GERAL

Mulher: exclusão e preconceito

Gilson Camargo / Publicado em 30 de maio de 2003

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A história da participação feminina na política brasileira também é a história da exclusão e do preconceito. A constatação é da escritora Céli Pinto, coordenadora do curso de pós-graduação em Ciências Políticas da Ufrgs e autora do livro Uma história do feminismo no Brasil, em fase de lançamento pela Editora Fundação Perseu Abramo. A autora não se deixa impressionar com as conquistas acumuladas pelas mulheres nas últimas décadas nesse que, segundo ela, continua sendo o último território de homens por absoluto despreparo feminino para o jogo político – uma inaptidão que se estende a mulheres do mundo inteiro. “A política é espaço de luta descarada, aberta e legítima pelo poder. As mulheres não estão preparadas histórica e culturalmente para disputar esse poder”.

A luta das mulheres contra todas as formas de dominação, exclusão e discriminação tem marcado de forma decisiva a história nos últimos séculos. A atuação das principais militantes e organizações que construíram a história do feminismo no país e as transformações vividas pela sociedade brasileira a partir do final do século XIX são resgatadas pela autora nas 120 páginas de Uma História do Feminismo no Brasil, que integra a série História do Povo Brasileiro, da Fundação Perseu Abramo. Céli Pinto dedica a obra a três mulheres que viraram pelo avesso as convenções sociais do seu tempo e que, paradoxalmente, achavam que voto era uma conquista burguesa: Xica da Silva, Chiquinha Gonzaga e Leila Diniz. Segundo observa a autora, nenhuma das três levava muito a sério o sentido político do feminismo. “Foram de uma importância decisiva só pelo fato de existirem. Elas fizeram coisas que ninguém teve coragem de fazer, representavam o feminismo malcomportado, longe dos partidos políticos e das passeatas. Foram anarquistas para quem o voto era coisa da burguesia”.

A luta das mulheres pelo voto começa na Europa em meados do século 19 e no Brasil, ainda de forma insipiente, por ocasião da elaboração da Constituinte de 1890, no início da República. Por volta de 1914 surgem no país as sufragistas, que viriam a ser lideradas por uma mulher paradoxalmente identificada com a fina-flor da elite econômica e intelectual da época, a bióloga Bertha Lutz. Ela representa o que a autora define como “feminismo bem-comportado”: Bertha freqüentava os círculos do poder dominado por barões e coronéis, não perdia as festas repletas de ‘coquetes e melindrosas’ no Automóvel Clube do Rio de Janeiro e desfrutava de prestígio dentro e fora do país. “Ela foi decisiva na luta pelo voto feminino, uma cientista que conseguiu juntar as mulheres para pressionar deputados pelo direito de votar”, define Céli. Segundo constatação da autora, a intimidade com o poder facilitou o trabalho de mobilização das mulheres de cima para baixo. “Bertha foi a primeira mulher a entrar no serviço público por concurso, não aceitava competidores, estava preocupada com o voto feminino, enquanto as anarquistas defendiam o amor livre”.

O modelo de feminismo que estoura no Brasil nos anos 70 é importado da Europa e dos Estados Unidos, onde as feministas começam a se mobilizar na metade da década de 60. A ditadura militar no Brasil estava longe de terminar. Milhares de militantes brasileiras haviam deixado o país nos anos 70 e estavam asiladas na Europa. “Havia uma população muito grande de brasileiras vivendo na Europa e nos EUA, na sua maioria militantes ou companheiras de militantes, que começam a ser influenciadas pela leva do feminismo europeu, muito ligado ao corpo, à pessoa, ao trabalho e à sexualidade e contra a dominação masculina”. Essas mulheres causaram tanto furor mundo afora que os grupos de discussão sobre a condição feminina passaram a sofrer represálias de todo tipo e até as entidades de ajuda humanitária passaram a excluir quem tivesse qualquer ligação com as feministas.

Para a autora, são inegáveis as conquistas das mulheres até o fim do século 20. “Aumentou o nível educacional no Brasil, a mulher é maioria nas universidades, ela assume carreiras que eram absolutamente masculinas, representam 45% da mão de obra brasileira e são mais da metade do eleitorado. Mas, se a gente olha para a política, a mulher não ocupou espaços. Os dados são muito frágeis. No RS, diminuiu o número de mulheres na Assembléia Legislativa. Por que as mulheres não conseguiram romper essa barreira, se o movimento começou político?”, indaga. Em primeiro lugar, não é uma questão somente brasileira, pois a política é o último baluarte masculino no mundo inteiro. “Por exemplo, as mulheres só começam a aparecer com força no Parlamento inglês nas últimas eleições”, ilustra Céli. Para a cientista política, as mulheres foram educadas para não disputar o poder. “Os homens não querem abrir mão desse poder e as mulheres não querem disputar. Isso aparece nas manifestações, nas assembléias, em que há mais homens que mulheres e são os homens quem se manifestam primeiro. O sindicato das enfermeiras no Rio Grande do Sul, um espaço eminentemente feminino, é dirigido por homens”, compara. A mulher não está na política porque há uma questão mais ampla que é a mulher no espaço público, a organização das mulheres na sociedade: o espaço público é do homem, lamenta a escritora. “Quanto mais público for o espaço, menos se vai encontrar a mulher”.

As cotas de candidatas mulheres nos partidos não são preenchidas porque há uma dificuldade em trazer as mulheres para a vida da política partidária, na qual a disputa pelo poder é muito grande. “Existem candidatos preferenciais e os que são tratados a pão e água. É muito difícil se manter dentro dos partidos, que são estruturas fechadas e machistas, segregam as mulheres em setores como fazem com os jovens, com os velhos, os deficientes e os negros. O setor dos homens é o que predomina”, denuncia.

Voto feminino tem história

O direito das mulheres ao voto foi discutido pela primeira vez no Congresso Nacional, em 1890. Três deputados influenciados pelas primeiras sufragistas propuseram estender o direito a médicas, portadoras de títulos científicos e professoras que não dependessem economicamente do pai ou do marido. A maioria dos congressistas considerava a idéia de “conceder” o direito de voto às mulheres “anárquica, desastrada e fatal“. A emenda foi derrotada.

O movimento sufragista feminino ressurgiu em 1914, puxado pelo discurso de esquerda de uma das primeiras jornalistas do país, a carioca Eugênia Moreira. Aos 16 anos, ela freqüentava ambientes exclusivamente masculinos e escrevia artigos em que defendia que “a mulher será livre somente no dia em que escolher seus representantes”.

Em 1917, a professora Deolinda Daltro promoveu uma passeata de mulheres pelo direito ao voto. Estava aberto o caminho para quebrar a resistência à participação das mulheres na política. Um caminho que se revela árduo até hoje. Em 1918, a bióloga paulista Bertha Lutz lidera o movimento decisivo para a conquista do voto pelas mulheres. Ela retornou de uma viagem à Europa, onde havia conhecido a campanha sufragista inglesa e tivera contato com as feministas norte-americanas ao representar o Brasil na Conferência Pan-Americana de Mulheres, evento que repercutiu no mundo inteiro pelo seu caráter de defesa da igualdade política. O argumento de Bertha para convencer as brasileiras a lutar pelo voto nada tinha a ver com o comportamento rebelde da ala anarquista do feminismo. “O voto, dizia, representa a afirmação da cidadania das mulheres, que podem conquistar igualdade de salários e de oportunidades na Educação e nos outros setores da vida”.

Em 1927, a professora Celina Guimarães Viana obteve o primeiro título de eleitor feminino, na cidade de Mossoró, com base numa legislação estadual criada pelo então governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine. As pressões do movimento sufragista liderado por Bertha Lutz foram crescendo até 1932, quando todas as brasileiras maiores de idade passaram a ter direito de votar assegurado pelo Código Eleitoral promulgado pelo primeiro governo de Getúlio Vargas.

As mulheres eleitas

Até 1998, apenas 15 deputadas foram eleitas no Rio Grande do Sul. A primeira parlamentar, Suely de Oliveira, se elegeu em 1950, seguida por Íris Pothoff (1964), Zaira Folly (1966), Dalla Alves (1974), Dercy Furtado (1975), Ecléa Fernandes (1983), Hilda de Souza (1986), Regina Rossignolo e Jussara Cony (1990), Maria Augusta Feldman (1994), Cecília Hypolito, Luciana Genro, Maria do Rosário e as reeleitas Maria do Carmo e Jussara Cony, em 1998. Proporcionalmente ao número de eleitores, a mais votada da história do parlamento gaúcho foi Therezinha Irigaray (PMDB), em 1996, com 5.462 votos. Maria do Carmo (PPB) foi a recordista, com 208.833 votos em 1994. Em 1934, Carlota Pereira de Queirós foieleita a primeira deputada federal do país. Até 1967, nove mulheres foram eleitas para a Câmara Federal, número que passou a 126 a partir daquele ano. Ivete Vargas foi a deputada que mais acumulou mandatos, elegendo-se de 1946 até 1971. Marluce Pinto, eleita pelo PMDB de Roraima, foi a primeira das nove senadoras do país. Na eleição de 1994, Thereza Ruiz, do PTN, foi a primeira candidata à presidência da República.

Representação cresce, mas ainda é pequena

Nas eleições gerais de 2002, foram eleitas 42 deputadas federais em todo o país – o que representa 8,2% dos eleitos e um crescimento de 45% em relação às eleições de 1998, segundo a ONG Cfemea. Naquele ano, foram eleitas 29 deputadas (5,6% do total). Em 2002, cinco estados não elegeram nenhuma deputada federal: Alagoas, Ceará, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Sergipe. Já São Paulo e Rio de Janeiro elegeram seis deputadas federais em cada um dos estados e o Rio Grande do Sul ficou com quatro representantes na Câmara Federal.

Em 1994, concorreram à Câmara Federal e às Assembléias 571 mulheres e 7.386 homens em todo o país. Nas eleições de 1998, foram 1.361 mulheres e 9.158 homens, havendo um crescimento das candidaturas femininas em 138%. A proporção de mulheres em relação ao total de candidatos cresceu de 7,18% em 1994 para 12,94% em 2002. Apesar disso, nenhum partido atingiu a cota mínima de 30% das candidaturas reservadas por Lei às mulheres. “A participação das mulheres nos espaços formais da política está relacionada com o ambiente histórico e cultural mais amplo de discriminação e exclusão que atinge também as pessoas de baixa renda e os afrodescententes. Os mecanismos criados para aumentar a participação não podem, sozinhos, superar um quadro criado historicamente. É necessário desenvolver uma intensa militância social e cultural para superar as discriminações de gênero e desfazer a idéia de que haveria espaços femininos e masculinos por natureza e que a política seria um espaço masculino”, opina a deputada federal Maria do Rosário. A legislação e as políticas do país garantem direitos e oportunidades iguais para homens e mulheres, resultado dos anos de lutas dos movimentos de mulheres. “Porém, as mulheres representam apenas 8,8% do total de parlamentares no Congresso Nacional”, constatou a secretária especial de Políticas para as Mulheres, Emilia Fernandes, em seu pronunciamento na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, no dia 7 de março. “A eliminação de todas as formas de violência contra a mulher deve acompanhar a luta contra a discriminação e a busca de igualdade de gênero”, aponta.

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