GERAL

Os chips preenchem os vazios da alma

Clarinha Glock / Publicado em 29 de março de 2006

A figura poderosa de Deus divulgada pelas bíblias não tem limite de memória, problemas de velocidade, provedor, banda larga ou vírus que interrompa e faça a conexão com ela cair. Mas está cada vez mais próxima de tudo isso. Deus, ou o que se chama de espiritualidade — algo que está além da imagem de um santo com cara de homem. Em tempos de celular, Ipod, Orkut e máquinas digitais, a fé se incorporou às buscas on-line, e agora preenche os buracos da alma não só por meio de livros sagrados, pelo rádio ou pela televisão, mas também pelos chips. Se por um lado a religião da era tecnológica utiliza as ferramentas mais modernas, por outro se utiliza destes meios para colocar em discussão justamente o mundo material que mais lucra com essa tecnologia.

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Arte de Claudete Sieber sobre foto de Tânia Meinerz

Todas as religiões, de alguma forma, se adaptam aos tempos modernos – algumas mais rapidamente, outras nem tanto, porque o campo religioso é heterogêneo e eclético, com diversas formações –, observa o antropólogo Ari Pedro Oro. “Mas, ao contrário do que se imaginava, que a sociedade tecnológica iria prevalecer sobre a religião no cotidiano da vida das pessoas, mesmo nas sociedades mais modernas a aposta no avanço da racionalidade em detrimento da religiosidade não aconteceu”, conclui. Na opinião de Oro, o desenvolvimento tecnológico da modernidade foi absorvido pelas religiões, que se apropriaram do avanço da mídia e estabeleceram novas formas de proselitismo por meio da comunicação impressa, do telefone, enfim, das novas tecnologias.

A análise é um pouco mais complexa no que diz respeito à fronteira entre as novidades de ponta da Ciência e a moral e ética, princípios também ligados à religião. “O próprio desenvolvimento científico questiona quais são estes limites”, explica Oro, que esteve recentemente na França dando aulas na Universidade de Sorbonne sobre Religião e Política. Ele diz que não chega a haver um impasse, mas uma aproximação e por vezes até um diálogo entre estes campos, em lugar da ruptura prevista, variando conforme a religião. Transplante de células-tronco, mapeamento de genoma – estes avanços previstos pela Ciência a partir do desenvolvimento tecnológico implicam discussões éticas, que lidam com a vida. “Os questionamentos vão acontecer dos dois lados”, prevê.

Desta forma, também as religiões vão se recompondo, ainda que do ponto de vista institucional isso não aconteça. Por exemplo, o catequismo, o Alcorão, a Torá, as bíblias vão continuar os mesmos. Segundo o antropólogo, os indíviduos religiosos é que vão promover essa mudança na subjetividade de suas convicções.

Ironia ou aprimoramento das técnicas de conquista de novos rebanhos de fiéis? Nem um, nem outro, acreditam alguns internautas para quem a espiritualidade não muda de conteúdo, apenas de meio. Essa é uma tendência recente. Nos documentos do Concílio do Vaticano II (1962 a 1965) sobre Comunicação Social, não se encontra uma linha sobre a rede mundial de computadores porque, claro, naquela época jamais se imaginava trocar e-mails em segundos e abrir comunidades virtuais para discutir a fé da Igreja Católica. Quarenta anos depois, há uma euforia com a internet a ponto de ela ser incluída nos planos da Igreja na área de comunicação.

“Há de se convir que este mundo virtual é fascinante, porque nos dá a impressão de não ter limites, onde tudo é possível, sem restrições e, até parece, sem leis”, admite Roberto de Araújo Faria, criador no Orkut das comunidades Dom Helder Câmara (atualmente com 1.129 membros) e da comunidade Ação Católica. Faria, que começou a ter contato com o mundo dos computadores quando era ainda aluno de matemática e depois como professor da Universidade Federal de Pernambuco, lembra dos tempos heróicos das máquinas de grande porte. Os micros, recorda, só apareceram na década de 70, quando, aliás, a internet se iniciou como uma rede acadêmica entre universidades. É do tempo em que se armazenavam as informações em fita cassete e os monitores eram tevês preto e branco de 12 polegadas.

Faria atuou na Ação Católica, foi seminarista até o terceiro ano de Teologia e entrou recentemente no movimento Renovação Cristã e na comunidade ecumênica. É revisor dos livros de Dom Helder Câmara que serão publicados na coleção Obras completas. Ele ressalta que o mundo virtual até concorre com o real – o Ministério da Educação regulamentou, por exemplo, os cursos a distância. Mas não chega a haver concorrência no que diz respeito a Deus. “Deus não é, nem nunca foi uma entidade virtual – não se deve confundir virtual com sobrenatural. Deus é superior à natureza, e a crença em Deus é objeto de fé. Não se prova: nem Deus, nem a sua não-existência”, argumenta Faria.

Espiritualidade versus mercado da fé

Para o filósofo e teólogo Claudemiro Godoy do Nascimento, que é mestre em Educação, agente de pastoral em Tocantins e “quase padre”, como ele mesmo se apresenta, a rede mundial de computadores não chega a influenciar ninguém em sua espiritualidade. O que existe são trocas de experiências concretas. “Também é muito difícil se falar em espiritualidade em tempos onde existe um grande ‘mercado’ religioso, cada qual vendendo o seu Jesus e a sua doutrina ao seu bel-prazer e gosto. E tem gostos para todos os tipos, de comunidades neopentecostais até a Renovação Carismática Católica, cada qual trocando experiência com seus pares”, constata Nascimento.

Preocupado com o prose-litismo exacerbado que a in-ternet proporciona, ele próprio tomou uma atitude virtual. “Cheguei a fundar uma comunidade chamada Concílio Vati-cano II, pois vi católicos fervorosos de correntes ultraconser-vadoras como Opus Dei e Tradição, Família e Propriedade (TFP) irem contra um Concílio estabelecido pela própria Igreja.”

Como tudo o que diz respeito às novas tecnologias, elas podem ser usadas de forma positiva ou não. “Há recomendações da Igreja Católica de se fazer bom uso deste espaço para veicular a vida da Igreja”, explica Faria. “A Santa Sé, a CNBB e muitos órgãos ligados à Igreja Católica têm sites na Internet, inclusive muito bons.” Ao mesmo tempo, há sites na internet discutíveis, como www.mh2.dds.nl/2002/interevan.htm, que propõem o uso da internet como meio de evangelização na África.

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Foto: Tânia Meinerz

Uma diocese cibernética

Emblemática é a história do bispo francês Jacques Gaillot. Em 1995, Gaillot estava incomodando os interesses de setores da Igreja e foi transferido para a Diocese de Partênia (www.partenia.org/pt/index.htm). Essa região, que nos primeiros séculos da Igreja chegou a ter algum destaque, na época era uma área de deserto, onde sequer havia vilas de moradores. Gaillot, conta Faria, não teve dúvidas: criou a primeira diocese virtual da Igreja Católica. Foi um sucesso tão grande que os demais bispos franceses tiveram de se redimir e ofereceram a Gaillot voltar à sua antiga diocese. Ele recusou. Ainda é bispo de Partênia.

Diz Faria que, entre os fiéis da Igreja Católica, hoje o debate mais acirrado nas comunidades virtuais do Orkut é o da Teologia da Libertação X Teologia da Salvação. Este debate transcende as discussões religiosas para chegar àquelas comunidades que estão ainda longe dos avanços tecnológicos e sofrem com ameaças reais de séculos passados, como gripes que matam, tuberculose, pobreza.

Virtualidade está na história dos judeus

O rabino e professor Ruben Luis Najmanovich compara a virtualidade da internet à própria história do povo judeu. “Há 2,5 mil anos os judeus falavam no conceito de povo, embora estivessem dispersos nos quatro cantos do mundo; tinham a visão e a esperança de habitar uma terra que não conseguiam nem enxergar, porque era proibido pisar em Jerusalém – mais virtual que isso, impossível.” Por essas e outras, ele fala brincando que o criador do mundo virtual não foi Bill Gates, mas o povo judeu.

Copyright, copyleft, hiper-texto – o professor lembra que esses termos não são desconhecidos, na prática, dos adeptos da fé judaica. O Talmud, livro que traz a lei oral judaica com suas explicações e deduções, já tinha termos e conceitos que remetiam a outros comentários, e estes a outros, como os links atuais. Também ensinava que, quando um
rabino utilizasse um conceito, devia indicar quem era o autor. O que a tecnologia fez foi facilitar o acesso a estas informações, reitera Najmanovich.

“A tecnologia nos brinda com o poder de acesso à informação de forma veloz, mas o diálogo, o entender o outro, a idéia de pensar como mudar alguma atitude que possa afetar de forma positiva ou negativa, não se entrega a nenhum telefone celular com câmera, nem ao notebook, ao palm, ao pocket ou ao Ipod”, ressalta.

Najmanovich lembra ainda outro ponto importante: as pessoas vão ao cinema e desligam o celular. Vão a uma sinagoga, a uma igreja, a uma mesquita, a um lugar espiritual, e não conseguem desvin-cular-se. Por quê? “Porque o cinema é um lazer, salvo se for um filme que faça pensar. Mas os lugares espirituais convidam à introspecção, a uma discussão íntima que seja um estopim para o nosso acordar espiritual. E quando temos medo de nos acordar espiritualmente, e entender como pode ser diferente o mundo, começam nossas crises”, analisa. Nesse ponto, a tecnologia tem sido mal utilizada para preencher espaços vazios que a pessoa não consegue preencher com uma carícia, com a espiritualidade, com sentimentos puros.

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Foto: Tânia Meinerz

Mais de 300 igrejas em assembléia

Não é por acaso que o tema da 9º Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que ocorreu em Porto Alegre em fevereiro deste ano – a primeira realizada num país latino-americano, com um público estimado de cinco mil pessoas – foi “Deus, em tua graça, transforma o mundo”. Marcelo Schneider, assessor do encontro, explica: “A experiência religiosa, no entendimento cristão, hoje em dia, não é alheia à nossa experiência aqui no mundo. A angústia em relação ao transcendente e ao sentido da vida passa pela mesma procura de resposta sobre uma vida boa”, diz Schneider, que é luterano e doutor em Teologia Sistemática com ênfase em Ética Social Ecumênica.

Na assembléia, não estiveram apenas representantes das Igrejas Anglicana, Luterana, Ortodoxa, Batista, Pentecostal – no total, compõem o CMI 347 igrejas-membros. Embora a Católica Romana não seja membro, é uma colaboradora muito próxima. Participaram também catadores de lixo, indígenas, organizações não-governamentais. Em meio a estudos bíblicos, o povo discutiu questões básicas, como água, sobrevivência, incluindo a questão da existência de Deus como algo muito mais amplo.

Schneider lembra que a virada do milênio mexeu com o imaginário das pessoas e com a visão de religiosidade de cada um. E mais: adverte que as instituições históricas, como a igreja e o governo, têm muito em comum e ajudam a criar um clima de ansiedade. “Tanto a política quanto a religião são tidas como guias através do tortuoso caminho do tempo. A política, como um espaço de tomada de decisões, e a religião como espaço de guia espiritual. O problema é que os dois fracassaram”, avalia.

Seguindo o raciocínio de Schneider, a religião fracassa quando não consegue mais oferecer respostas num tempo em que a ética está ausente, o que não significa a volta para uma sociedade conservadora. O problema, ressalta, é que o que fere a dignidade humana, no tempo atual, parece ser relativo. Por exemplo: “O sofrimento do mendigo que tem idade para ser meu avô – ele só é assim porque não teve estudo; e é assim mesmo, Deus deu a riqueza para alguns. Esse fatalismo teológico é o primeiro sinal de uma deficiência de articulação também teórica”, observa Schneider

Ao mesmo tempo, o fracasso da vida daquele mendigo é reflexo do fracasso da humanidade diante da sua tarefa de administrar o mundo. É uma questão de responsabilidade, em última análise, na qual política e religião estão muito próximas. Por isso, ele insiste: procurar Deus na internet é fruto também da carência de respostas. “Quem cresce num mundo sem referenciais claros? Quem cresce numa sociedade onde a desordem impera? O ditador, o opressor, o conservador. Quem cresce numa sociedade onde não há respostas claras? Cresce quem oferece pelo menos uma resposta”, afirma Schneider.

O ponto de partida é o mesmo – é a pergunta sobre seu lugar no mundo. “Não adianta a comunicação ser facilitada, e na minha agenda do celular caber 2,5 mil números, se eu não sei para quem ligar. Posso ter 800 amigos no Orkut, mas eu não sei qual deles pode me responder à questão. Deus não é da nossa comunidade do Orkut”, anuncia.

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Foto: Tânia Meinerz

A máquina não moderniza a fé

O computador mais moderno não substitui o interesse perene que a espiritualidade suscita, acredita o frei dominicano e escritor Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto. Não se trata de suprir uma “falta” de esperança no mundo atual, diz Frei Betto. “Todos nós, humanos, vivemos em ‘falta’, daí a dinâmica do desejo. Na linguagem teológica, somos marcados pelo pecado original – a finitude, a incompletude, o que rege a dinâmica do amor, possibilidade de plenitude, sobretudo na experiência mística.” Para Frei Betto, se as pessoas hoje estão desespe-rançadas não se deve ao avanço tecnocientífico, mas – e aí ele cita o professor Milton Santos – por colocarem o desejo em bens finitos, induzidos pelo consumismo. Na conjuntura regida pelo neolibe-ralismo, o desejo jamais é saciado, daí surgem as frustrações.

A máquina não moderniza a fé

O computador mais moderno não substitui o interesse perene que a espiritualidade suscita, acredita o frei dominicano e escritor Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto. Não se trata de suprir uma “falta” de esperança no mundo atual, diz Frei Betto. “Todos nós, humanos, vivemos em ‘falta’, daí a dinâmica do desejo. Na linguagem teológica, somos marcados pelo pecado original – a finitude, a incompletude, o que rege a dinâmica do amor, possibilidade de plenitude, sobretudo na experiência mística.” Para Frei Betto, se as pessoas hoje estão desespe-rançadas não se deve ao avanço tecnocientífico, mas – e aí ele cita o professor Milton Santos – por colocarem o desejo em bens finitos, induzidos pelo consumismo. Na conjuntura regida pelo neolibe-ralismo, o desejo jamais é saciado, daí surgem as frustrações.

Na contramão da virtualidade, Frei Betto é um dos arti-culadores dos Grupos de Oração que funcionam em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. No total, são 10 grupos, com cerca de 15 participantes cada, que têm como objetivo “propiciar um espaço de vida espiritual para profissionais liberais com dificuldade de inserção em esquemas paroquiais e mais interessados em empatia comunitária, no compromisso social, na luta por Justiça”.

Os primeiros grupos datam de 1979. A proposta destes encontros de reflexão, como explica Frei Betto, é orar, meditar, estudar tradições e tendências espirituais, nutrindo a vida de fé e compromisso com a Justiça. Eles se reúnem uma ou duas vezes por mês, sendo que num semestre todos os grupos de cada Estado fazem um retiro espiritual num fim de semana. Noutro semestre, há um “retirão” dos grupos dos três Estados, sempre num feriado prolongado para permitir que fiquem juntos pelo menos três dias. Para participar, é preciso estar interessado na vida espiritual, num cristianismo não canônico, ecumênico, capaz de um bom entrosamento com pessoas de outras denominações religiosas.

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