GERAL

Pensando a Ética

Por Gilson Camargo / Publicado em 21 de março de 2007

Yves de La Taille, psicólogo especializado em desenvolvimento moral, fala sobre como, apesar da crise por que passam, sobretudo na família e na escola, a moral e a ética continuam a ser conceitos fundamentais na Educação e no desenvolvimento das crianças. Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, onde leciona Psicologia do Desenvolvimento Moral, é pesquisador em Psicologia do Desenvolvimento com ênfase no desenvolvimento moral e ético. É co-autor dos livros Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão, indisciplina na escola (Summus Editorial) e Cinco estudos de educação moral (Casa do Psicólogo) e autor de diversos livros sobre moral e ética, entre os quais Limites: três dimensões educacionais (Editora Á tica) e Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas (Artmed). Nascido em Taverne, na França, veio para o Brasil aos 21 anos. Desde a década de 1980, investiga o desenvolvimento moral da sociedade e é um dos especialistas mais respeitados do país nessa área.

Extra Classe – O que é moral e o que é ética?
Yves de La Taille
– A definição habitual de moral e ética refere-se à questão dos princípios e regras de conduta. Moral diz respeito aos deveres; ela regra os princípios inspirados pelos ideais de dignidade, de justiça e de generosidade. São as respostas à pregunta existencial que todos nós nos fazemos: “Como devemos agir?”. Ética é outra coisa; remete à dimensão da vida boa, da felicidade, a aspectos existenciais da vida. É a diferenciação que eu tenho trabalhado. A pergunta da ética é “Que vida eu quero viver?”. Somente merece o nome de ética um projeto de vida que inclua a dimensão moral; portanto, o respeito pela dignidade alheia e pela justiça.

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Foto: Paulo Brasil/Divulgação

Foto: Paulo Brasil/Divulgação

EC – De que forma o senhor relaciona esse debate sobre moral e ética com a Educação? Há uma relação desses temas com a falta de limites?
Yves
– Limite é uma tradução metafórica da moral e da ética, remete mais à questão da moral, àquilo que não deve ser ultrapassado, às balizas que guiam os comportamentos aceitáveis em sociedade. O trabalho que eu desenvolvo é de psicologia, e meu contato com a Educação consiste essencialmente em trazer os conhecimentos da psicologia moral e ética para os educadores e arriscar alguns palpites. A Educação está muito interessada por esse saber, notadamente porque, na prática, as escolas têm muitas dificuldades em trabalhar com essas questões. Há queixas de falta de limite, de indisciplina, de falta de autoridade dos professores, de violência na escola, de humilhações, e isso desarmoniza o convívio dos alunos entre si e com os professores. Interessa à Educação equacionar do ponto de vista psicológico e também sociológico, antropológico e filosófico. Uma das críticas que eu ouso fazer à Educação é que ela se queixa muito dos problemas de relacionamento, mas não tem nenhum trabalho explícito para tratar dessas questões. E a tendência dentro da escola é dizer que o problema é da família. Bom, é da família, mas é da escola também. Quem lida com os jovens, quem educa os jovens, todos têm responsabilidades na transmissão do conhecimento em geral e da moral e da ética em particular.

EC – O senhor afirma que há queixas dos educadores em relação à indisciplina e falta de limites por parte dos alunos. Quais são os mecanismos explícitos a que o senhor se refere como adequados para melhorar as relações no ambiente escolar?
Yves
– Entre os vários possíveis, vejo pelo menos três. No campo da moral e da ética, projetos de vida que podem ser trabalhados explicitamente pela escola, e não apenas nas entrelinhas ou de forma isolada. Este é o primeiro ponto: que a questão da ética e da moral seja trabalhada explicitamente. Segundo, que seja feita, sobretudo no caso da moral, de maneira institucional. O que acontece na prática é que cada professor lida com seus problemas de convivência em sala de aula do seu jeito, acha que está autorizado a se ater aos seus próprios valores prescindindo de uma visão de mundo. É como se cada professor ensinasse um conceito diferente de moral e ética. Tem de haver um trabalho institucional para que o aluno possa ter na sua frente um quadro claro do que ele vive e do que esperam dele. E também porque a discussão entre colegas é extremamente rica para esclarecer conceitos, confrontar as idéias, e o trabalho em equipe favorece isso. O terceiro ponto é que de nada adianta deixar um tema claro e até trabalhar isso institucionalmente se a escola não for, ela mesma, uma espécie de micromundo onde a moral de fato vale. Às vezes, a moral fica muito centrada na questão professor-aluno. E a relação com os funcionários da escola, que muitas vezes não são respeitados? A moral é universal, vale para todos, e não apenas para determinadas categorias de pessoas. A escola tem de ter o máximo possível de expressão daquilo que ela própria afirma ser bom, ser correto.

EC – Mas a escola também acaba reproduzindo distorções da sociedade ou não?
Yves
– Ela está sujeita a fatores externos, que se refletem nas suas relações internas. Mas as hierarquias e desigualdades podem ser, no mínimo, trabalhadas e contestadas dentro da escola. O professor sozinho, isolado em sua sala, pode até achar que está tudo bem, mas o trabalho em equipe é ótimo para descentrar as pessoas.

EC – No caso do ensino privado, como conciliar os interesses econômicos do empresário da Educação com a concepção de uma escola que seja, como o senhor define, um micromundo pautado pela moral e pela ética?
Yves
– Depende muito dos dirigentes da escola. Se a escola para eles é uma empresa que quer ter lucro, fica muito difícil, sob o aspecto moral, buscar uma formação ética nesse contexto, porque a tendência é você se adequar ao que quer o cliente, adequar seu produto à demanda. Isso é muito complicado do ponto de vista da Educação. Não vamos esquecer que a Educação é um serviço; porém, é um serviço público. É um dever dos pais e da sociedade dar ensino, formação, e um dos objetivos dessa formação é a cidadania. Então, como empresa, é uma empresa muito particular. Não é um direito que ela detém de fazer carros, não é um direito ou um dever dessa empresa fabricar microondas, mas é o seu dever maior dar educação. Todos discursos que fazem referência ao produto e ao cliente devem ficar apenas no setor administrativo, não podem vazar nem minimamente para a sala de aula. Quem não se preocupa com isso acaba com a própria função do professor quando eles ouvem dos alunos: “Você não manda em mim, porque eu pago a escola”. É o fim. Aí realmente não dá pra fazer mais nada. Mas a escola pode muito bem separar as coisas. É uma empresa privada querendo sobreviver? Sim. Porém, alguns princípios, alguns limites não podem ser ultrapassados. Eu não vou ganhar dinheiro matando a autoridade do meu professor em nome de coisas que eu até acho inúteis, mas que o mercado exige. Algumas coisas eu não vou negociar porque são princípios. E a moral, evidentemente, é um deles.

EC – O senhor afirma que em instituições de ensino regidas pela economia de mercado o professor perde a autoridade. Por quê?
Yves
– Qualquer profissão que você exerça com a espada sobre a cabeça vai te levar a perder o emprego não por questões de competência, mas por questões outras. Isso, aliás, acontece com a maioria dos trabalhadores, com exceção do setor público, em que há estabilidade. Eu acabo de voltar da Europa, onde se discute isso o tempo todo. O emprego é precário, e tal precariedade não diz respeito à competência profissional, mas a uma série de fatores que o trabalhador não pode controlar. Vale para todos e evidentemente vale também para o professor. E para o professor há um agravante: ele trabalha com seres humanos, faz um trabalho que envolve emoção, apego. As crianças e os jovens não são tranqüilos, nunca foram, e ainda bem que não são. Educar é um trabalho que pede calma, reciclagem, aprendizado, paciência. Em todas profissões, essa ameaça do destino que não se coloca necessariamente em relação à competência é desastrosa. Eu diria que, para a escola, é mais desastrosa ainda. Pelo amor de Deus! Se alguém quiser abrir uma escola, que não o faça por dinheiro, como se abrisse uma pizzaria ou uma loja de cosméticos. Que haja alguma vocação para ensinar ao próximo uma responsabilidade de uma geração em relação à outra. Eu posso fazer um carro mais ou menos bom, paciência, isso não é muito grave se eu não for muito competente. Agora, se eu brinco com Educação, na verdade, estou brincando com a formação das futuras gerações, estou brincando com a vida. E isso a própria moral é a primeira a condenar veementemente.

EC – Seu mais recente livro (Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas) faz um paralelo entre intelectualidade e afetivi-dade. Qual é a relação com moral e ética?
Yves
– Conceitua a diferença entre moral e ética. Demonstra que, psicologicamente essas duas dimensões se complementam, ou seja, alguém só vai realmente ser um ser moral se isso fizer sentido existencial para ele. Uma vez equacionada essa dimensão psicológica, há um capítulo dedicado a dimensões intelectuais, ou seja, à razão e à inteligência, seu papel e seu desenvolvimento, e um capítulo dedicado às dimensões afetivas, energéticas, os sentimentos da vergonha, a confiança, a culpa, a empatia. Em todo ato moral e em toda ação ética há uma dimensão intelectual e uma afetiva: saber e querer.

EC – De onde vem seu interesse por moral e ética?
Yves
– Escolhi essa área moral e ética como linha condutora da minha vida acadêmica e profissional. Não sei por que, nunca fiz uma auto-análise para descobrir as raízes e os desejos que me levaram a isso. Só me ocorre dizer que, desde cedo, sempre gostei dessas questões humanas mais do que de química e de biologia. Sempre tive também uma inquietação em relação aos valores. Não quer dizer que comecei a estudar a moral aos 17 anos. Isso veio pouco a pouco depois de eu me formar. Credito à minha mãe, Janick, que sempre teve um senso de justiça muito claro e que sempre mostrou indignação cada vez que ela sabia que se prenunciava alguma injustiça. Certamente essa indignação, que ela mantém hoje aos 84 anos, foi uma excelente lição de vida, o que, aliás, talvez falte para muitas crianças hoje. A indignação é uma bela lição de vida.

EC – Mas as crianças de hoje são filhos de gerações que reagiram a uma educação rígida afrouxando limites e, de certa forma, subvertendo a moral e a ética, o senhor não acha?
Yves
– Acho que há uma relação. Não chegaria a dizer que essa é a chave, mas a geração da década de 1960, 70, foi criada com valores-limite. Rebelaram-se contra alguns e, na verdade, acabaram jogando fora o bebê com a água do banho. Frases como “é proibido proibir”, que faziam todo um sentido metafórico se tomadas ao pé-da-letra, foram uma grande bobagem. É proibido proibir ainda é uma proibição. Essa é uma geração que, de fato, perdeu bastante, eu diria, em relação à moral. Por outro lado, é uma geração que, apesar de grandes discursos solidários comunitários da época, foi extremamente egoísta. Na verdade, uma geração que reivindicou para si liberdade, mas para quem a responsabilidade era dividida, ou seja, a liberdade é individual, e a responsabilidade é coletiva. Moralmente, a responsabilidade também é individual. A rigor, é uma geração que não está deixando, ao contrário dos pais dela, um mundo muito bom para seus filhos.

EC – E como o senhor define as gerações das décadas de 1980 e 90?
Yves
– São os pós-modernos. Estou escrevendo um livro a respeito disso, que fala sobre as dimensões educacionais, sobre moral e ética. Não poderia me aprofundar muito nesse assunto, mas há uma metáfora do Bauman segundo a qual as pessoas turistas ou peregrinos no planeta têm uma relação superficial com tudo, não fazem grandes planos. Eu diria que isso vale para todos. Faltam ideais a essas gerações, hierarquia de valores, tudo é valor e, nada é valor. Há também a exacerbação do consumo. Estamos em um deserto cultural. Só que, como diria o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995): “Você atravessar o deserto é uma coisa, mas ser o deserto é outra”. Estamos, atualmente, em um deserto cultural, em um vazio bastante grande. Quem tem provisões agüenta a travessia. Quem nasceu na década de 1960, 70, ainda tem provisões. Mas para quem já nasceu no deserto, é cruel. É o caso de quem nasceu na década de 1980, 90. Já quem nasceu em 2000 teria de se analisar depois. Vive-se no eterno presente, no aqui e agora. É por isso que é difícil ter planos de vida, projetar o futuro quando se vive fragmentos de tempo.

EC – Uma sociedade em crise moral e ética…
Yves
– Sim, acho que sim. Sim! Estamos em crise em relação a muitas coisas. Não é à toa que, contraditoriamente, todo mundo se preocupa com moral e ética: o meio ambiente vai mal, a qualidade de vida vai mal. Existe um mal-estar generalizado.

EC – Com relação ao meio ambiente, o superpovoamento, as cidades cada vez menos habitáveis, as tragédias urbanas, como o senhor vê o futuro da humanidade dentro de uma perspectiva moral e ética?
Yves
– Essa é uma questão ética, e não moral. Está essencialmente ligada ao futuro no planeta Terra, às perspectivas da humanidade, à relação entre as diversas gerações. Claro que é uma questão moral de respeitar a vida e as futuras gerações, mas as ações são dificilmente regradas pela moral. Qual é a regra? Então eu não compro mais carro. Eu não ando mais de avião que polui mais ainda, não uso mais aerossol. É difícil você regrar isso. Mas você pode regrar de outra forma: não mato, não minto, ajudo o próximo. A questão da poluição do planeta pode ser colocada em figuras jurídicas, que dizem respeito às empresas. Cada empresa deverá instalar seus equipamentos para reduzir a emissão de poluentes, mas não é uma decisão individual. Do ponto de vista ético, é um belíssimo tema. Para que o planeta não vá de mal a pior, é preciso mudar o estilo de vida, e não apenas deixar de fazer meia dúzia de coisas. É o estilo de vida que tem de mudar. Os valores devem mudar. É o valor do consumo. E esses valores não são morais, são éticos: devem dar conta de questões como “Que vida eu quero viver?”, “O que é ser feliz?”. É ter um carro, um microondas, um celular? Acho que a questão do meio ambiente, do planeta, que pelo jeito ninguém descobre, em relação ao clima, essa hipótese de que a Terra está esquentando foi feita em 1967, antes de o homem ir à lua. Mas ela foi concertada durante muito tempo, por lobbys, que estavam interessados em aumentar, e não em reduzir os poluentes. Agora há uma unanimidade em relação ao superaquecimento da Terra. Surge uma outra questão: esse planeta não agüenta. Se todos quiserem viver com o padrão de vida dos Estados Unidos, será necessário meia dúzia de planetas Terra. Essa é uma questão radicalmente nova, e as questões novas são interessantes, porque dificultam as velhas idéias, que devem ser reinterpretadas, repensadas.

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