EDUCAÇÃO

O que as crianças dizem ainda precisa ser melhor escutado

A pesquisadora Adriana Friedmann defende que adultos precisam de formação e preparo para aprender a escutar as crianças
Por Débora Ertel / Publicado em 26 de março de 2024

O que as crianças dizem ainda precisa ser melhor escutado

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

A pesquisadora Adriana Friedmann defende que adultos precisam de formação e preparo para aprender a escutar as crianças. Para ela, já existe um “grande movimento” de profissionais que já têm essa consciência diferenciada sobre a escuta das crianças, mas ainda é necessário conscientizar e sensibilizar a sociedade como um todo a esse respeito.

Se tamanho não é documento, por que quando o assunto é dar importância ou simplesmente prestar atenção naquilo que as crianças falam, em muitas vezes a conversa fica de escanteio?

Em um mundo onde o avanço da tecnologia acelerou a comunicação e as redes sociais dão voz a quem tiver celular e sinal de wi-fi, a escuta que leva a sério o que os pequenos comunicam ainda vai na velocidade da internet discada.

Criadora e coordenadora do Mapa da Infância Brasileira e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento (Nepsid), Adriana Friedmann tem sido uma voz latente quando o assunto é a escuta das crianças, em especial das crianças pequenas.

Pedagoga, mestre em Educação e doutora em Antropologia, desde a década de 1980 atua como pesquisadora em instituições de educação e cultura, defendendo a necessidade de aprender a ouvir os sons que a infância produz.

A escuta defendida não é aquela realizada de qualquer jeito, apenas para que a criança não fique mais repetindo perguntas ou tomando o tempo do adulto, feita sem treino ou compreensão do mundo infantil. A escuta preconizada é a feita com qualidade e atenção, exercício que a sociedade, conforme Adriana diz, ainda não está pronta para desenvolver. “Por que a sociedade não está preparada? Porque, realmente, falta consciência e formação do quanto que as crianças trazem é importante para as suas vidas. O quanto escutá-las é importante”, dispara.

Segundo a pesquisadora, dar atenção para aquilo que as crianças falam, expressam de diferentes formas e com diferentes linguagens não é uma preocupação ainda na formação e na orientação das famílias, de professores e pediatras, entre outros profissionais que fazem parte do desenvolvimento da infância. De acordo com ela, falta o conhecimento a respeito da importância que a escuta tem. “É um tema muito novo, é uma pauta nova que as ciências vêm trazendo e as pesquisas vêm mostrando importância”, pondera.

O que as crianças dizem ainda precisa ser melhor escutado

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Questionada sobre quais bagagens uma criança que não se sente ouvida leva para a vida adulta e quais impactos sociais, intelectuais e de relacionamento essa “não experiência” traz, Adriana responde que as consequências não podem ser ignoradas. A estudiosa chama atenção que, com frequência, o fato de a criança não ser aceita, de não ser como ela é ou de não ser acolhida na sua singularidade, são frustrações e traumas de não ter sido ouvida, “olhada, vista e reconhecida na sua potência”.

O impacto, em primeiro lugar, é emocional e o segundo, intelectual. “No sentido que talvez ela seja pressionada e haja expectativas em cima de cada criança, para que ela atenda a uma idealização dos pais e da escola. Não necessariamente ela empreenda um caminho para trabalhar com o seu perfil, com a sua potência, com seus interesses, suas necessidades e, justamente, também com suas limitações”, avalia. Adriana lembra, ainda, que essa experiência da infância, em geral, afeta os relacionamentos entre os pares na vida adulta.

“Não há ninguém que não seja impactado quando não escutado, quando não reconhecido”, ressalta.

E aqui entra um tema importante, que, inclusive, foi revisto, mais uma vez, na Conferência Nacional de Educação (Conae): o não cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE). A lei tem como uma das metas universalizar a educação infantil, uma oportunidade de os pequenos serem vistos e escutados. Para Adriana, as crianças são atores sociais e protagonistas. “E elas já, desde que nascem, trazem na sua pessoa um jeito de ser, uma potência, uma vida. Elas fazem parte de qualquer sociedade.

E a sua voz e seu jeito de ser importam”, declara. Por isso, o fato de a meta do PNE não ter sido cumprida não pode ser justificado apenas pela falta de recursos. “Mas com a falta de conscientização a respeito da importância que tem, principalmente, os três primeiros anos de vida na formação do indivíduo e na potência desse adulto futuro”, avalia.

Apesar de a escola ser lugar de criança, a escuta qualificada ainda não é uma prática comum a todos os educandários. E isso acontece, como se diz no popular, porque o “buraco é mais embaixo”. Para a escola se tornar um canal de escuta qualificada, a pesquisadora defende um trabalho de formação e orientação, em primeiro lugar, dos adultos: professores, educadores, gestores e de toda a equipe da escola.

“De fazer um trabalho, primeiro, de orientação com eles, de colocar em prática esses momentos. De escutas diferentes dos momentos de ensino, de momentos de abertura, silenciamento e conexão com as crianças para perceber e conhecê-las mais a fundo. Intermediando com os momentos em que, sim, o professor, o educador precisam transmitir conhecimentos”, descreve.

De acordo com a especialista, esse é o primeiro passo para que, depois, seja possível abrir uma outra porta de comunicação com as famílias. “E aí, sim, poder orientar as famílias e conscientizá-las sobre a importância que tem em escutar e conhecer seus próprios filhos através do brincar, das suas linguagens e produções”, defende.

Em Novo Hamburgo, por exemplo, a Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (Omep-NH) promoveu o curso “Fala criança! Tô na escuta! A participação infantil na construção da cidadania ativa” no ano passado. A formação foi híbrida e reuniu, de julho a novembro, 50 educadores de seis municípios diferentes. Os participantes tiveram que elaborar um projeto de pesquisa sobre o assunto, sendo que 22 participaram de uma exposição.

Quando o cuidado com as crianças é substituído por telas

O que as crianças dizem ainda precisa ser melhor escutado

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Outro desafio a ser vencido no aprendizado de aprender a escutar é o uso exagerado de telas que, por diversas vezes, já fez até a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitir alertas sobre os riscos ao desenvolvimento das crianças. Diante de vídeos que se repetem, há uma criança que pouco se comunica. Para Adriana, o tema das telas na vida da criança é muito grave, situação que piorou na pandemia, quando os dispositivos serviram como meio de comunicação com a família ausente.

“É um exemplo das telas substituindo o cuidado de pessoas de carne e osso. Isso, na verdade, é muito grave, porque a criança está vivendo um desequilíbrio, ela fica muito conectada cognitivamente com imagens que afetam profundamente seu emocional e a paralisa corporalmente.

As crianças ficam muito hipnotizadas e desconectam das suas emoções e percepções”, argumenta.  A sugestão de Adriana é encontrar um equilíbrio, com a criança tendo contato com telas o mais tarde possível. Além disso, ela orienta que, para os pequenos desenvolverem a criatividade, é necessário contato com diversos materiais, com artes, música e contos. “Principalmente que ela possa brincar sozinha e junto com outras crianças e adultos”, comenta.

Por fim, a doutora em Antropologia sugere uma de suas obras para leitura para aqueles que desejam saber mais sobre o tema. É a publicação A Vez e a Voz das Crianças – escutas antropológicas e poéticas das infâncias, da editora Panda Educação, de 2020. “É um livro onde eu trago não só questões mais conceituais desse universo, mas também ideias e caminhos para poder realizar esse tipo de processo de escuta”, finaliza.

 

 

 

Comentários