GERAL

Infância querida, infância perdida

Em 1990, o escândalo da descoberta de atividade escrava, inclusive infantil, numa fazenda de propriedade da Volkswagen, no Pará, escancarou uma aberração que ocorre há milhares de anos em todo o mundo
Por Márcia Camarano / Publicado em 7 de outubro de 1997

Em países subdesenvolvidos como o Brasil, o trabalho escravo assume proporções de tragédia: a exploração da mão-de-obra de crianças e adolescentes.

Contudo, nesta década, tempos de globalização, o desemprego é o fantasma que assombra as famílias. Para muitas, se os adultos não conseguem um posto de trabalho, a saída é colocar suas crianças na atividade produtiva. Tanto faz se na condição de empregado na agricultura, no trabalho doméstico ou qualquer outro que, se não se traduzir em dinheiro, pelo menos significará uma boca a menos para comer.

NESTA REPORTAGEM
Porém, muitas atividades são nocivas à formação física e psicológica das crianças. O resultado é desastroso e se constitui num trauma que será carregado para o resto da vida. Garotos carregam pedras mais pesadas que seus físicos podem suportar em pedreiras, o cheiro de cola na manufatura de sapatos, empurravam carrinhos de mão carregados de pedra ou cimento e carrinhos de carga em feiras livres e centrais de abastecimento. A situação frequentemente denunciados pelos sindicatos de garimpeiros, do setor coureiro-calçadista, dos comerciários.

Crianças que perderam a infância, obrigadas a trocar a escola e as brincadeiras por trabalho. Dificilmente conseguirão se livrar da pobreza e ignorância que os empurraram para o mundo dos adultos. “O que você vai ser quando crescer?” A pergunta sempre ouvida quando se é garoto já não faz mais sentido para quem, cedo, é forçado a trocar a escola por um posto de trabalho.

Pesquisa realizada pela Fundação de Economia e Estatística (FEE), entre 92 e 95, com garotos entre 10 e 17 anos aponta que, na Região Metropolitana de Porto Alegre, 6% de crianças de 10 a 14 anos e 33% entre 15 e 17 anos não frequentam a escola. Se já estão no mundo do trabalho, estes índices sobem para 35% entre as crianças e 50% entre os adolescentes.

Nesta mesma região, 20% das crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos participam do mercado de trabalho. Da faixa dos 10 aos 14 anos, a participação é de 6,3% e, dos 15 aos 17 anos, de 46%.

Em todo o Brasil, mais de quatro milhões de crianças menores de 14 anos trabalham, o que é contra a lei. O artigo 227 da Constituição federal, no parágrafo 3º, limita a idade mínima de 14 anos para admissão ao trabalho e proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 14 anos, salvo se na condição de aprendiz.

A vereadora Maria do Rosário (PT) utiliza dados do Dieese para afirmar que “o Rio Grande do Sul ostenta o título de campeão da utilização de mão-de-obra infanto-juvenil, em relação aos demais estados. Ela integra o Comitê Pela Erradicação do Trabalho Infantil e Contra a Exploração do Trabalho Infantil, formado por diversas entidades interessadas em atacar o problema.

“Queremos desmistificar a frase ‘melhor estar trabalhando do que na rua’. Achamos que a rua é lugar de brincar. Por que a criança tem que trabalhar e não estudar? Não é hora de ela trabalhar e não está preparada para isso”.

A psicóloga Anete da Cunha, que trabalha com adolescentes em Novo Hamburgo, no Projeto CIP (Centro de Iniciação Profissional), corrobora a opinião da vereadora. Para ela, além dos fatores econômicos e sociais, há o aspecto cultural. Os pais acham que, trabalhando cedo, as crianças estão se educando.

Miséria, crime e palavras bonitas

É tão grande a preocupação com a exploração da mão-de-obra infanto-juvenil que, em nível nacional, as próprias crianças já se organizaram e promoveram dois encontros em Brasília para discutir formas de erradicar o problema. Conseguiram inclusive audiência com o presidente da República. Mas, como resposta, obtiveram apenas palavras bonitas e nada de concreto para a solução do problema.

No Rio Grande do Sul, talvez a segunda região depois do nordeste que mais se utiliza do trabalho infantil (não há números específicos, mas a vereadora Maria do Rosário acredita que seja esta a realidade) já surgiram organismos específicos para tratar do assunto. Existe o Comitê Pela Erradicação do Trabalho Infantil e Contra a Exploração do Trabalho Infanto-Juvenil.

Começou na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e, até o ano passado, era apenas uma comissão especial. Nesta época, foram feitas várias audiências públicas para se detectar os locais que empregam crianças e adolescentes, ouvir quem os emprega e apurar as responsabilidades de quem está fora da lei. E, é claro estabelecer medidas a serem encaminhadas para solucionar o problema.

“Tem que haver programas públicos que deem respostas efetivas para essas crianças, pois não podemos desconhecer que muitas delas são os suportes de suas famílias”, diz Leila Mattos, vice coordenadora do Comitê. “Estamos apenas no início do trabalho e há muito o que fazer”.

DENÚNCIAS – Várias instituições atuam efetivamente ou participam de alguma forma do Comitê: a própria Câmara de Vereadores, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Delegacia Regional do Trabalho, Ministério do Trabalho, Ufrgs, Fesc, Pastoral do Menor, Ministério Público, OAB, Movimento de Meninos e Meninas de Rua, Fundação Criança, Grupo Contra o Trabalho Infantil, CUT, associações comunitárias e sindicatos. A ideia é atrair ainda mais entidades.

Através dos depoimentos em audiências públicas, muitos problemas foram detectados em regiões específicas. O método de trabalho adotado foi o levantamento da situação do município a partir dos depoimentos de entidades, acesso a dados e averiguação de denúncias.

Aspectos legais referentes ao trabalho infanto-juvenil, do ponto de vista da legislação brasileira, estudo comparado com a legislação internacional e comparação e debate com as leis municipais. Além disso, conhecimento da estrutura e formas de atuação da fiscalização do trabalho e realização de eventos públicos.

Entre as denúncias oferecidas, está o trabalho de crianças e adolescentes na Central de Abastecimento do Estado (Ceasa). Naquele local, o grupo constatou trabalho irregular de menores, em horário noturno, exercendo atividade insalubre, perigosa e penosa.

Convidados a depor, o representante da Ceasa, Idílio Pasuch, e o presidente da Associação dos Carregadores e Arrumadores, Almirante Ferreira de Souza, prestaram seus esclarecimentos. Souza admitiu o serviço penoso dos menores, mas afirmou que eles são contratados diretamente por produtores e atacadistas. Salientou o reduzido valor pago aos jovens, que é de 25% a 50% do que recebe um adulto. Já a Ceasa negou a existência do vínculo trabalhista, alegando que os garotos são filhos de produtores e atacadistas.

De qualquer forma, a denúncia, fruto de um trabalho de pesquisa da professora Laura Fonseca, da Ufrgs, e do Sindicato dos Comerciários, surtiu efeito. Leila Mattos afirma que já não se encontram mais crianças em atividade penosa e insalubre na Ceasa. A DRT exerce a fiscalização no local.

Nas reuniões, os comerciários também manifestaram preocupação com o trabalho de menores nos supermercados, especialmente no Zaffari, que tem autorização para o trabalho de adolescentes até as 24 horas.

E o Sindicato dos Administrativos em Jornais e Revistas denunciou a exploração de meninos nas vendas de jornais nas ruas, especialmente de Zero Hora Dominical.

Convidada a prestar esclarecimentos, Zero Hora mandou um representante que negou vínculo com meninos que vendem em pontos de rua, alegando que eles são subcontratados por jornaleiros da empresa.

Já o preposto do Zaffari afirmou que a empresa conta com 750 adolescentes empregados como empacotadores. A maioria cumpre jornada de seis horas e são estudantes ou aconselhados a voltar a estudar.

Da rola para a “casa de família”

Casa e comida ao invés de salário. Nadir Machado Gottsch lembra bem a idade com que começou a trabalhar. Mas sabe que o que gostava de fazer na época era brincar de bonecas. Em Tenente Portela, se espremia com mais 15 irmãos e os pais em uma pequena casa que não acomodava todo mundo. A saída da mãe foi colocar os mais velhos a trabalhar em casas de família, muitas vezes sem nada em troca. Apenas pelo direito de ter onde dormir e o que comer.

Antes dessa decisão da mãe, Nadir, mesmo pequena, já fazia trabalho de gente grande, acompanhando os pais na jornada diária da roça e, depois, cuidando da casa. “Eu tirava leite e ia entregar na cidade. Lembro que ia em cima de um burrinho entregar o leite. Eu acordava às 6h e passava o dia em função da casa e do serviço que tinha para fazer”, recorda.

Em função dessas atividades, ela não conseguia acompanhar a escola. “Na aula, eu não conseguia aprender. Comecei a ler e escrever aos 15 anos, ajudada por minhas irmãs”. Nas casas dos outros, ela limpava, fazia comida, cuidava das crianças. “Uma vez, fui cuidar de um gurizinho. A mãe dele trabalhava na roça e não tinha comida. Ela só trazia melancia e era o que eu comia. Um dia, minha mãe veio me visitar e eu chorei, pedi para ir embora. Ela disse que não podia me levar. Então um dia quando eu fui visitar meus pais, na hora de ir embora, me escondi embaixo da cama”.

Aos 16 anos, ela veio para Porto Alegre. Foi quando assinaram sua carteira. Nadir hoje está com 45 anos. Quando lembra de sua infância, deixa escapar o trauma que a persegue até hoje. “Não gosto de minha cidade, tenho lembrança ruim. Desde que cheguei em Porto Alegre só voltei lá duas vezes: quando meu pai ficou doente e, depois, quando ele morreu. Eu não faço questão que meus filhos trabalhem cedo”, diz Nadir, que hoje é auxiliar de serviços gerais.

Sequelas Definitivas

O trabalho pesado e insalubre acarreta sequelas definitivas nas crianças. São problemas de saúde como má formação óssea por levantamento de peso, problemas respiratórios, intoxicação, acidentes e dependência química (no caso da cola de sapateiro no setor coureiro-calçadista). Nas indústrias de calçados, em Novo Hamburgo e São Leopoldo, a DRT constatou o trabalho de crianças que ajudam na produção familiar e ficam em pé de 5 a 8 horas seguidas, envoltos no cheiro de cola. “Não há o que pague essa perda”, diz Leila Mattos.

Segundo ela, mesmo que não pare de estudar, crianças que trabalham um turno e frequentam a escola no outro nunca estão na série de acordo com suas idades. A fadiga sempre os mantém atrasados. E, com o atraso, eles perdem o estímulo e acabam evadindo. Leila entende que combatendo o trabalho infantil, além de preservar o direito à infância, também se está atacando o desemprego.

Recentemente, a DRT lançou, junto com o Ministério Público, um folder com o título “Criança não dá trabalho”, uma campanha estadual contra a exploração do trabalho infantil e preservação dos direitos do adolescente. Neste documento, as instituições alertam para uma série de problemas envolvendo o assunto, entre eles a questão econômica. “O trabalho da criança e do adolescente é sempre pior remunerado, ao mesmo tempo em que tira postos de trabalho de adultos, mantendo o sistema de exploração da mão-de-obra infanto-juvenil, em detrimento da renda média relativa das famílias. Enquanto crianças ocupam os espaços de trabalho dos adultos, famílias vivem em piores condições de vida”.

A socióloga Eridan Magalhães representa a DRT no Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente. Ela informa que a Delegacia está fazendo um mapeamento em todo o Estado para detectar onde estão os maiores problemas. “Estamos procurando fazer um programa não de acordo com as denúncias, porque elas são muito poucas”, comenta. Ela gostaria que os sindicatos participassem mais no combate à exploração do trabalho infantil.

Suzana Maria Marques, subdelegada da DRT no Vale dos Sinos, reconhece que não é fácil tirar as crianças do trabalho. “A Ufrgs constatou 434 crianças trabalhando no setor coureiro-calçadista nos municípios de Novo Hamburgo e Dois Irmãos”. Conforme ela, o que agrava a situação dos meninos é o elevado índice de desemprego na região. “Aqui, quebra e fecha empresa diariamente, demitem em massa e os pais acabam colocando seus filhos pequenos no trabalho. Os casos ilegais, nós fiscalizamos e autuamos, mas já vivi o caso de uma mãe que chegou para mim com o filho pela mão, me perguntando: ‘meu filho sempre me ajudou. E agora, quem vai dar comida para ele?’.”

Suzana é uma das defensoras do CIP – Centro Integrado de profissionalização – que funciona em Novo Hamburgo desde o início de 95 para adolescentes de 13 a 18 anos. Eles estudam em um turno e, no outro, aprendem uma profissão. “A experiência inovadora já valeu um prêmio nacional ao CIP”, comemora. Os cursos são de marcenaria, corte e costura em tecido e aprendizagem comercial. Tudo em parceria com o Senac e Senai. A principal ideia é tirar os garotos do trabalho exploratório ou de risco e encaminhá-los para uma profissão”, justifica a psicóloga Anete da Cunha, que trabalha no projeto. Os adolescentes têm sua carteira assinada e recebem meio salário mínimo, além da alimentação. Todos eles vieram da periferia.

“Quem está no trabalho exploratório são adolescentes das camadas populares”, constata. O CIP funciona em um prédio que tem sala de aula, refeitório e oficina de trabalho. Funciona em dois turnos: os que estudam pela manhã e trabalham à tarde e vice-versa. Além disso, os meninos também têm atividades artísticas e recreativas. “Aqui nós fazemos de tudo para tirar as crianças da miséria, evitar a evasão escolar, as drogas, as bebidas e a prostituição”, completa Anete.

Em Porto Alegre, a Prefeitura Municipal, através da Fesc, lançou, em abril, o Projeto Família: Apoio e Proteção. Já existem dois núcleos de apoio sócio familiar e a intenção é lançar mais oito até o final do ano. Cada núcleo atente 40 famílias que recebem acompanhamento social sistemático e bolsa-auxílio para permanência das crianças na escola no valor de R$ 150,00.

“Considerando que em Porto Alegre vivem 30 mil famílias em situação de indigência, é importante que novos núcleos sejam criados. Por isso, a parceria com ONGs e iniciativa privada é importante”, defende a presidente da Fesc, Ana Paula Costa. A meta da Fundação é atingir 320 famílias até o final do ano.

Para que uma família integre o programa deve possuir renda inferior ou equivalente a um salário mínimo. Também deverá existir situação de violência de direitos, seja com relação a maus-tratos e/ou com exploração do trabalho infantil. A iniciativa pretende refazer as relações familiares, desestruturadas ou fragilizadas, tirando crianças e adolescentes das ruas e colocando-os em escolas ou cursos extra classe. A bolsa-auxílio foi a forma encontrada para dar condições à família de se reorganizar, sem que os filhos tenham que ir para as sinaleiras aumentar o orçamento.

Desemprego atinge crianças

Para a psicóloga Míriam De Toni, técnica da Fundação de Economia e Estatística (FEE), não há dúvida de que o trabalho precoce está associado à pobreza familiar. “A elevada incidência do trabalho infantil é mais uma faceta da miséria do país, que obriga as crianças a irem para o mercado de trabalho deixando os estudos de lado. Essas crianças ficam com a vida recortada”.

Ela é responsável por uma pesquisa na região metropolitana feita em 95 e atualizada em 96 sobre emprego e desemprego de crianças de 10 a 17 anos, com ou sem carteira de trabalho. Foram pesquisados os domicílios dessa região. “Qualquer trabalho deve ser investigado. Até aquele feito para ajudar o chefe de família, sem remuneração. Porque revela o comprometimento com o mundo do trabalho”, afirma.

De um universo de 85 mil garotos de 10 a 17 anos, 15,7% estava no mercado de trabalho em 96. Deste total, 56 mil estavam ocupados e 29 mil procurando trabalho. Segundo ela, esses menores são explorados pela longa jornada de trabalho. “A média deles é de 39 horas semanais, enquanto que a de um adulto é 43 horas”. O rendimento médio/hora da criança equivale a 1/3 do rendimento dos adultos. “Então, elas são exploradas pela longa jornada e baixo rendimento”.

Míriam ainda se baseia em seu estudo para afirmar que quanto menor a renda familiar per capita, maior a contribuição do menor para composição do orçamento de sua família. “Eles já estão enfrentando o mundo do trabalho quando deveriam estar ligados à vida escolar, familiar e comunitária”, observa.

Laura Souza Fonseca, mestre em educação popular e professora assistente da Faculdade de Educação da UFRGS resolveu fazer sua tese de mestrado sobre crianças que trabalham na Ceasa. Ficou apavorada com o que viu. “Conto a história de vida de 21 meninos de 12 a 17 anos que trabalham com carga pesada”. Segundo ela, 30 quilos é o mínimo que eles carregavam em um ano de investigação.

“Um menino de 13 anos carregava uma carga dessas três vezes por dia. Era evidente a sua alteração na estrutura óssea e muscular”. Laura considerou absurdo essa situação acontecer numa Central de Abastecimento. “A lei é clara. Adolescente não pode efetuar trabalho noturno, nem penoso, nem insalubre. E aqueles garotos trabalhavam de madrugada, das 4h às 11h30min ou meio-dia”.

Ela também concorda que a situação mais presente nesses casos é de miséria das famílias. “Muitos deles são arrimo de família”. Em seu trabalho, ela constatou que os meninos tinham se afastado da escola. “Como um garoto que levanta às 2h da manhã para entrar no trabalho às 4h até o meio-dia pode estudar? Dá para se questionar a capacidade de aprendizagem, mesmo que ele estivesse matriculado em uma escola. E, se ele não frequenta a escola, não tem condições de qualificação e, então, reproduz a miséria”.

Para Laura, essa é uma situação destruidora da infância. “Esse é um tempo de brincar, de sonhar e estudar. Trabalhar, perder o sono, prejudicar o próprio corpo não deveria ser a realidade desses meninos”.

Quando a gente era pequeno

Não existe sábado e domingo para Cleber Santos da Silva, 15 anos. Ele mora na Vila Chácara da Fumaça e, todos os dias, caminha pelo menos nove quilômetros com expectativa de vender seus 15 pacotes de algodão doce. Às 13h de um domingo, estava com fome, mas não podia ir para casa porque não tinha vendido a cota de pelo menos sete algodões.

“Eu vendo por R$ 1,00. A metade fica para o homem que faz e a outra eu dou para minha mãe”, conta. Ele faz esse trabalho há pouco tempo. Antes disso, foi ajudante de obra. “Fazia cimento, virava massa, carregava carrinho com pedra e tijolo”, lembra. Começava esse serviço pesado às 7h30 min, antes dos 14 anos. Quando não encontrou mais serviço de ajudante de pedreiro, foi vender algodão doce.

A vida dura de Cleber começou aos sete anos, quando foi para um orfanato. A mãe trabalhava fora e não tinha condições de cuidar dos filhos. Como até hoje muitos estão separados, o garoto não sabe ao certo quantos irmãos tem. “Acho que são seis. Tenho um irmão gêmeo”. Quando fala no irmão, não costuma dizer “nós”, mas “eu”, como se fosse uma única identidade.

Logo que chegou ao orfanato, Cleber teve que capinar, revolver a terra, prepará-la para plantação. Isto desde as 7h da manhã até o meio-dia. Depois, tomava um banho, almoçava e ia estudar. Mas ele não foi muito longe nos estudos. Parou na quinta série, depois de rodar dois anos. Quando trabalhava na obra, estudava à noite, mas estava muito cansado para acompanhar a turma.

“Se pudesse escolher, eu queria estudar, mas tenho de trabalhar”. Ano que vem, ele quer tentar a escola novamente. Pois Cleber tem um sonho: “Eu queria mesmo era ser advogado”.

Meninos, mineiros

O Sindicato dos Garimpeiros, com base estadual, aponta que em 90% das regiões do Estado há crianças trabalhando na área da mineração. “É um trabalho de alto risco, perigoso e insalubridade máxima até para adultos, imagine para crianças”, afirma Marinice Lírio, vice-presidente do sindicato. Ela mesma já cansou de flagrar meninos em cima dos morros no corte de pedra grês (arenito, sustentação da construção civil).

“Tem criança de nove anos trabalhando nisso, em qualquer lugar que se vá: em Taquara, Parobé, Gravataí, São Leopoldo, Novo Hamburgo, por tudo”. Mari, como é chamada, conta que já entrou em contato com os responsáveis por muitas dessas crianças. “Há dois anos o sindicato vem brigando por isso, querendo uma fiscalização mais rígida. Muitas crianças ajudam a sustentar a família. A maioria não estuda”.

Nas pedreiras, há muitos riscos de acidentes e os garotos carregam carrinhos de 30, 40 e até 50 quilos, denuncia Mari. “Eles mal conseguem erguer as picaretas. Eles já têm problema de coluna e a musculatura forçada. Há crianças de 14 anos que parecem ter 18”.

Nas conversas com os pais das crianças, ela pede para que os deixem estudar, não os forçando a trabalhar. “Mas eles argumentam que é para eles não ficarem em casa e incomodar; que eles não estão trabalhando. Então, eu não sei o que é trabalho”.

O Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, órgão controlador e articulador das políticas de atendimento a essa faixa etária no município não trabalha diretamente com os meninos. Mas dá sustentação a dispositivos que garantam que os menores estejam realmente aprendendo, que suas idades e constituições físicas sejam respeitadas.

“É preciso respeitar o período em que o menor está na escola. Nada pode prejudicar sua aprendizagem formal”, determina Iara Rojas, uma das conselheiras. Se há uma denúncia de que a criança não está tendo seus direitos garantidos, quem entra em ação é o Conselho Tutelar, instituído no artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

“O trabalho infantil é uma preocupação e existe uma ação conjunta com diversas entidades para barrar o problema. Os casos de não cumprimento às leis de proteção à criança são punidos com medidas judiciais, administrativas e sócio-políticas. Esses são os instrumentos utilizados quando há qualquer violação”, relata.

“Cabeça fraca”

Com oito anos de idade, Marilde da Rosa Ramos já sabia o que era pegar na enxada. Muito cedo, ela precisou trabalhar para ajudar os pais na roça. “A mãe ficou doente e eu tinha que me virar. Naquela época, em Osório, ela fazia todo o tipo de trabalho. Capinava, colhia grãos e verduras.

“Eu acordava às 6h, arrumava a casa e ia para o colégio. Ao meio-dia, voltava, almoçava e ia para a roça. Ficava lá até de noite”. Do colégio, ela gostava, mas achava o trabalho duro. Estudou até a terceira série. “Não aprendi mais porque a cabeça era fraca”, ela diz.

Mas a quarta série ela não conseguiu mais acompanhar. “Eu já trabalhava em casa de família e as patroas não deixavam eu estudar”. Hoje, aos 56 anos, Marilde continua empregada doméstica. Não tem perspectiva de se aposentar porque seus empregadores nunca se preocuparam em assinar sua carteira de trabalho. Ela se queixa das sequelas do trabalho árduo desde cedo. Sente dores nas pernas, tem problema de varizes e de coluna. “A minha cabeça está esgotada, está sempre dolorida”, queixa-se. Márcia da Silva Pinto está com 16 anos e foi mais longe nos estudos. Está no primeiro ano do 2º grau. Mas acha que não vai conseguir terminar o ano. “Estou sempre cansada e não tenho tempo de estudar”, revela. Ela tem perdido muita aula em função do trabalho. Ela cuida de uma locadora de vídeo em Cachoeirinha e trabalha também aos sábados e domingos. Sete dias da semana, pela manhã e à tarde.

À noite, quando vai estudar, ela chega até a dormir na aula. “Eu já parei de estudar no ano passado, queria continuar, mas não sei se vou conseguir”. Ela diz que é “puxado” trabalhar na locadora, mas afirma que é melhor assim do que ficar sem emprego.

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