GERAL

Tempo político é curto

César Fraga / Publicado em 20 de março de 2003

haddadSérgio Haddad, 52 anos, doutor em educação e docente da PUC de São Paulo, presidente da Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais) – entidade que reúne cerca de 250 entidades –, é integrante do Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico do governo Lula, além de ser um dos principais organizadores do Fórum Social Mundial. No final de fevereiro, o professor esteve em Porto Alegre para participar da Aula Inaugural do Sinpro/RS e concedeu esta entrevista exclusiva ao Extra Classe, fala de conjuntura, mercantilismo na educação e das dificuldades, desafios e problemas de comunicação do Governo Federal.

Extra Classe – Qual a importância das ONGs para os projetos sociais do novo Governo? De que forma se daria a participação delas?
Sérgio Haddad
– Tradicionalmente as ONGs têm por objetivo fomentar a construção da cidadania. Isso independe se é o governo Lula, Fernando Henrique ou qualquer outro.O que importa é aprofundar a democracia que nós temos através dessa relação. Agora, é óbvio que existe uma coincidência de trajetórias e identificação do novo governo com esse princípio. Ou seja, os eventos que levaram Lula ao poder têm a ver com a história recente dos movimentos sociais no Brasil e por conseqüência das próprias ONGs. E, de certa forma, o que se espera do Governo Lula é justamente um papel mais relevante nesta lógica de promoção da cidadania do que o de seus antecessores. Mas isso não quer dizer que as ONGs sejam uma extensão do governo, o que mesmo assim não impede ambos de atuarem em sintonia e complementação.

EC – Quais serão os principais desafios deste governo nas áreas sociais e de educação?
Haddad
– São justamente essas demandas que se colocam diariamente a nossa frente. Erradicar a fome, oportunizar o ensino a todas as pessoas, resolver os problemas de moradia e saúde. Ou seja, são demandas herdadas, mas que devem ser tratadas como problemas de natureza estrutural e para os quais urgem soluções. Isso diz respeito diretamente a temas como reforma agrária, geração de empregos, etc. Mas não podemos esquecer que estamos tratando de projetos de longo prazo. Ao mesmo tempo existe um certo constrangimento de natureza econômica que faz com que os remédios ortodoxos tenham continuidade, é o caso da elevação dos juros, é o caso do controle da moeda, um aumento do superávit. Enfim, tudo isso reafirma uma certa política conservadora em relação ao modelo econômico e a forma como curar a estabilidade desse modelo, numa conjuntura bastante difícil porque há aumento de inflação, ameaça de guerra, dificuldade em relação aos fluxos de capitais. Então vamos dizer: o grande desafio é como fazer esse trânsito entre uma política conservadora para uma política que possa dar sinais de desenvolvimento.

EC – Nesses primeiros meses, o que transparece pela imprensa é uma certa inércia que contrasta com as promessas da campanha. Até onde são precipitados os julgamentos e quando a pressão da sociedade para que as coisas comecem a acontecer seria apropriada (se é que já não é)?
Haddad
– Como já havia dito, há todo um problema conjuntural herdado dos governos passados que tinham uma política mais conservadora. Além disso há um problema de comunicação do próprio governo no sentido de apontar como esses recursos permanentes, voltados a uma política mais conservadora, apontam no futuro para uma nova política de natureza econômica em que haja aumento de emprego, desenvolvimento etc. Então, acho que há certa dificuldade nesse sentido. É preciso saber informar como se faz para operar sobre questões de natureza social, e por que, hoje, são tratadas sob ponto um de vista mais direto, assistencial, como é o fome zero. Essas questões devem ser vinculadas a mudanças estruturais que dêem condições mais sustentáveis para que as pessoas possam ter emprego, possam por elas mesmas comprar comida e ter uma vida digna etc.

EC – E o risco de instabilidade?
Haddad
– Temo que o tempo para realizar essas tarefas seja muito longo em função das condições econômicas que estão sendo colocadas hoje e que possa a política num longo prazo perder esse apoio que a população vêm dando. Acho que isso pode ser um grande perigo. O tempo político é muitas vezes curto e Lula foi eleito com uma expectativa de mudança muito grande e essas coisas todas constituem uma dificuldade real.

EC – Mesmo assim o senhor entende que o caminho está correto?
Haddad
– Eu acho que ele está no caminho possível nesse momento. Eu faria algumas correções, sobre o ponto de vista desta questão da comunicação, como já disse, que poderia ser mais clara e que disesse a que vem. Comunicação por parte do governo para que se possa fazer a diferenciação sobre aquilo que hoje é visto como uma continuidade em relação ao modelo econômico e os constrangimentos apresentados por este modelo. As soluções que são dadas como o aumento de juros, ou o que possa vir no futuro, são o que são. Trata-se de um momento de transição. A população precisa saber o que se aponta lá na frente passado esse período em que se diz que são necessárias tais medidas para que se possa garantir estabilidade e apoio, inclusive para as reformas que precisam ser feitas. Eu acho que essa é a dificuldade nesse momento. Agora, há de se considerar, e acho que é importante isso, que nós estamos há dois meses da posse do novo governo. Há todo o reconhecimento de uma máquina, toda uma equipe que muda. O governo assumiu, em condições bastante delicadas, uma herança econômica muito ruim sob o ponto de vista do crescimento da inflação do escape de capitais e de uma conjuntura de guerra.

EC – O senhor falou nas reformas necessárias. Na posição de membro do Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico do Governo Federal, o senhor considera possível que as votações das matérias referentes a essas reformas ocorram ainda este ano? E qual a ingerência do CDSE sobre esses temas?
Haddad
– Votar esse ano é necessário, antes de mais nada. O assunto é de máxima urgência. Se houver necessidade de votar essas reformas, que isso ocorra logo, aproveitando esse alto índice de apoi que hoje o governo tem. Por outro lado, como as forças políticas vão se dando é sempre muito difícil saber como esse processo se dará. No conselho a gente percebe que há forças muito distintas.

EC – Como esse processo de negociação finalmente vai se dar?
Haddad
– Eu acho que depende muito também da força que a sociedade terá para pressionar os parlamentares. O conselho é só um eco. Ele não tem pretensões de substituir o congresso, e nem é o caso. Simplesmente é uma forma de consulta. É o Congresso Nacional que define, e aí o que importa é a pressão social sobre seus parlamentares para que as mudanças possam ocorrer.

EC – Em sua visita a Porto Alegre para a Aula Inaugural 2003 do Sinpro/RS, o senhor abordou o tema “Professor: Educador ou prestador de serviço”. Como o senhor resumiria sua abordagem sobre a questão para os nossos leitores que não tiveram chance de assisti-lo?
Haddad
– O tema diz respeito à questão de como a Educação tem sido pressionada a entrar no âmbito do mercado e como esta pressão, está vinculada, e muito, ao movimento de globalização internacional.

EC – Quem exerce essa pressão?
Haddad
– Essa pressão é exercida pelos países mais desenvolvidos, em particular pelos Estados Unidos, União Européia, Canadá e Japão e que basicamente têm buscado a abertura dos mercados de maneira incondicional. Nesta abertura de mercado os serviços passam a estar incluídos nas normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). A gente imagina que, quando se fala de comércio, em geral se pensa em bens, matérias-primas, produtos acabados. Na concepção da OMC este conceito é bem mais amplo e os serviços estão sendo incluídos e representam 20% de todo comércio mundial. Por conseguinte a Educação passa a ser vista também como serviço e passível desta normatização. Ou seja, a intenção do mercado é incluir novos setores no seu arcabouço de influência. A idéia que se coloca é liberalizar o máximo possível o mercado para que serviços fiquem dentro desse modelo mais global. A idéia é que você possa então abrir o mercado justamente para as grandes empresas internacionais, que são justamente as multinacionais que têm interesse nessa lógica mais geral. E a Educação está no meio disso tudo.

EC – O senhor poderia nos dar um exemplo de como a Educação pode sofrer neste contexto?
Haddad
– Se pensar em McDonald’s ou em produtos de vestuário de consumo geral, nós já temos os bens duráveis: geladeira, televisores e coisas que o mercados já há muitos anos comercializa. Mas com os serviços é uma novidade. Hoje você tem um modelo de estilo fast food em hotéis, por exemplo. Esse tipo de hotel no mundo inteiro tem o mesmo tamanho, mesmo tipo de atendimento, decoração e preço mais barato. Um dos riscos é ter um modelo de prestação de serviços em Educação com um tipo de padronização que não respeite os aspectos regionais, locais, etc. A educação tem, entre seus objetivos, a formação da cidadania e, portanto, todos os aspectos constituintes da formação humana sob o aspecto da cultura, que é construir a nação dentro de uma perspectiva que respeite as peculiaridades regionais. Essas são questões claramente definidas. Mas também se pode pensar em modelos em que o professor se torna um prestador de serviços nesta lógica comercial na medida em que você tem um pacote, um modelo específico de educação a ser dado como instrução ( talvez a gente nem possa dizer educação, mas de instrução).

EC – Correríamos o risco de termos uma Educação mais voltada para aspectos funcionais, dentro de um ótica utilitarista?
Haddad – Exato, neste modelo que descrevi, o professor simplesmente passa a ter aspectos funcionais e todo o resto já está montado, formatado como são os modelos de teleeducação por exemplo, como são alguns dos modelos de e-learning. Muito da arrecadação das instituições que trabalham com educação é destinado ao salário do professor e, num mercado mais competitivo, você tem que diminuir custos; para diminuir custos, você tem que afetar diretamente o trabalho do professor que é aumentar o número de alunos por classe ou você ter aulas duplas que possam fazer com que o professor atenda duas classes ao mesmo tempo, e até mesmo substituir grande parte do trabalho do professor por emissões de aulas que são gravadas. Mas, é óbvio, estamos trabalhando no campo das hipóteses.

EC – Que setores da Educação seriam mais atingidos?
Haddad
– Particularmente o ensino universitário que já é em grande parte privado e também o ensino tecnológico, de línguas (que se apresenta em grandes cadeias internacionais, com o mesmo modelo de aprendizagem, espalhadas em diversos países). Então acho que isso pode ter uma conseqüência muito grave. A pressão para que a educação se enquadre nesses moldes é muito grande. O aspecto da legislação internacional do comérico é muito interessante e dramático. Se a Educação, enquanto serviço, passa a ser considerada como uma linha de investimento e o investidor tem de ter direitos iguais do ponto de vista meramente econômico, então há uma pressão também para que o segmento seja reconhecido como serviço e como investimento. E, no caso do Brasil, onde o modelo vigente apresenta ensino privado como um complemento à rede pública, surge uma situação estranha às leis de mercado. No meio de um acordo comercial, por exemplo, o país poderia ser acusado de subsidiar a “concorrência” das escolas públicas em detrimento das privadas e até de ser processado conforme as regras da OMC.

EC – Qual a situação legal hoje?
Haddad
– Por um lado, no Brasil se reconhece historicamente o ensino privado como um ensino complementar ao ensino público. Por outro é de direito que o ensino privado internacional também possa entrar. Isso já cria as condições necessárias dentro da legislação de comércio para a hipótese levantada. Há legislação específica que diz que o investidor possa se sentir prejudicado porque há subsídios no caso do ensino público, então você pode chegar a uma loucura em que o estado é processado sob o ponto de vista que ele está prejudicando o investimento de empresas privadas no ramo da educação.

EC – Mas isso não é um pouco de exagero?
Haddad
– O importante é que abre o precedente legal e político. Nós podemos tratar isso muito sob o ponto de vista da utopia, dizendo “que loucura”, mas a verdade é que esse modelo de globalização vem rapidamente entrando e consumindo de maneira muito forte mercados que até então jamais imaginaríamos.

EC – Como a Constituição brasileira vê a designação de serviço?
Haddad
– Costumo exemplificar com a tese do jurista Dalmo Dallari. Ele defende que constitucionalmente o termo “serviço” é entendido como a ação humana ou ação para o desenvolvimento humano, diferente e quase se opondo ao sentido comercial do termo, que é aquilo que a ALCA e a OMC propõem. Eu acho que esse é o sentido importante que deveria ser levado em consideração. Muitas vezes, a gente, quando pensa em serviço, pensa sempre sob o ponto de vista de um olhar mercadológico e não é isso que a nossa Constituição tradicionalmente entende.

EC – Qual a influência desses modelos mercantilistas de Educação na cultura?
Haddad – A força de comunicação desses modelos é muito grande e muito atraente. Então é a coisa do McDonald’s, a população é levada a consumir determinadas coisas mesmo que não precise delas, assim como ela usa determinadas coisas porque isto vem agregado como cultura, vem através dos meios de comunicação de massa, vem de todo mecanismo que acaba impondo um modelo cultural e conseqüentemente um modelo de consumo.

 

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