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Tolerância social contribui para o abuso contra menores

As meninas estão entre as crianças e adolescentes que mais sofrem abusos no Brasil e no mundo. Um problema agravado pela sociedade que ainda oferece resistência em punir os verdadeiros culpados
Por Clarinha Glock / Publicado em 12 de novembro de 2009

Tolerância social contribui para o abuso contra menores

Foto: Luciano Lobelcho

Foto: Luciano Lobelcho

Dos livros e das telas do cinema e da televisão para a realidade, a fantasia se transforma em um grande pesadelo que assume dimensões polêmicas, especialmente se os envolvidos são figuras conhecidas. Dois casos recentes mostram como nem as leis internacionais, nem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no Brasil são suficientes para mudar comportamentos abusivos, aceitos como se fossem “normais” por uma parte da sociedade.

Quando o diretor Roman Polanski foi preso na Suíça, em 26 de setembro deste ano, a pedido do governo norte-americano, um grupo de cineastas fez um abaixo-assinado solidário pedindo sua libertação. Polanski havia sido acusado de estupro de uma jovem de 13 anos de idade em 1977, nos Estados Unidos.

O diretor admitiu ter feito sexo com a garota, embora tenha negado o estupro, mas fugiu antes da sentença, temendo que tivesse de cumprir os 50 anos de prisão previstos para o crime sexual. Foi detido quando ia receber uma homenagem no Festival de Cinema de Zurique. No total, 138 integrantes da indústria cinematográfica assinaram o documento de protesto contra a detenção.

O que faz com que algumas pessoas não condenem adultos por manterem relações sexuais com menores de idade? “Por se tratar de uma celebridade consagrada no cinema, inconscientemente há uma certa empatia por Polanski”, analisa a psicóloga clínica e judiciária Tania Guerra, do Tribunal de Justiça de Pernambuco. “Também o fato de ele ter admitido o crime contou positivamente a seu favor”, diz.

Se fosse no Brasil, Polanski estaria livre porque seu crime já estaria prescrito. Além disso, como é muito difícil apurar este tipo de delito, em território brasileiro talvez o cineasta nem fosse condenado. O país é machista e lida mal com questão de sexualidade – especialmente das crianças e dos adolescentes, avalia Leila Paiva, coordenadora do Programa Nacional do Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Preconceitos e equívocos favorecem a impunidade

A legislação é clara. O Artigo 244A do ECA diz que submeter uma criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual é passível de reclusão de quatro a dez anos. Mesmo assim, alguns membros da própria Justiça ainda encaram de maneira preconceituosa ou equivocada este tipo de crime.

Em 2006, o atleta José Luiz Barbosa, conhecido como Zequinha Barbosa, campeão mundial em 1987 na corrida de 800 metros rasos, e seu assessor, Luiz Otávio Flores da Anunciação, foram absolvidos da acusação de exploração sexual de duas adolescentes. Em decisão anunciada em 2009, o Superior Tribunal de Justiça manteve a absolvição, alegando que as jovens na faixa dos 13 e 14 anos com quem ele e seu assessor teriam se encontrado em um motel já eram “prostitutas reconhecidas”.

O Ministério Público recorreu da sentença. “O que se denota a partir da decisão é que ainda é comum na Justiça fazer-se julgamento moral reprovando o comportamento das vítimas de violência sexual, em detrimento do julgamento do fato delituoso”, acusa uma nota lançada pela Comissão Intersetorial e pelo Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

A legislação brasileira previa, até pouco tempo, “a presunção” da violência sexual quando a vítima tinha menos de 14 anos. O termo “presunção” implica que a vítima pode eventualmente consentir – existem decisões que consideram que a liberação dos costumes e o fato de meninas de 12 e 13 anos terem corpo formado indica sua aptidão para optar pela prática de sexo. “Mas uma coisa é uma menina de 13 anos transar com o namorado de 16 anos e esse menino vir a ser responsabilizado. Com um adulto, é ele quem tem que colocar limite na relação – e tem a obrigação de não permitir”, afirma o juiz José Antônio Daltoé Cezar, da 2ª Vara da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul.

LEGISLAÇÃO – A Lei 12.015, aprovada em agosto de 2009, é um avanço. Ao alterar a definição de crime sexual do Código Penal e instituir penas para a relação sexual com vulneráveis (meninos ou meninas com menos de 14 anos), busca diminuir a impunidade. “Estima-se que somente 10% dos casos sejam notificados”, diz o juiz. Em cerca de 80 a 90% das situações, o abuso é praticado por pais, padrastos, tios, enfim, pessoas que cuidam destas crianças e adolescentes. Geralmente não deixam vestígio nem testemunhas, e os abusadores procuram desacreditar o relato dos jovens. Para driblar as dificuldades, o juiz implantou desde 2003 o sistema de Depoimento Sem Dano, em que as crianças e adolescentes vítimas de violência são ouvidas com o auxílio de psicólogas.

Capacitação de educadores e de profissionais da saúde para prevenir e deter o abuso

O primeiro passo para acabar com a impunidade nos crimes sexuais contra crianças e adolescentes é a capacitação de educadores e profissionais de saúde para que tenham um olhar atento. É possível identificar sinais da violência. Mas há um outro lado essencial nesse processo – os pais. Quando os pequenos têm atenção, diálogo e confiança dentro da família, deixam de ser alvos dos exploradores. “Para quem explora e abusa, o segredo e o silêncio das vítimas são fundamentais”, lembra o juiz José Antônio Daltoé Cezar.

A internet é, sem dúvida, um dos meios mais rápidos de propagação de pornografia infantil e redes de pedofilia, e, no entanto, muitos pais deixam os filhos livres para usar o computador. “Não é porque uma criança está dentro de casa que está protegida”, adverte uma delegada de polícia que preferiu não se identificar. Ninguém deixaria o filho sozinho em uma praça no centro da cidade à meia-noite, compara. Então por que deixam na internet? “O predador se aproxima de quem está mais carente e desprotegido”, alerta.

Não se trata de proibir, mas de educar e atentar para os perigos a que estão expostos. O maior número de denúncias que chega à polícia é justamente sobre a rede de relacionamentos Orkut e as salas de bate-papo. Evitar colocar on-line o nome da escola, fotos e outros dados pessoais é uma forma de prevenção.

O Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da Secretaria Especial de Direitos Humanos está lançando uma cartilha para explicar a professores e alunos o que é crime, como identificar os sinais e deter o avanço de abusos, não só na internet. “Recebemos muitas ligações de jovens, feitas em telefones públicos da própria escola, denunciando ou pedindo informação”, informa Leila Paiva, coordenadora do programa. A intenção é atender a esta demanda, orientando como proceder em cada caso. As cartilhas serão distribuídas pelo Ministério da Educação a escolas de todo o Brasil.

ESCOLA – Outras iniciativas, como a do Conselho Tutelar de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, prometem incentivar mudanças de comportamento e promover a discussão e o esclarecimento nas salas de aula. Amparados pela experiência parecida e já em andamento em Santa Catarina, os conselheiros gaúchos vão implantar em 2010 o projeto ECA na Escola – cinco a sete adolescentes serão treinados pelos integrantes do Conselho e vão apresentar a lei para outros jovens, uma vez por semana, em horário de aula. Até o final do ano, cada grupo vai treinar outros jovens, garantindo assim a continuidade do trabalho. “A ideia é expandir para toda a região”, avisa.

Dados mundiais
· As estimativas indicam que entre 500 milhões e 1,5 milhão de crianças todos os anos são vítimas de castigos físicos, agressão física e/ou psicológica.

· Entre 5% e 10% das crianças dos países industrializados são vítimas de abuso sexual com penetração durante a infância. Um número três vezes maior sofre alguma forma de abuso sexual.

· Até maio de 2009, 131 países haviam ratificado o Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança relativos à venda de jovens, prostituição infantil e utilização de menores de idade em pornografia. A Convenção tipifica como delito todas as formas de exploração sexual de crianças e destaca a importância de ajudar quem tenha sofrido estes abusos.
Fonte: relatório Progresso para a Infância (Unicef),/2009.

Os vários caminhos da exploração sexual

A exploração sexual de crianças e adolescentes tende a ser uma preocupação ainda maior em regiões do Brasil onde a perversão associada à fantasia encontra cenários afrodisíacos. Os visitantes que chegam ao Nordeste – campeão nas estatísticas do turismo sexual – falam várias línguas e não estão preocupados com as leis nem com as campanhas feitas pelo governo brasileiro. Protegidos pelo anonimato e distantes de suas terras de origem, sem risco de sofrerem algum prejuízo de imagem perante a sociedade, eles se multiplicam, diz a psicóloga Tania Guerra, de Pernambuco.

Muitos destes turistas vêm em busca das jovens em poses sexuais que povoam as páginas de propaganda na internet. Mas não só eles. Como a rede mundial de computadores interligados está em expansão no Brasil e o acesso tende a ser cada vez mais facilitado, as previsões são de que pornografia infantil virtual aumente nos próximos anos e se espalhe ainda mais por todos os cantos. E já que a internet não tem fronteiras, e nem todos os países têm uma legislação restritiva rigorosa, a Polícia Federal muitas vezes esbarra na soberania alheia para investigar os casos que detecta no Brasil.

O delegado Stenio Santos Sousa, responsável pelo Grupo Especial da Polícia Federal (PF) encarregado de investigar este tipo de crime lembra que são dois delitos distintos: um é o abuso sexual; o outro é o registro dessa violência, com sua divulgação – motivo das Operações Carrossel e Turko (2007, 2008 e 2009), entre outras operações recentes. Sem uma legislação explícita, e sob a alegação do direito de privacidade, os provedores de acesso se negam a fornecer os dados, dificultando o trabalho da PF, que tem que recorrer à Justiça. Essa demora favorece os criminosos. Se por um lado a legislação está sendo aprimorada para tipificar novas condutas, por outro, ainda há falhas. A distribuição de pornografia infantil está sujeita a pena de três a seis anos de prisão, com direito a substituição por trabalhos à comunidade e regime semiaberto. “Se houvesse penas maiores, talvez a exploração contra os jovens não fosse tão escancarada”, desabafou uma delegada da Polícia Federal. “Mas em todas as esquinas há crianças sendo exploradas e não há nenhuma punição efetiva contra os abusadores”, constata.

O que fazer diante da suspeita ou certeza de um caso de violência

Quando uma criança ou adolescente é violentado(a) sexualmente, sua emoção fica abalada, passando a desconfiar de todos, culpando-se e isolando-se socialmente. Neste momento, é importante que o profissional esteja seguro, preparado para fazer o acolhimento e denunciar o caso.

As denúncias podem ser feitas no Conselho Tutelar, nas delegacias especializadas ou pelo Disque Denúncia 0100.

Algumas recomendações que todo profissional precisa considerar, nos casos de abuso e exploração sexual:

– Acreditar e validar a história da vítima
– Respeitar a confidencialidade
– Não culpar a vítima
– Respeitar o momento da vítima
– Promover o acesso à rede de serviços
– Garantir que crianças e adolescentes tenham prioridade de atendimento, em qualquer situação.

Fonte: Ministério de Educação/SEDH

Operação em São Gabriel abriu uma porta para novas denúncias

A primeira denúncia chegou ao Conselho Tutelar porque uma empregada que trabalhava com um dos envolvidos brigou com o patrão. Revoltada, ela contou que o homem levava adolescentes para casa. “Fiquei um ano com esta denúncia, colhendo mais informações, junto com a polícia e a Promotoria da Infância”, relata Cláudia Achilles, conselheira tutelar em São Gabriel há seis anos. Até que chegaram mais e mais casos.

A operação desencadeada em 2007 deixou marcas profundas na cidade. Os envolvidos eram pessoas conhecidas e respeitadas – um médico, duas educadoras de um abrigo, dois policiais militares, um comerciante, um advogado, um ex-radialista, um ex-patrão de CTG. No total, o Ministério Público denunciou 11 pessoas.

As garotas tinham entre 11 e 14 anos. O Grupo Sentinela, do qual Achilles faz parte, puxou o fio da meada e foi desenrolando uma história de exploração sexual. A equipe formada por psicólogos, assistente social, representantes do Conselho Tutelar e da Polícia Civil fez o delicado trabalho de ouvir as jovens e acompanhar todo o doloroso processo de reconhecer os danos.

“As meninas iam para os depoimentos vomitando, chorando, voltavam no meio do caminho”, lembra a conselheira. “Essa é a pior parte, até terem coragem”. Depois vieram as ameaças de morte para as adolescentes e para a equipe. E, por fim, a sensação de abandono, porque muitas das que sobrevivem à exploração e ao abuso sexual estão grávidas, são mães solteiras ou não conseguiram refazer suas vidas.

Após as prisões, aumentou o número de denúncias de outras histórias de violência contra crianças e adolescentes. “Mas a maioria das queixas que recebemos é de abusadores no meio da própria família, em que a mãe é conivente ou aliciadora”, diz Achilles. Mesmo sabendo que os criminosos da megaoperação deflagrada em 2007 eram integrantes da “alta sociedade”, ainda assim o preconceito e a conivência da sociedade em geral condena as vítimas ao sofrimento e a se manterem na exploração. “Quando se vê uma adolescente se prostituindo, é geralmente uma menina de baixa renda, que não tem as roupas da moda – tanto que os presentes que recebe são balinhas, roupas…ela já foi negligenciada na família. É duro condená-la e dizer que ela gosta”, observa Achilles.

Histórias de carochinha sem final feliz

Vários estudos tentam explicar as razões da atração sexual de pessoas mais velhas por crianças e adolescentes. A psicóloga Tania Guerra, que é professora de Psicologia Jurídica, lembra que muitos adultos pedófilos apresentam padrões de comportamento em comum. Podem ter sofrido assédio quando crianças – nestes casos é comum manifestarem desejo por jovens do mesmo sexo e da mesma faixa etária em que se encontravam quando foram abusados na infância. Outros são indivíduos infantilizados, imaturos, com tendência ao isolamento, ao mesmo tempo em que adotam a internet como fonte de trocas de fotos e informações sobre o tema.

“Os mais velhos, às vezes encontram na oportunidade de sexo com crianças e adolescentes a possibilidade de realizar suas fantasias da fase da senectude tendo como vantagem a passividade com que eles se abandonam às suas manipulações, seja por presentes ou dinheiro”, explica a psicóloga. “Crianças e adolescentes não se constituem em parceiros experientes julgadores da sua performance sexual e raramente denunciam o abuso, o que os incentiva à prática desviante”, acrescenta.

A pedofilia, em si, não é uma categorização criminal, mas de saúde. Alguém pode ser pedófilo e nunca cometer um crime. Violência sexual, abuso, estupro, pornografia infantil, sim, são crimes e devem ser punidos.

Sinais de alerta
Indicadores físicos:
– Roupas rasgadas ou com manchas de sangue
– Marcas no corpo
– Secreção vaginal ou peniana
– Dificuldade para caminhar, sentar
– Gravidez precoce
– Infecção urinária, dificuldade de urinar
– Queixas de dores abdominais
– Hematomas, edemas e escoriações na região genital e mamária
– Infecções/doenças sexualmente transmissíveis

Indicadores comportamentais
– Mudança brusca de comportamento e humor (não querer comer, comer demais, agressividade)
– Sono perturbado, pesadelos frequentes, suores, agitação noturna
– Timidez em excesso
– Tristeza ou choro sem razão aparente
– Medo de ficar sozinho (a) com alguém ou em algum lugar
– Baixa auto-estima, estado de alerta constante, falta de concentração, inquietação
– Interesse precoce por brincadeiras sexuais e/ou erotizadas
– Conduta sedutora
– Relatos de agressões sexuais
– Dificuldade em adaptar-se à escola
– Aversão ao contato físico
– Comportamento incompatível com a idade (regressões)
– Envolvimento com drogas
– Autoflagelação, culpabilização
– Fuga de casa
– Depressão crônica
– Tentativa de suicídio

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