GERAL

Falácias e mitos do desenvolvimento social

Bernardo Kliksberg / Publicado em 18 de março de 2002

As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois latino-americanos está abaixo da linha de pobreza. A situação das crianças é ainda pior: seis de cada dez são pobres. Os jovens se encontram numa situação difícil. A taxa de desemprego juvenil duplica a elevada taxa de desemprego geral, superando em muitos países os 20%. Apenas um de cada três jovens cursa o ensino médio (contra quatro de cada cinco no sudeste asiático). Formou-se um vastíssimo contingente de jovens que tiveram de abandonar seus estudos, mas que também não têm lugar no mercado de trabalho. Os problemas de saúde são delicados. Um terço da população da região carece de água potável, condição preventiva básica. Também há sérios déficits quanto aos sistemas de esgoto. Cerca de 18% dos partos são realizados sem assistência médica de qualquer tipo. A taxa de mortalidade materna é cinco vezes a dos países desenvolvidos. Sob o embate da pobreza, as famílias entram em crise e muitas vezes se desarticulam. A criminalidade cresce fortemente. É quase seis vezes o que se considera internacionalmente uma criminalidade moderada. Surge intensamente ligada a fatores como o aumento do desemprego juvenil, à baixa educação, e à deterioração da família. A tudo isso soma-se a expansão rápida de um novo tipo de pobreza, amplos setores das classes médias sofreram uma queda socioeconômica pronunciada e constituem os chamados “novos pobres”. Assim, entre outros casos, na Argentina, que contava com uma grande classe média, estima-se que sete milhões de pessoas dos estratos médios se transformaram em pobres na década de 90 (por 38 milhões de habitantes), e processos similares se observam em muitos outros países. Estes dados significam sofrimento humano em grandes proporções. O documento base da Reunião de Bispos Católicos de todo o Continente (XXVIII Assembléia do CELAM, maio de 2001) ressalta “a crescente pauperização que está se abatendo sobre a maioria da população em todos os povos em que nós vivemos”. Destaca entre suas causas “os efeitos da globalização econômica descontrolada e o crescente endividamento externo e interno, com cargas que em vários países superam atualmente um terço de seu Produto Interno Bruto. O que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósticos feitos no início dos anos 80, que afirmavam que, seguindo certas políticas, os resultados econômicos e sociais estavam assegurados? O que fracassou? Por que um Continente com recursos naturais privilegiados, com fontes de energia baratas e acessíveis em grande quantidade, com grandes capacidades de produção agropecuária, com uma ótima localização geoeconômica, e que tinha um bom desenvolvimento educativo há décadas atrás, tem indicadores sociais tão pobres? Por que, ainda, uma dimensão que todas as análises coincidem em assinalar, como grande entrave para o progresso da região, seus altos níveis de desigualdade, em vez de melhorar, piorou, constituindo-se a América Latina na zona mais polarizada do planeta? O pensamento convencional parece ter esgotado sua possibilidade de dar respostas a interrogações como as indicadas. Faz-se necessário recuperar o que foi uma das maiores tradições deste Continente, a capacidade de pensar de forma criativa e por conta própria, aprendendo com a realidade e buscando caminhos novos. Se sairmos dos âmbitos de análise estáticos, que estão gerando permanentemente políticas que “são mais do mesmo”, e que, por extensão, não resolvem os problemas, é possível que surjam vias renovadoras. Os erros cometidos em termos de âmbitos conceituais desmentidos pela realidade, políticas baseadas neles que demonstraram ser incompetentes para o bem-estar humano e para o crescimento econômico sustentado, e um dogmatismo agudo que impediu o arrazoamento autocrítico tiveram custos muito fortes para a população. É hora de repensar coletivamente o desenvolvimento, de forma aberta, sem falácias, mitos nem tabus. Isso é uma exigência que se observa dia a dia, nas ruas, dos múltiplos rostos da dura pobreza latino-americana: as crianças de rua, as crianças que trabalham, as mães humildes que ficaram sozinhas à frente do lar, os jovens sem oportunidades de trabalho, os indígenas e populações afro-americanas discriminadas, os deficientes semi-abandonados, os idosos desprotegidos. Ouçamos seu clamor e vamos tentar, todos juntos, o quanto antes, devolver-lhes a esperança.

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