GERAL

A ilusão da cidadania

Publicado em 23 de dezembro de 1999

Este artigo foi publicado com erros de revisão na edição passada. A seguir, a versão correta.

“Todo homem decente se envergonha do governo sob o qual vive”
de O Livro dos Insultos, H. L. Mencken

Numa reportagem sobre a Suécia, na década de 70, um médico local comentava alguns aspectos negativos daquele país, como álcool, tédio e suicídio, mas fazia uma ressalva: “Filho de pescadores, só aqui eu conseguiria ingressar na principal universidade e me formar em medicina sem pagar nada”. Este relato introdutório é a melhor maneira de tratar a cidadania – com exemplos, e não conceitos; porque se há lugar onde tal palavra nunca fez sentido, ou significa muito pouco, é nas terras devastadas abaixo do equador.

A cidadania que conhecemos é puramente formal, sem correspondência na realidade, pois três quartos da população se acha excluída do exercício efetivo dos direitos civis e políticos garantidos pela Constituição. Não é à toa que o jornalista Paulo Francis, numa de suas típicas boutades, tenha afirmado que os negros americanos, por comparação, gozavam de mais direitos que a maioria do povo brasileiro. Por quê? Porque jamais houve democracia verdadeira – econômica – no Brasil, apenas essa coisa de fachada, casuística, hipócrita e mentirosa.

A cidadania real exige um sujeito ativo, participante, reivindicatório, pronto a interpelar o Poder e pleitear Justiça, quando necessário, fato que grande parte das pessoas desconhece absolutamente. A desigualdade é o nosso brasão, a nossa nobiliarquia – a nona ou décima economia do planeta tem a pior distribuição de renda; daí que metade dos habitantes subsistam aquém da linha de pobreza, e outra parcela esteja bem próximo a isso.

Em Pindorama a cidadania nasce da passividade. No máximo, você será arrebanhado de vez em quando para eleger representantes municipais, estaduais ou federais. Depois, volta para casa, aguardando que os escolhidos façam o “seu governo”. Se o eleito fracassa, o que não é raro, tem-se que suportá-lo até o fim do mandato, numa relação insuperável de sadomasoquismo. Exemplo perfeito vem do governo federal. Após cumprir um primeiro mandato apoteótico, escorado na estabilidade da moeda, e deixar em banho-maria graves problemas nacionais para pressionar pela emenda da reeleição, o Segundo Reinado, ao desabar a paridade artificial do câmbio e tudo que lhe dava sustentação, está sendo penoso, terrível e opressivo para quase todos os brasileiros. O país se transformou num laboratório da experiência neoliberal, esse fascismo pós-moderno em que a barbárie ilustrada substitui o humanismo antiquado.

No primeiro mandato, momento em que se conseguiu derrubar a inflação e a moeda se estabilizou a um custo extremamente recessivo, com desemprego em massa e quebra generalizada de empresas, Sua Excelência deitou cátedra: “São as dores da modernização”; um de seus ministros, Malan, formulou uma declaração estarrecedora, transcrita por Frei Beto em artigo na Folha de S. Paulo: “O social é o último objetivo do governo”. Agora mesmo, Sua Excelência, ao perder judicialmente a contribuição previdenciária dos aposentados, nos dá este aviso assustador – ele “terá que cortar na carne” e diminuir os programas orçamentários (quebrar ossos seria melhor, porque carne resta pouca).

Se alguém ousa reclamar, eles fuzilam: “virem-se!”, que “cada um procure se adaptar ao progresso tecnológico do mundo moderno”. Quão cândido é o neoliberal. Pragmático, relativista, sempre à beira de um ataque de cinismo. Vejam o funcionamento da coisa: depois da liminar impedindo o desconto dos aposentados, Sua Excelência deve propor uma emenda constitucional que permitirá cobrar aquela taxa. Conta com o apoio dos partidos aliados que ajudaram a derrotar essa mesma pretensão em 1998. Atentem na parlapatice do deputado Aécio Neves, do PSDB, um dos que votaram contra no ano passado. Em 1998: “Não queremos a contribuição. Dizemos isso de forma extremamente cristalina e não de forma mascarada”; agora, na véspera de provável emenda: “Não tenho que justificar nada. 98 é 98, 99 é 99, 2000 é 2000. No acordo assinado não está escrito ad aeternum e até que a morte os separe”. É apenas um dos que mudarão o voto.

Depois de satanizar os servidores públicos, uma categoria que hoje se envergonha de si mesma e da nacionalidade, Sua Excelência, o “Grande Irmão”, decidiu punir os funcionários inativos, os quais foram desativados, não produzem e teimam em continuar vivos, numa espécie de morte civil, atrapalhando os planos do governo e a prestação de contas ao FMI. É um ato prepotente e covarde contra seres que já não possuem nenhuma defesa.

O Brasil parece vasto campo de concentração, onde o povo é cobaia de um projeto político-econômico homicida, que está a arrancar-lhe a pele e as unhas, devagarinho, dessangrando-o, até acabar por moê-lo completamente. De modo geral, o povo brasileiro se encontra na condição de rebanho bovino, gado sendo conduzido sem resistência ao matadouro. Portanto, a cidadania – liberdade, igualdade, fraternidade – ainda é a utopia do terceiro milênio.

*dois Santos dos Santos é poeta, autor de Sobre Corpos e Ganas (1995)

Comentários