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Descobrindo o lado avesso

Por Roberto Villar Belmonte / Publicado em 7 de setembro de 2012
Thomas Kesselring, Filósofo | Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Thomas Kesselring, Filósofo

Foto: Igor Sperotto

Brasil melhorou muito nos últimos 25 anos, do ponto de vista econômico, mas ainda tem muito por fazer no campo da educação, afirma, em bom português, o filósofo suíço Thomas Kesselring. Admirado e citado pelo filósofo alemão Jurgen Habermas, o professor de Ética na Escola Superior de Pedagogia de Berna, considerado um dos grandes conhecedores da obra de Jean Piaget, viveu três anos em Porto Alegre (RS), entre 1987 e 1989, quando foi professor-visitante do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Admirador do trabalho de José Lutzenberger, Kesselring participou no dia 9 de agosto de um encontro com os sócios da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e no dia seguinte ministrou palestra sobre direitos humanos na Faculdade de Direito da Ufrgs. Entre um compromisso e outro, recebeu a reportagem do jornal Extra Classe.

Extra Classe − A primeira vez que o senhor esteve no Brasil foi há 25 anos. Que mudanças percebe no país?
Thomas Kesselring Naquela época havia uma inflação astronômica. Uma exploração visível dos pobres. O Brasil tinha também uma dívida externa astronômica. Foi terceiro mundo. Hoje é primeiro mundo. Mais do que isso. A situação econômica do Brasil é bem melhor do que a situação da Europa e dos Estados Unidos. O real é uma moeda mais forte, já faz tempo. Nunca teria pensado que isso poderia ocorrer. O país conseguiu tirar 40 milhões de pessoas da miséria. São milagres. Claro que isso se deve em parte à venda de recursos naturais e ao fato de que finalmente os preços das commodities voltaram a subir. O que ainda falta é melhorar as escolas.

EC − O que é preciso melhorar na educação?
Kesselring
 − É preciso formar melhor os professores, remunerar melhor para que eles possam ensinar em apenas uma escola, e não em duas ou três para sobreviver. Isso é um crime. O professornos precisa de tempo para estudar, para aprofundar sua formação. Eu diria que todo ano ele deveria ser liberado um ou dois meses e obrigado a estudar, renovar seu conhecimento, melhorar seus métodos. O número de alunos em sala de aula também precisa ser reduzido. O ideal é entre 20 a 25 alunos por sala. É assim na Suíça. Na Alemanha chega a 30. Na África são 80. O aluno precisa de atenção. Precisa perceber que é levado a sério pelo professor. O aluno não é um objeto, é uma pessoa. Crianças que nunca são tratadas como pessoas, comportam- -se como se fossem coisas, com baixa autoestima. Quem sofre violência verbal, usa violência verbal. Os jovens seguem os exemplos dos adultos.

EC − E a Filosofia, de que modo deve ser ensinada?
Kesselring −
 De uma maneira que interesse o aluno, senão é contraprodutivo. Ela pode ser muito útil. De vez em quando o adulto deve dialogar seriamente com a criança. E ela precisa perceber que suas opiniões são valorizadas. O adulto aprende com ela. Há uma aprendizagem mútua. Na escola tradicional, o aluno não sabe nada e o professor sabe tudo.

EC − O reconhecimento do outro é fundamental na educação?
Kesselring −
 É essencial para motivar os alunos. O aluno que se sente tratado como objeto não vai ser motivado.

EC – Falando em motivação, o que destacaria na obra de Jean Piaget, tema de um dos seus livros?
Kesselring
 − Ele salientou que o conhecimento humano tem muito a ver com a atividade. A criança precisa ser ativa. Também a atenção, concentrar-se em uma conversa, é um tipo de atividade. Sem atividade nunca vai ter conhecimento. Antes da ação eu tomo uma decisão. Eu me sinto livre de fazer ou não fazer isso. Eu sempre tomo decisões. É uma atividade espontânea da criança. A criança precisa sentir que ela tem valor. É preciso interação entre adulto e criança na aprendizagem. Outra grande contribuição de Piaget é sua análise da chamada descentração. Um processo pelo qual nos liberamos pouco a pouco do nosso egocentrismo. Egocentrismo quer dizer que reduzimos o mundo ao que percebemos a partir da nossa perspectiva. Cada objeto tem um lado avesso que eu não vejo. Eu tenho que me virar para descobrir o lado avesso.

EC − O ponto de vista cria o objeto?
Kesselring −
 Sim, mas também eu tenho que trocar o ponto de vista para compreender o senhor, por exemplo. Para compreender outras pessoas. Para descobrir que elas têm outras intenções, às vezes, diferentes das minhas. Que têm outros interesses. Que vivem as mesmas situações com outros sentimentos. Se eu me coloco na pele do outro, eu aprendo. É preciso superar as próprias perspectivas considerando inclusive as de outras culturas. Piaget é o único autor que aprofundou esse tipo de processo. Sempre salientou que boa parte da aprendizagem se dá via essa superação do egocentrismo, do etnocentrismo. Na vida social é impossível superar completamente nossas perspectivas, mas quanto mais outras perspectivas nós conhecemos, tanto mais somos descentrados e diminuímos o risco de ficarmos presos em pré-conceitos. O pré-conceito é o sinal do egocentrismo, sempre.

EC − Sem atividade, não há conhecimento na sala de aula. E na educação ambiental?
Kesselring −
 Os brasileiros têm que levar as crianças na mata. Nas cachoeiras. Mostrar as plantas, os bichos. Ensinar a observar até mesmo os bichos pequenos, como as formigas, nos quais Descobrindo o lado avesso ‘‘ Se eu me coloco na pele do outro, eu aprendo. É preciso superar as próprias perspectivas considerando inclusive as de outras culturas ’’ ‘‘O aluno precisa de atenção. Precisa perceber que é levado a sério pelo professor’’ geralmente se põe veneno sem o menor interesse de compreender o que estão fazendo. Se a criança não conhece, não vai se admirar de nada. É preciso conhecer. Logo a criança vai estabelecer relacionamento emocional com a biodiversidade. A escola deve levar as crianças para fora, seguidas vezes. É um grande desafio, mas é preciso fazer um esforço nessa direção para salvar a biodiversidade brasileira. Toda experiência humana passa pelos sentidos.

‘‘Se eu me coloco na pele do outro, eu aprendo. É preciso superar as próprias perspectivas considerando inclusive as de outras
culturas ’’

EC – O senhor acredita na possibilidade de um desenvolvimento sustentável?
Kesselring 
– Logicamente, é possível.

EC – Com crescimento?
Kesselring –
 – Crescimento de quê? De ideias, de fantasias? Isso sim. Tem muitas coisas que tem valor e quase não precisam de material. Músicas. Claro que precisa de instrumentos, mas podem ser feitos de forma sustentável. Fazer teatro. Trocar ideias. Boa parte do mercado poderia ser baseada em bens imateriais.

EC – Do ponto de vista da ética, o que é preciso mudar para enfrentar os problemas ambientais?
Kesselring –
 Em primeiro lugar precisamos nos dar conta da situação como ela é, e não reprimir. Muitas pessoas não se interessam, não se importam. Agora tivemos a Olimpíada. Depois teremos a Copa do Mundo de futebol. Se não tivermos isso, tem outras competições de futebol no Brasil e na Europa. Sempre tem jogos, como em Roma, onde se falava em pão e circo. A educação não é mais valorizada. Os professores das universidades fazem greve para melhorar o salário deles, mas não para melhorar as escolas. Não sei como as coisas vão mudar. Cada um pensa em si, não se importa pelo conjunto. Isso seria urgente, se dar conta da situação e se importar, tomar iniciativas. No ano passado com o Occupy Wall Street eu tinha muita esperança, mas o policial tomou conta. A violência resolve tudo. Mas a violência não é ética. Pelo contrário. Se não fazemos nada, a violência vai aumentar.

Thomas Kesselring | Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

EC – Qual o papel dos meios de comunicação nisso tudo?
Kesselring
 – Eles têm o papel de regular a opinião pública, que depende muito do que a televisão diz. Acho muito importante que as mídias melhorem as informações. Também se tornem educativas, mas de uma forma séria. Ajudem as pessoas a tomarem conta da situação. Eu acho um lixo a programação da Rede Globo. Alguns programas são bons, mas para encontrar um é preciso aturar outros 40 que são lixo. As pessoas não têm esse hábito de só escolher as melhores coisas. Isso tem que ser aprendido ou oferecido coisas melhores. Eu acharia melhor só colocar no ar bons programas. O resto do dia a televisão poderia ficar fora do ar. Poderíamos economizar muitos aparelhos de televisão. Acho um absurdo o rumo no qual nos andamos, dependentes de lixo.

EC – Qual é o grande desafio mundial atualmente?
Kesselring –
 São muitas coisas. O aquecimento do clima, por exemplo, é o maior desafio no longo prazo. No curto prazo temos as dificuldades na economia mundial, nos mercados financeiros que nunca deram certo e agora estão perto de explodir. Eu não acredito que a união europeia vai continuar por mais muito tempo, pois a Grécia é um caso muito parecido ao Lehman Brothers em 2008 nos Estados Unidos. A crise da Grécia é uma crise dupla, de um país, de uma população, mas também dos bancos europeus. Uma das causas da crise foi que os estados salvaram muitos bancos. E agora as dívidas dos estados estão astronômicas. Os bancos investiram papéis dos estados que perderam valor agora. Isso é um círculo vicioso. Eu não sei qual vai ser a solução. Esse é o problema mais urgente no curto prazo.

EC – E no longo prazo é o aquecimento global?
Kesselring –
 Sim, mas ele tem que ser combatido imediatamente. Nós não temos mais tempo a perder. É preciso diminuir as taxas de emissões de gás carbônico.

‘‘ Cada um pensa em si, não se importa pelo conjunto. Isso seria urgente, se dar conta da situação e se importar, tomar iniciativas ’’

EC – Geralmente reagimos depois de tragédias.
Kesselring –
Muitos esqueceram que em 2005 New Orleans estava inundada. O que aprenderam os Estados Unidos depois disso? Não sei se catástrofes são ocasiões para aprendizagem. Alguns vão aprender, mas outros não. E nós temos já estas catástrofes. Há dois anos, 2/5 da superfície do Paquistão foram inundados. Talvez as pessoas não lembrem mais. O país perdeu toda colheita. É uma catástrofe ou não? Simultaneamente na Rússia queimadas resultaram em perdas agrícolas também. É uma catástrofe ou não? Na Austrália, na parte oriental houve grandes enchentes, depois grandes queimadas, depois voltaram as enchentes. Acho que isso nunca ocorreu antes. É uma catástrofe ou não? Não sei qual foi a aprendizagem disso tudo.

EC – Essa não reação pode ser atribuída em parte ao conceito que se tem hoje de natureza, ou como dizem os ecologistas, à separação entre sujeito e objeto do pensamento cartesiano?
Kesselring –
 Com certeza tem um impacto, mas não é a única causa. O maior impacto do pensamento cartesiano foi no modo como tratamos os animais. Na visão de Descartes, animais são máquinas complexas, que não têm sentimentos. A crueldade com os animais se deve em parte a isso. A queima de combustíveis fósseis não tem nada a ver com Descartes.

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