EDUCAÇÃO

Entidades criticam PL do Ensino Médio antes de votação no Senado

Em análise na última comissão, entidades usam audiências para tentar reverter pontos de retrocesso que podem impactar quase oito milhões de estudantes
Por César Fraga / Publicado em 15 de abril de 2024
Entidades criticam PL do Ensino Médio antes de votação no Senado

Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília/GDF

Após a aprovação do projeto de lei na Câmara, entidades ligadas à educação se manifestaram a favor de algumas das mudanças, mas ainda demonstram muita preocupação com vários pontos do texto que vai à plenário

Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília/GDF

O futuro de quase 8 milhões de alunos atualmente matriculados no ensino médio está, neste momento, nas mãos do Senado Federal. Aprovada na Câmara dos Deputados em 20 de março passado, a nova “reforma da reforma” do ensino médio, tem a missão de adequar as alternativas de formação dos estudantes à realidade das escolas. O texto muda alguns pontos da reforma do ensino médio de 2017 (Lei 13.415/17) , o chamado o Novo Ensino Médio e altera também a proposta original do Executivo.

Agora, no Senado, a Comissão de Educação e Cultura (CE) começa a analisar o projeto de lei para a reforma do novo ensino médio. Depois de passar pela CE, o texto seguirá direto para votação no Plenário. A matéria deve ser votada ainda no mês de abril.

Uma das principais mudanças trazidas pelo projeto é a recomposição da carga horária da formação geral básica, que vinha sendo reivindicada por especialistas e movimentos ligados à educação. A carga mínima na formação geral, que na regra atual é de 1,8 mil horas, é alterada pela proposta para 2,4 mil horas, somados os três anos.

O projeto do Executivo, é uma alternativa apresentada pelo governo para substituir o novo ensino médio (NEM). A reforma que levou ao NEM foi definida em 2017, durante o governo Michel Temer, por meio de medida provisória, e as novas regras só começaram a ser aplicadas de forma escalonada em 2022 para parte dos alunos. Desde a aprovação, as mudanças vêm sendo criticadas pela comunidade escolar e por entidades da área, o que levou o Ministério da Educação a suspender a aplicação do modelo em 2023, para revisão das normas.

Entidades criticam PL do Ensino Médio - Gráfico 1

Fonte: Agência Senado

Fonte: Agência Senado

A reforma (Lei 13.415, de 2017) alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB — Lei 9.394, de 1996) e, entre outros pontos, determinou que disciplinas tradicionais passassem a ser agrupadas em áreas do conhecimento (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas). Cada estudante também passou a montar a sua própria grade de disciplinas, escolhendo os chamados itinerários formativos, para se aprofundar em uma das áreas. Essa divisão por áreas do conhecimento, que havia sido mudada no projeto do Executivo, foi reincorporada ao texto na Câmara.

O total de horas do ciclo é de 3 mil — são previstas 5 horas em cada um dos 200 dias letivos de cada ano. Para complementar a carga de 2,4 mil horas de formação geral básica, os alunos ainda vão escolher áreas para aprofundar os estudos. Pelo projeto, serão 600 horas em itinerários formativos (em vez das atuais 1,2 mil), que deverão proporcionar o aprofundamento em alguma das áreas de conhecimento.

Entidades criticam PL do Ensino Médio - Gráfico 2

Fonte: Agência Senado

Fonte: Agência Senado

A proposta determina que os sistemas de ensino deverão garantir que todas as escolas de ensino médio ofertem no mínimo dois itinerários formativos. A montagem dos itinerários dependerá de diretrizes nacionais a serem definidas pelo Ministério da Educação com os sistemas estaduais, e as escolas deverão criar programas que orientem os alunos no processo de escolha.

A dificuldade na implementação dos itinerários, especialmente no ensino público, foi um dos principais pontos criticados no NEM. A falta de estrutura e de recursos das escolas, a fragmentação dos conteúdos e a oferta restrita de itinerários foram apontadas como barreiras que levariam ao agravamento da desigualdade entre rede pública e privada.

Ex-ministro de Temer alterou proposta do Executivo na Câmara

O projeto enviado pelo governo federal ao Congresso foi aprovado pela Câmara dos Deputados na forma de um substitutivo (texto alternativo) do deputado Mendonça Filho (União-PE), que, na época da primeira reforma, era ministro da Educação.

O substitutivo trouxe outras alterações com relação ao texto proposto pelo Executivo, além da divisão em áreas de conhecimento. Uma delas é a retirada da obrigatoriedade do ensino de língua espanhola. Pelo texto, o espanhol, como disciplina não obrigatória, poderá ser ofertado como outra língua estrangeira preferencial no currículo, de acordo com a disponibilidade dos sistemas de ensino. Para comunidades indígenas, o ensino médio poderá ser ministrado em suas línguas maternas.

No texto aprovado, também foram incluídas emendas para garantir benefícios a estudantes do ensino médio de escolas comunitárias que atuam no âmbito da educação do campo. Assim como os alunos de baixa renda que cursaram todo o ensino médio em escola pública, eles poderão ter acesso aos benefícios de bolsa integral no ProUni para cursar o ensino superior em faculdades privadas e à cota de 50% das vagas em instituições federais de educação superior. Poderão contar ainda com a poupança do ensino médio (programa Pé-de-Meia, criado pelo governo federal em janeiro de 2024).

Impacto atingirá 7,7 milhões de estudantes

Entidades criticam PL do Ensino Médio antes de votação no Senado Federal

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O Novo Ensino Médio foi alvo de severas críticas e de inúmeros pedidos de revogação, até que o MEC resolveu bancar a reforma da reforma para buscar uma via intermediária que passasse no Congresso Nacional

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

As mudanças em discussão podem atingir 7,7 milhões de alunos. Foi esse o número de matrículas do ensino médio registradas em 2023, segundo dados do último Censo Escolar, divulgado em fevereiro pelo Ministério da Educação. Os dados mostram que a grande maioria dos estudantes do ensino médio (87,1%) está na rede pública. Já os alunos matriculados em escolas particulares representam 12,9%.

Entidades criticam PL do Ensino Médio - Gráfico 3

Fonte: Censo Escolar/Arte: Agência Senado

Fonte: Censo Escolar/Arte: Agência Senado

Para críticos das regras do NEM, os alunos de escolas públicas, que são maioria, são justamente os que mais perdem com as mudanças feitas em 2017. Entidades ligadas à educação apontam risco de um aprofundamento ainda maior das desigualdades entre estudantes das redes pública e privada. No novo modelo, segundo especialistas, os jovens de escolas públicas cursam itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade e ofertados precariamente, já que muitas escolas não têm infraestrutura adequada.

De acordo com o Ministério da Educação, os estudantes, principais interessados nas mudanças, foram ouvidos no processo de elaboração do novo projeto. Um dos subsídios foi o resultado de uma consulta pública feita em 2023. Essa consulta incluiu audiências públicas, oficinas de trabalho e reuniões com entidades, seminários e consultas on-line com estudantes, professores e gestores escolares sobre a experiência de implementação do ensino médio no país.

O texto aprovado prevê a formulação das novas diretrizes nacionais para o aprofundamento das áreas de conhecimento até o fim de 2024 e a aplicação de todas as regras pelas escolas a partir de 2025. Para os alunos que estiverem cursando o ensino médio na data de publicação da futura lei, haverá uma transição para as novas regras.

Debate no Senado iniciou antes da aprovação na Câmara

De acordo com a assessoria de comunicação do Senado, o trabalho de reformular as regras do novo ensino médio começou muito antes da chegada do projeto aprovado na Câmara. Ao longo de todo o ano de 2023, a Subcomissão Temporária para Debater e Avaliar o Ensino Médio no Brasil (CEensino), ligada à Comissão de Educação, fez oito audiências públicas, em que foram ouvidos representantes dos diversos setores interessados, como governo, entidades ligadas à educação, trabalhadores, sociedade e estabelecimentos de ensino.

O resultado foi um relatório com várias propostas de mudanças e aprimoramentos no NEM, inclusive com uma nova distribuição das horas destinadas às disciplinas obrigatórias e da parte diversificada do currículo. A relatora da subcomissão temporária, senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), também será responsável por relatar na Comissão de Educação o projeto já aprovado pela Câmara.

“Nossa ideia é aprovar rapidamente o texto no âmbito do Senado. Um dado importante é que a discussão principal não é a favor ou contra a reforma do ensino médio anterior. Na verdade o ensino médio já tem enormes desafios, e a própria reforma procurou, então, dar essa resposta”, disse a senadora, que se reuniu com o ministro da Educação, Camilo Santana, e equipe do MEC para discutir o projeto de lei.

A celeridade, na visão da senadora, é possível porque grande parte do debate já se deu ao longo de 2023, tanto nos trabalhos da subcomissão, que ouviu todos os setores envolvidos, quanto na consulta pública do governo. O resultado, disse Dorinha, não pode perder de vista o principal objetivo, que é melhorar a qualidade do ensino médio no Brasil.

A senadora Teresa Leitão (PT-PE), que foi presidente do colegiado, também ressaltou o peso dos debates da subcomissão na discussão que começa agora no Senado.

“Esse é um tema urgente e sensível, que precisa ser avaliado. É importante ressaltar, inclusive, que foi discutido profundamente na CEensino, criada especialmente com esse objetivo. Na terça-feira, 9, a Comissão de Educação aprovou requerimento para a primeira audiência pública sobre o projeto, em data a ser definida. Devem participar representantes do Ministério da Educação; do Conselho Nacional de Secretários de Educação; do Fórum Nacional de Educação; dos conselhos estaduais; da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entre outros.

Entidades apresentam pontos de preocupação e controvérsia

Após a aprovação do projeto de lei na Câmara, entidades ligadas à educação se manifestaram a favor de algumas das mudanças, mas ainda demonstram preocupação com outros pontos do texto. Entre os itens comemorados, estão a recomposição da carga horária para a formação básica e a definição dos componentes curriculares que integram as quatro áreas do conhecimento que compõem a Base Nacional Comum Curricular.

Em nota técnica divulgada logo após a aprovação, o movimento Todos pela Educação afirmou que o texto da Câmara é um passo importante para a reestruturação da reforma do ensino médio. De acordo com a entidade, o texto final é fruto de ampla discussão e participação social. Apesar de manter a essência do modelo, o projeto corrige múltiplos problemas da reforma original, avalia o Todos, que pede agilidade na tramitação.

“É fundamental que esse processo se dê de forma célere a partir da tramitação no Senado, de modo a permitir que as redes possam operacionalizar as mudanças a partir de 2025. É preciso que a tramitação seja concluída em algumas poucas semanas, já que, após aprovação da lei, será necessário avançar com ajustes em diversas diretrizes operacionais e normas infralegais, seja no âmbito do Conselho Nacional de Educação, seja nos 27 conselhos estaduais de Educação”, diz a nota.

Além disso, o movimento sugere pontos que podem ser aprimorados pelos senadores. Entre eles, está o estabelecimento de um percentual mínimo para a formação geral básica no caso de expansão da carga horária (jornada integral, por exemplo). O grupo também sugere a obrigatoriedade de que os estados definam metas de expansão de matrículas em tempo integral e medidas para o Enem que não engessem definições técnicas sobre o formato da prova.

A comitiva no CNTE, neste mesmo dia, percorreu os gabinetes dos parlamentares para dialogar a aprovação da Política Nacional do Ensino Médio (PL 5.230/2023) em seu formato original, enviado pelo Ministério da Educação (MEC). No encontro com os parlamentares e seus assessores, o grupo entregou um material informativo onde constam os pontos principais de reivindicação da CNTE: elevação da carga horária da formação geral básica para 2.400 horas, agregando todos os conteúdos disciplinares previstos na legislação; oferta obrigatória da língua espanhola no ensino médio, podendo integrar o currículo do ensino fundamental a partir do sexto ano, a depender das condições estruturais dos sistemas e redes de ensino; Maior articulação entre a formação geral básica e a parte diversificada do currículo, prevendo a oferta interdisciplinar e presencial de ao menos dois percursos por unidade escolar, conforme proposto no PL n.º 5.230/23; prioridade da oferta integrada de educação técnica profissional ao ensino médio; exclusão do notório saber do art. 61 da LDB, como forma de qualificar e valorizar a docência.

PL fere o ECA, Lei de Estágios e a própria Lei de Aprendizagens, dizem entidades 

Já a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação coassinou nota das entidades que integram a Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas destacando que lei que regula o novo Ensino Médio, aprovada na Câmara e agora sob avaliação no Senado, não garante as exigências da legislação que regula as relações de aprendizagem, estágio e trabalho de adolescentes. São elas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), Lei de Aprendizagem (Lei 10.097/00); Lei do Estágio(Lei 11.788/08).

A nota foi subscrita por outras cinco entidades (Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará, Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua, Ação Social Franciscana e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

No documento, as entidades denunciam que o PL 5.230/2023 subverte o sentido de aprendizagem na forma da Lei, ao reconhecer as práticas obtidas no “trabalho” por pessoas menores de 16 anos, inclusive de forma voluntária, o que coloca ainda mais riscos de violações de direitos. Ainda, a nova lei incorre em risco de indução e legitimação do trabalho infantil, que se refere ao trabalho realizado por menores de 14 anos, isto porque existem estudantes que chegam ao Ensino Médio com esta idade ou idade inferior.

Além disso, a possibilidade de “trabalho voluntário supervisionado” também significa risco de legalização, através da proposta de lei aprovada, de trabalho análogo à escravidão, aumentando as vulnerabilidades de crianças e adolescentes em todo o país, principalmente, daquelas e daqueles mais desfavorecidos economicamente.

Outro ponto de forte crítica ao PL das entidades é que “O novo novo Ensino Médio representa um retrocesso no debate que vem sendo realizado desde a aprovação da reforma em 2017, quando o Dep. Mendonça Filho (União-PE) era ministro da educação do governo do então presidente Michel Temer. Do mesmo modo, o texto que será analisado pelo Senado Federal desconsidera pactos sociais importantes como a consulta pública realizada em 2023, as manifestações populares pela revogação da reforma do ensino médio e o documento final da Conae, que traz uma série de proposições para uma política estrutural de ensino médio de qualidade. É importante lembrar que a etapa nacional da Conferência, ocorrida em janeiro de 2024, contou com cerca de 2.500 participantes, tendo sido precedida por conferências estaduais e, estas, por conferências municipais e intermunicipais nos respectivos territórios, mobilizando mais de 1 milhão de brasileiras e brasileiros”.

Para as entidades integrantes da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas, a precarização da educação pública afeta pessoas “com classe social e raça definidos”. Os movimentos pedem que o Senado faça as correções nesses pontos, que, em sua visão, “representam imensos riscos para a segurança e a garantia de direitos de crianças e adolescentes, especialmente aquelas mais vulnerabilizadas e invisibilizadas”.

Formação técnica e abertura à privatização

Também após a aprovação do PL na Câmara, o Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, formado por professores e pesquisadores e entidades de defesa do direito à educação, de todo Brasil, expressou “profunda preocupação” em relação ao futuro do ensino médio no país. Para o coletivo, apesar da vitória que significa a garantia das 2,4 mil horas mínimas para a formação geral básica, não é possível comemorar a versão final do texto aprovado pelos deputados.

Uma das críticas é sobre as regras da formação técnica e profissional. Nesse caso, o texto determina que  a formação geral básica será de 1,8 mil horas. Outras 300 horas poderão ser destinadas ao aprofundamento de estudos em disciplinas da Base Nacional Comum Curricular diretamente relacionadas à formação técnica profissional oferecida. As 900 horas restantes ficarão exclusivamente para as disciplinas do curso técnico escolhido pelo aluno quando ofertado pela escola, totalizando assim 3 mil horas.

Essa carga reduzida na formação geral para os cursos técnicos, de acordo com os especialistas que assinam a nota, não garante um ensino de qualidade para todos. Para os professores e pesquisadores, essa parte do texto cria e agrava “uma segmentação interna ao sistema escolar brasileiro — um dualismo educacional que ampliará desigualdades”.

O presidente da Comissão de Educação, senador Flávio Arns (PSB-PR), garantiu que a análise do projeto no colegiado vai dar atenção especial às mudanças propostas nessa modalidade de ensino.

“Precisamos discutir, muito de perto, todo o conjunto, mas, em particular, o ensino técnico e profissionalizante, para que de fato seja um projeto que atenda às necessidades. Precisamos olhar bem o que veio da Câmara, ver se está de acordo com os debates que vêm acontecendo aqui no Senado Federal” disse Arns.

Os pesquisadores também atribuem ao projeto falhas como abertura de brechas para a privatização (com a possibilidade de contratação de instituições privadas na oferta de formação técnica e profissional) e para a oferta de ensino à distância na educação básica — admitido “excepcionalmente”, diz a proposta. Outro ponto questionado é a autorização de contratação de profissionais com “notório saber” (não formados) para a docência nos cursos de formação técnica e profissional, o que leva à precarização do trabalho dos professores, avaliam os críticos.

 

  • Com informações da Agência Senado, Agência Câmara, CNTE e Campanha Nacional Pelo Direito à Educação

 

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