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Ciência com filtro

César Fraga / Publicado em 17 de dezembro de 2003

HermanoAntropólogo, pesquisador musical, roteirista, Hermano Vianna nasceu em João Pessoa (PB) em 1960. Morou por longo tempo em Brasília e erradicou-se no Rio de Janeiro em 1978. Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/ UFRJ é autor de O mundo funk carioca (Jorge Zahar, 1998), que lhe valeu o Troféu Amigo do Funk de 1994, e O mistério do samba (Jorge Zahar, 1995), resultado da tese de doutoramento que defendeu em janeiro do ano anterior. Também trabalha para o cinema e para a televisão, tendo participado da realização de programas como African pop, Baila Caribe, Programa legal, Na geral, Brasil legal, Além-mar e Música do Brasil. Fez pesquisa musical para inúmeros outros projetos, tendo participado no filme Eu, tu, eles, de Andrucha Wadginton, além de escrever artigos para as principais publicações brasileiras. Atualmente, coordena e é um dos criadores do projeto Brasil Total, na Rede Globo. Vianna também é conselheiro informal do ministro da Cultura Gilberto Gil e participa de debates decisivos para a vida cultural brasileira. Apesar da relevância de sua produção como autor, o antropólogo ficou conhecido nacionalmente por conta da tragédia familiar protagonizada pelo irmão, o músico Herbert Vianna, há alguns anos, quando assumiu a condição de porta-voz da família junto à imprensa. Ele é um crítico fervoroso da forma como o conhecimento é difundido e filtrado pela grandes e tradicionais universidades primeiromundistas e distribuído para o resto do mundo. Leia a seguir entrevista exclusiva concedida ao EC.

Extra Classe – Em um recente artigo o senhor afirma que a bibliografia dos principais textos antiimperialistas acaba refletindo e sendo em si uma aula de imperialismo. Os autores básicos seriam sempre os mesmos: Karl Marx, Theodor, Adorno, Eric Hobsbawm, Stuart Hall e por aí afora. Inclusive, o que se publica de autores terceiro mundistas passaria pelo crivo destas instituições. Como isso se dá?
Hermano Vianna
– Tudo isso é resultado de um longo processo histórico que tem suas raízes na “descoberta do mundo” e colonização desse “novo mundo” pelos europeus. Na época das grandes navegações, eles já tinham começado a construir a estrutura universitária e de produção de conhecimento que conhecemos hoje. Essa rede de universidades, rica e poderosa como se tornou, não inventou apenas a defesa dos valores que a civilização ocidental tentava impor para o mundo, mas também possibilitou e financiou a crítica – por vezes a crítica mais radical – desses mesmos valores, tentando exportar essa visão crítica, também bem européia, para o resto do mundo. Como as universidades européias e norte-americanas são cada vez mais importantes na economia das idéias planetárias, com estudantes de todo mundo recebendo suas formações nos seus campi, elas passaram a ser a grande referência de qualidade nos mais diversos campos do saber, passando a exercer o papel de mediadores entre as produções intelectuais dos vários continentes. Não existem fortes canais de comunicação científica direta entre,por exemplo, o Brasil e os países africanos, ou mesmo latino-americanos, sem passar pelas universidades do “Primeiro Mundo”. É o tal Primeiro Mundo que nos apresenta os talentos dos nossos países vizinhos.

EC – Esse aval das grandes universidades do Primeiro Mundo faz justiça à produção de conhecimento existente ou essas universidades realmente só divulgam o que lhes é de interesse? Isso lhe parece intencional ou um fenômeno espontâneo a ser corrigido?
Vianna
– Não devemos encarar esta situação como um complô malévolo. É claro que existem muitas pessoas preocupadas com esse tipo de problema que eu aponto lecionando ou ocupando cargos importantes nas universidades norte-americanas e européias, gente muito atenta ao que acontece de interessante no mundo das idéias planetárias. Outras instituições, como a que mantém o Prêmio Nobel, sempre exerceram um papel político no sentido de dar espaço para literaturas e pensamentos do mundo inteiro. O que eu reclamo é que esses sejam nossos únicos canais de comunicação com o resto do mundo. Deveríamos ser capazes de fazer nossas próprias descobertas e estabelecer nossos próprios contatos transcontinentais sem depender da Europa ou dos Estados Unidos.

EC – Quem estaria na galeria dos injustiçados? Cite alguns exemplos e sua área de atuação?
Vianna
– Acho que basta citar alguns grandes nomes da literatura brasileira que ainda são grandes desconhecidos no panorama internacional. Por exemplo: João Cabral. Sabemos que ele é um dos maiores poetas que o mundo já teve. Mas poucos estrangeiros sabem disso. Foram poucas as traduções de João Cabral para outras línguas. Imagino que devem ter vários casos como João Cabral em outros países, que não são conhecidos entre nós porque não foram descobertos pelas universidades e editoras da Europa e dos Estados Unidos.

EC – Como o acadêmico incauto pode driblar essa realidade e ter acesso a esse conhecimento?
Vianna
– Tem que estabelecer uma rede de comunicação paralela, que não dependa dos grandes centros mundiais. Tem que trabalhar para que sua universidade estabeleça parcerias com centros acadêmicos de outros países do mundo. Tem que cultivar independência de interesses. Tem que fazer amizades em outros países, fora os óbvios. Tem que ser curioso, e usar todos os meios para estabelecer contato com o mundo.

EC – E no Brasil, que pensamentos e pensadores deveriam freqüentar esse meio, restrito aos “escolhidos”?
Vianna
– Para ficar com o perto: há uma produção cultural enorme e muito variada nos nossos países vizinhos da América do Sul. Mas muitas vezes assumimos como nossos os preconceitos de gente colonialista que acha que só há coisa interessante acontecendo no “Primeiro Mundo”. Estamos assim desvalorizando nossa própria vida intelectual, achando que tudo que produzimos aqui vale menos do que nos chega com o aval da Europa ou dos Estados Unidos.

EC – A internet e os grupos de debate, de certa forma, ajudam a furar esse tipo de bloqueio ou a democratização provocada pela web é só um mito?
Vianna
– A internet é um excelente caminho para estabelecer novas parecerias intelectuais com gente de todos os lugares. Mas é preciso saber procurar os parceiros. A maioria dos brasileiros vive em sites brasileiros e em sites europeus e norte-americanos. O que é uma pena.

EC – Qual a responsabilidade das editoras na cristalização dos nomes dos autores chancelados pelas grandes universidades como sendo legítimos representantes do que há de melhor produzido pela humanidade?
Vianna
– As editoras brasileiras geralmente escolhem seus lançamentos internacionais nas grandes feiras do livro européias, entre os livros publicados pelas grandes editoras européias ou norte-americanas, ou nos livros elogiados nas revistas do “Primeiro Mundo”. O que também é uma grande pena. Poderíamos sim ter uma política editorial mais independente. Mas para isso precisamos de mais coragem, inquietação e curiosidade. É fácil seguir as receitas de bom-gosto dos países ricos. É muito cômodo! Não se corre nenhum risco…

EC – Essa preleção parece não se restringir apenas aos pensadores, mas também aos objetos de estudo. Quais os temas preteridos pelo debate acadêmico, que se considera alta cultura, e como deveriam ser contemplados?
Vianna
– Quase nada conhecemos sobre novos estudos africanos, ou asiáticos. Mas não acho que o privilégio da “alta cultura” seja um grande problema. Os pensamentos europeu e norte-americano já fizeram a crítica desse privilégio. Hoje eles até incentivam mais o estudo sobre temas de fora da alta cultura, com uma grande quantidade de publicações que não acompanhamos profundamente no Brasil.

EC – O senhor tem um trabalho bem focado em fenômenos da cultura popular de massa, o rap e o funk carioca. A academia, a sociedade e as mídias têm visto esses fenômenos com a atenção merecida?
Vianna
– A atenção é variada. O rap sempre mereceu o respeito acadêmico. Há muitos estudos publicados sobre o assunto. Já o funk carioca demorou mais a ser levado a sério. Mas isso começa a mudar. O que mais sinto falta é de uma reflexão mais sistemática sobre a televisão brasileira. Estudar TV ainda é considerado uma coisa ”menor”, que dá menos status acadêmico do que estudar teatro ou cinema por exemplo. Isso para mim é quase uma tragédia cultural, diante da importância que a TV tem no Brasil.

EC – Historicamente buscamos referenciais de alta cultura fora do Brasil. Na sua visão, existe essa diferenciação entre alta e demais graduações culturais? Como e o que valorizar do que é produzido no Brasil?
Vianna
– Também buscamos os referenciais pop, de cultura de massa fora do Brasil. Acho que são dois problemas diferentes, de níveis diferentes. Não estou advogando que viremos as costas para a produção intelectual européia ou norte-americana. Respeito muitíssimo essa produção, e não seria quem sou nem pensaria o que penso sem ela. Apenas acho importante variar um pouco de dieta intelectual, abrir o leque… Mas também não acho muito interessante continuar tentando dividir o mundo da cultura em altos ou baixos. Tudo sempre foi bem misturado. E é cada vez mais misturado. Veja como a música eletrônica das massas de hoje tem contato fértil com tudo que a música erudita contemporânea (eletro-acústica, concreta etc) produziu recentemente. A mesma coisa acontece nas artes plásticas. Como classificar, por exemplo, o trabalho de Andy Warhol e de todo mundo que tem influência de Andy Warhol em seu trabalho?

EC – O senhor tem participado, como roteirista, de programas televisivos, inclusive da rede Globo. Como programas, como foi a experiência com o Brasil Legal, podem contribuir para a formação de consciência e identidade do povo brasileiro? Há algum projeto futuro nesse sentido?
Vianna
– Como a TV é o principal meio de distribuição de informações no Brasil, e praticamente todos os lares brasileiros têm TV, não dá mais para pensar o Brasil sem pensar a TV, como o Brasil é visto na TV, um Brasil que é inventado todos os dias na TV e que se inventa vendo TV. O Brasil Legal era apenas mais um olhar sobre o Brasil, um olhar que procurava privilegiar a diversidade de modos de vidas brasileiros. Porém o Brasil Legal era resultado do olhar de uma equipe carioca viajando pelo Brasil. No Brasil Total, projeto que coordeno no momento também para TV Globo, a idéia é formar uma rede de equipes sediadas em todos os lugares do país, que possa produzir programas colocando seu olhar regional no ar, para todo o Brasil e, se possível, para todo o mundo.

EC – O senhor esteve bem no centro da polêmica que envolveu a comunidade da Cidade de Deus e os cineastas que realizaram a película. Esse tão falado novo cinema brasileiro faz justiça à realidade da periferia ou ainda está muito preso aos conceitos de cinema do Primeiro Mundo e seus cacoetes?
Vianna
– Qualquer filme sempre vai ser uma das interpretações possíveis sobre qualquer realidade. Não é possível captar a realidade como ela é, sobretudo quando estamos tentando retratar uma sociedade complexa, produto da interação de grupos com diferentes pontos de vista, estilos de vida e objetivos políticos. O importante é que haja espaço para os diferentes pontos de vista se expressarem e possamos ter contato com várias interpretações distintas sobre a realidade. Gosto de ver novos filmes brasileiros fazendo sucesso e causando polêmicas.

EC – A que distância a TV está disso tudo?
Vianna
– A TV, bem ou mal, está no meio de tudo isso. Vide o sucesso de Cidade dos Homens na TV Globo ou o sucesso do Ratinho.

EC – Como o senhor descreveria a sua atuação junto ao Ministério da Cultura e do próprio ministro Gilberto Gil?
Vianna
– Sou amigo, há bastante tempo, do ministro. Colaboro com o ministério por amizade e por achar que esse é meu dever como cidadão brasileiro. Acho que temos uma oportunidade excelente no governo Lula de colocar em prática muitas das idéia que estamos discutindo há anos. É hora de arregaçar as mangas, de fazer boas propostas, de colaborar com as boas propostas. Isso é bem mais difícil do que ficar reclamando.

EC – O que o senhor considera como políticas culturais necessárias para o Brasil? O que é o ideal e o que é possível?
Vianna
– Para responder a essa pergunta teria que escrever vários livros. Mas para ser bem breve e pessoal: tenho interesse especial em projetos que potencializem a diversificada produção cultural das periferias das grandes cidades brasileiras. Há muita coisa interessante acontecendo, muitos grupos culturais fazendo trabalhos importantes nesses lugares “marginalizados”. Vide o Afroreggae em Vigário Geral, no Rio de Janeiro, ou o Alpendre, no Poço da Draga, em Fortaleza. Mas até agora são trabalhos isolados. O governo não precisa levar cultura para esses lugares. Esses lugares já produzem sua própria cultura, de alta qualidade. O que o governo pode fazer é tornar possível uma rede nacional de todos essas grupos para fortalecer o trabalho de cada um deles. Interesso-me também por todas as iniciativas de inclusão digital através da arte. É preciso que os jovens das periferias brasileiras tenham logo acesso público a computadores que se transformem em ferramentas de programação de música, tv digital, internet, jogos eletrônicos, software livres. Não vejo futuro para o Brasil sem a formação de uma cultura digital popular.

EC – Há previsão de lançamento de algum novo livro, o senhor está envolvido em algum projeto no momento?
Vianna
– O Brasil Total e minha colaboração com o MinC já tomam todo o meu tempo. Mas quero ter mais tempo para escrever mais em jornais. Há muita coisa interessante acontecendo no mundo passando despercebida na imprensa brasileira.

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