saúde mental crescem e podem impactar não apenas o aluno, mas também em toda a turma e corpo docente. São diagnósticos como autismo, dislexia, discalculia, Transtorno Opositor Desafiador (TOD), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e, ainda que mais raro, Síndrome de Tourette. Mais do que a construção do conhecimento, os professores precisam lidar, ainda, com os efeitos que um ou mais casos geram em cada turma.

Ainda que não haja números precisos para os devidos problemas, sabe-se que são uma realidade. Dados do Ministério da Saúde (2019) apontam que 1% a 3% de crianças e adolescentes têm depressão. Quanto ao autismo, ocorre aproximadamente em 1 a cada 36 crianças, conforme estudo do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA).

A falta de dados precisos já evidencia a ausência de políticas públicas para a saúde mental infantojuvenil. A realidade hoje é complexa, com jovens doentes, sem tratamento, e professores exaustos, fazendo verdadeiros malabarismos para enfrentar esse universo tão complexo e desafiador que é a mente humana.

Ansiedade no topo dos problemas

Como os transtornos psicológicos impactam nas salas de aula

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Já imaginou estar em uma aula de Língua Portuguesa e, entre um uso de crase e uma concordância, um aluno desmaia? A professora de Português e Literatura Carla Souza da Silva, docente em uma grande escola estadual de São Leopoldo, sabe o que é isso. E já aconteceu mais de uma vez, resultado de crises de ansiedade. “Desmaios, crises de choro ou saída repentina, literalmente correndo, é o que presencio nas crises”, destaca.

Aliás, esse tem sido o maior complicador em meio a tantos problemas que surgem no dia a dia. “A maioria dos alunos com diagnóstico faz acompanhamento médico e psicológico, o que já traz mais qualidade de vida e torna a rotina mais tranquila. Mas a ansiedade nem sempre é tratada e acaba gerando mais dificuldades”, pontua a professora, que aprendeu a reconhecer os sinais, muitas vezes antes de chegar às últimas consequências da crise.

“Quando percebo que um aluno está muito nervoso, já ofereço auxílio e peço ajuda da supervisão. Assim ele pode sair, de forma monitorada, até se recompor”, frisa. Carla destaca que, de todo o conhecimento adquirido na universidade, este não estava no currículo. “Não fui preparada para socorrer alunos, mas aprendi na prática. Quando há mais de um estudante com problemas, a única saída é pedir o apoio de toda a turma e respeitar as necessidades de cada um”, pontua.

Das sete turmas que teve em 2023, foram muitos os diagnósticos: TDAH, fobia social, autismo, depressão, deficiência intelectual, e um caso de Síndrome de Tourette, que já está em tratamento e não manifesta sintomas. “É preciso ter muito jogo de cintura para manter a turma equilibrada. Entender que há dias mais difíceis e, nesses dias, é preciso ser flexível”, aponta.

Como os transtornos psicológicos impactam nas salas de aula

Foto: Igor Sperotto

Dislexia é um dos transtornos mais comuns nas escolas

Foto: Igor Sperotto

“O mais complexo, entretanto, é a negligência familiar no que se refere aos transtornos. Vemos muitos alunos precisando de ajuda e sendo ignorados pelos pais”, avalia. Em 2023, percebendo a dificuldade de um aluno em realizar algumas provas, Carla notou que havia algo diferente. Com o apoio do Atendimento Educacional Especializado (AEE), identificou dislexia e discalculia no estudante de 16 anos. “Ele relatava muita dificuldade para escrever, embora conseguisse ler. Até então ninguém havia percebido, e a família pensava ser uma desculpa dele”, revela.

Negligência parental: o calcanhar de Aquiles da escolar

Assim como ressaltou a professora Carla, outra professora que prefere não se identificar, e que atua há 30 anos em uma das escolas mais tradicionais de ensino privado do Vale do Sinos, faz coro. “Já tive inúmeras situações difíceis, mas quando a família não aceita, é o pior. Tanto a criança quanto professores precisam de um amparo, de uma rede de apoio para o melhor aproveitamento do estudante”, defende a docente do primeiro ano do ensino fundamental.

Quando os transtornos interfere no comportamento, principalmente quando gera agressividade, é fundamental ter um laudo com o diagnóstico para a solicitação de um professor de apoio. “Por outro lado, mesmo diante de problemas complexos, quando temos mais um profissional, conseguimos resultados excelentes”, completa.

Dos inúmeros casos de transtornos mentais, dois ficaram marcados em sua memória. De um aluno com espasmos neuronais, que se desorganizava e agredia colegas, se autoagredia e cortava roupas e cabelos seus e dos seus pares. “Com esse problema neurológico sério, mesmo com todo o engajamento da família e médicos, ele nunca teve uma interação positiva com colegas”, lamenta. Outro aluno, não diagnosticado, era extremamente agressivo e quebrava coisas em sala de aula. “A família tentou de tudo, mas sem sucesso, e ele foi retirado da escola no meio do ano por não conseguir se adaptar”, lembra.

Apesar do apoio da escola, a docente acredita que a inclusão ainda tem muito a evoluir. “Precisamos de mais capacitação de todo o corpo escolar, um trabalho mais denso. As demais crianças precisam compreender a existência e a necessidade dos alunos de inclusão de forma mais consistente”, sentencia. “Importante ter a aceitação das famílias também. Muitas vezes, ainda as encontramos no processo do luto, sem entender realmente as necessidades do seu filho, o que compromete a adaptação da criança”, destaca.

Conheça os principais transtornos

Depressão: Falta de vontade de brincar ou estudar, choro constante, falta de apetite, entre outros sintomas. Na infância, pode ser causado pela separação dos pais, perda de um ente querido ou animal de estimação. Na adolescência, soma-se a outros fatores.

Transtorno de ansiedade: Medo sem motivo aparente, angústia constante, necessidade de estar perto dos responsáveis. Desencadeia diversos sintomas físicos, como choros, tremores, desmaios, taquicardia.

Dislexia: Transtorno de aprendizagem que pode afetar habilidades básicas de fala, leitura e escrita, em diferentes níveis. Conforme estimativa do Instituto ABCD, referência em dislexia, quase 4% dos brasileiros são afetados.

Discalculia: Transtorno que afeta a aprendizagem de matemática, impossibilitando a identificação de sinais matemáticos, montagem de operações, classificação de números e conceitos matemáticos em geral.

Transtorno do Espectro Autista (TEA): Condição neurológica que pode afetar comportamento, fala, socialização e, em muitos casos, aprendizagem. Afeta 1 a cada 36 crianças.

Transtorno Opositor Desafiador (TOD): Caracterizado por comportamento desafiador, agressividade, impulsividade, teimosia, dificuldade em lidar com frustrações. Tudo isso em níveis extremos. O acompanhamento pode envolver psicólogos, neurologistas e psiquiatras.

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH): Além da dificuldade em manter atenção, contribui para baixa autoestima e dificuldade nos relacionamentos.

Síndrome de Tourette: Distúrbio neuropsiquiátrico que causa tiques motores ou vocais frequentes. Geralmente, começa na infância, com picos entre os 10 e 12 anos de idade, tendendo a diminuir na adolescência.

Em casa, o aprendizado não tira férias

Uma criança com dificuldade de aprendizado pode precisar de reforço até mesmo nas férias. É o caso de Paulo, 10 anos, diagnosticado com TOD, TDAH e deficiência intelectual. “Além do auxílio de uma estagiária durante o ano, ele tem sugestão de atividades para as férias, principalmente leituras”, conta o publicitário Alexandre Bitello.

Ele e o assistente de sinistro Jona Lamb são pais por adoção e ainda estão se adaptando às questões escolares, mas já contabilizam muitos progressos. Ainda antes de obter a tutela, começaram a conhecer o histórico escolar e familiar de Paulo para entender suas necessidades. “Na primeira aproximação, soubemos que ele brigava muito na escola e que tinha dificuldades na aprendizagem. Nessa fase, porém, não podíamos interferir”, conta Bitello.

O pai destaca que, por conta da distância necessária, não puderam fazer nenhum tipo de mudança e acabou sendo reprovado. No ano seguinte, em 2023, realizaram a mudança de escola e, já com o laudo, ele passou a receber atendimento especializado no AEE, que ajudou bastante.

A questão da agressividade e da dificuldade de autorregulação, inerentes ao diagnóstico, também melhorou muito com o tratamento médico. Aos poucos, as brigas com colegas, ameaças às professoras e resistência em fazer as atividades foram amenizadas, e o ano escolar de 2023 foi considerado um sucesso pela família, terminado com aprovação escolar. “O primeiro passo foi buscar alinhamento com a escola”, reconhece o pai.

Além da sala de recursos, Paulinho, como é carinhosamente chamado, passou a ter reforço escolar semanal no contraturno e conteúdo adaptado. “É importante compreender a criança, despertar nela a sensação de pertencimento à escola e empoderá-la em cada tarefa”, destaca.

Marcelo Schmitz, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Ufrgs e preceptor em Residência Psiquiátrica da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Silvana Corbellini, professora do curso especialização em Psicopedagogia e Tecnologias da Informação e Comunicação EAD da Ufrgs

Foto: Igor Sperotto

Professores também adoecem

Os professores também sofrem um agravamento de saúde mental frente à alta incidência de problemas em crianças e adolescentes. O apontamento é da professora do curso de especialização em Psicopedagogia e Tecnologias da Informação e Comunicação EAD da Ufrgs, Silvana Corbellini. “Além disso, os professores e gestores nem sempre possuem formação adequada para identificar e lidar com essas questões, o que agrava os casos dentro das escolas e leva ao fenômeno da medicalização como única opção para lidar com o diferente”, analisa.

A docente acredita na prevenção e promoção da saúde mental como fatores indispensáveis para reduzir os casos, mas está ciente da precariedade das escolas. “A formação, no entanto, é um requisito imprescindível”, enfoca. Ela aponta, ainda, outros fatores crônicos como a diferença de classes, a pobreza extrema, as drogas e falta de condições mínimas de acolhimento.

Silvana defende que os gestores devem se preocupar também com a saúde mental dos docentes, que estão no cotidiano dos estudantes. “A escola precisa ir além dos conteúdos curriculares. É preciso pensarmos em uma educação de afetos, na construção de uma cultura de paz, na crítica em relação à desinformação, no pensamento científico como propulsor de novas respostas”, sugere.

Cada vez mais, segundo Silvana, observa-se a necessidade de espaços de fala, de diálogo dentro das escolas. Espaços de acolhimento, de pertencimento para que os jovens desenvolvam empatia, respeito mútuo e aprendam que a cooperação é mais importante do que a competição – valores nos quais a sociedade e a própria escola ainda se pautam – são necessários. “Trabalhar em prol de uma transformação da educação é necessário, visando também às questões socioemocionais”, ensina.

Somente 20% dos jovens recebem atendimento

A saúde mental de crianças e adolescentes apresenta um quadro gravíssimo no que se refere aos atendimentos. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), metade das doenças mentais se inicia em torno dos 14 anos de idade. A incidência em crianças e adolescentes gira em torno de 15%, porém vários estudos apontam que na adolescência essa taxa fica ao redor de 20%. O que mais preocupa, nessa estatística, não são os números absolutos, mas o acesso ou a busca por tratamento. Estima-se que somente 20% dos jovens com transtornos mentais recebam atendimento.

“Os outros 80% vão passar anos sofrendo e tendo seus quadros agravados, diminuindo sua qualidade de vida e sua produtividade”, lamenta o médico Marcelo Schmitz, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Ufrgs e preceptor em Residência Psiquiátrica da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Marcelo Schmitz, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Ufrgs e preceptor em Residência Psiquiátrica da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Marcelo Schmitz, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Ufrgs e preceptor em Residência Psiquiátrica da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

O impacto da saúde na vida escolar é enorme. Conforme Schmitz, além de baixo rendimento e evasão escolar, adolescentes tendem a piorar o relacionamento com seus pares ou figuras de autoridade. Como resultado, surgem os casos de agressão, gravidez indesejada, DTSs (fruto do comportamento de risco característico de muitos transtornos mentais), automutilação e suicídio. “Essa realidade não pode ser jogada para baixo do tapete. Escola, famílias e poder público devem trabalhar juntos”, alerta.

Schmitz considera, ainda, que muitos transtornos mentais são desenvolvidos ou acentuados pela história familiar. Assim, além de buscar informações com os familiares, muitas vezes é necessário sugerir um acompanhamento também para eles. “É importante buscar um diálogo tranquilo, pois muitos pais se sentem perseguidos ou atacados quando procurados para falar sobre o assunto”, esclarece.

 

 

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