GERAL

Mortes anunciadas

Em 82,5% dos assassinatos de mulheres, a ameaça e a lesão corporal prévias estão presentes. Até setembro, 77 mulheres foram mortas no RS, superando todo o ano de 2011, que chegou a 46
Por Stela Pastore / Publicado em 5 de outubro de 2012
Mostra de Arte Retratos da Violência: trabalho produzido a partir de fotografias da polícia dos locais de crimes, vítimas e objetos apreendidos | Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Mostra de Arte Retratos da Violência: trabalho produzido a partir de fotografias da polícia dos locais de crimes, vítimas e objetos apreendidos

Foto: Igor Sperotto

A enfermeira Márcia Calixto Carnetti, de 39 anos, foi assassinada junto com o filho de cinco anos em casa, na zona Sul de Porto Alegre, em 26 de julho. Ela havia relatado ao pai que sofria ameaças do marido, Ênio Carnetti, 46 anos, apontado pela polícia como o principal suspeito. “Ela falou que ele a ameaçava e a seguia na vida privada e profissional, desconfiado e ciumento”, disse o pai João Calixto, de 70 anos. “Apesar de conviver com ele por 16 anos, mostrou-se muito ingênua em relação à violência. Ele ameaçou e consumou”, afirma o pai. O suspeito deixou um bilhete: “Ela sabia que se colocasse guampa, acabaria em tragédia”.

Esta morte anunciada se repete na maioria dos assassinatos de mulheres. Primeiro, a ameaça. Depois, a execução. Um estudo inédito da Secretaria de Segurança do RS a partir dos registros policiais enquadrados na Lei Maria da Penha mostra que das mortes de 327 mulheres entre agosto de 2006 e agosto de 2011 grande parte das assassinadas já havia sido agredida e registrado ocorrência. A ameaça e a lesão corporal, juntas, estão presentes em 82,5% e antecedem os assassinatos.

Metade das mulheres (49,6%) foi assassinada até três meses depois de comunicar o fato; no período de até um ano, chega a 76%. Dentro do primeiro mês, chega a 33%, e 6,7% das mulheres foram mortas no mesmo dia do último registro. Mesmo passados dois anos do último registro de agressão da vítima com o mesmo autor ocorreu o feminicídio.

O estudo conclui que, se houver atenção por parte das vítimas e do poder público, essas tragédias podem ser evitadas. O termo feminicídio é uma denominação dos assassinatos enquadrados na Maria da Penha, utilizado para identificar as mortes com recorte de gênero. Ou seja, são mortas porque são do sexo feminino. Esse diagnóstico é uma iniciativa pioneira para contribuir com ações que combatam a violência e melhorem as medidas existentes”, registra o secretário de Segurança, Airton Michels.

Quem ameaça, mata!

Há um dado ainda mais alarmante: mais de 60% das vítimas de agressões e ameaças não registram ocorrência. “Para cada dez, só quatro informam a polícia e apenas duas pedem proteção”, estima a coordenadora das delegacias da Mulher do RS, delegada Nadine Anflor. “Muitas não acreditam que serão assassinadas. Morrem antes de se dar conta que isso pode ocorrer. Só encontramos esta mulher que corria risco quando ela entra no índice de homicídio”, lamenta a delegada.

A enfermeira Márcia Calixto estava entre as que foram ameaçadas, não registraram e perderam a vida. Ela integra a triste estatística registrada de janeiro a setembro: 77 mulheres foram assassinadas no RS, superando o total de todo o ano de 2011, que foi de 46. A delegada demonstra grande preocupação com as mulheres que sofrem violência e não procuram os serviços para denunciar e se proteger. “O registro da ocorrência pode significar a diferença entre a vida e a morte “. Mas há ainda outro agravante: cerca de 80% das que registram ocorrência, retiram a queixa antes do julgamento. “Em geral, por acreditarem na retomada da relação”, cogita Nadine, que há cinco anos coordena a Delegacia da Mulher em Porto Alegre.

Para a secretária de Políticas Para as Mulheres (SPM) do RS, Márcia Santana, as mulheres sempre investem mais nos afetos do que os homens. “É difícil para elas acreditarem que a pessoa que ela se relacionou vai matá-la. Nosso alerta é que quem ameaça mata, e elas precisam se proteger”, reforça. Sobre a retirada das queixas, Márcia Santana entende que é neste período do processo que se deve acompanhar mais a mulher. “Um dos nossos desafios é monitorar os casos de violência, fazer busca ativa e empoderar a mulher para chegar forte no julgamento”, observa.

Os companheiros e cônjuges continuam sendo os principais agressores, responsáveis por 70% das denúncias neste ano no Brasil, que alcançaram 388 mil no primeiro semestre, de acordo com o balanço do Disque 180. Se forem considerados outros tipos de relacionamento afetivo (ex-marido, ex-namorado e ex-companheiro), o percentual sobe para 89%.

Mais de 37 mil inquéritos estão parados

Esse aumento de registros desafia as estruturas do Estado a serem mais ágeis. A representante da Marcha Mundial de Mulheres (MMM), Cláudia Prates, alerta para as pilhas de processos aguardando apuração e julgamento. “Precisamos tirar os 17 mil inquéritos que estão parados na Delegacia da Mulher e outros 20 mil da mesa do Judiciário. Propomos que haja um mutirão para zerar processos de violência doméstica. Ou não chegaremos a tempo para salvar algumas vidas”.

No último dia 2 de setembro, a SPM e a Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social promoveram uma caminhada pelo Basta de Violência Contra a Mulher, em Porto Alegre, ocasião em que foi distribuída uma carta de recomendação solicitando agilidade e ações do Judiciário, do governo estadual, dos meios de comunicação, dos municípios e a todos os candidatos para que tenham compromisso com a causa.

Um dia antes, outra manifestação na capital protestava contra a mídia machista. “A indústria cultural é a representação de um padrão machista e retroalimenta a sociedade destas posturas”, registra a jornalista Télia Negrão, coordenadora da ONG Coletivo Feminino Plural e da Campanha Ponto Final, no Brasil. “Os meios de comunicação de massa não assumem o compromisso com a transformação, como deveriam. Basta ver o que são as novelas”, observa a desembargadora e ativista pela igualdade de gênero e à diversidade sexual, Maria Berenice Dias.

Outra manifestação promovida por várias organizações feministas no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre, no dia 7 de agosto, marcando os seis anos da Lei Maria da Penha, mostrou a indignação com a gravidade do tema. Colegas, amigos e familiares da enfermeira Márcia Calixto estavam presentes vestindo camisetas com fotos de mãe e filho, pedindo justiça e condenação ao agressor. O acusado está no Instituto Psiquiátrico Forense. “Tudo leva a crer que ele ficará impune”, diz uma tia da vítima.

“Se a mulher mata é bandida e vai para o presídio. O homem que mata é o coitadinho e alega insanidade. Basta de mulheres mortas”, diz Rose Castilhos, da Rede Feminista de Saúde. “Chega de dizer que a culpa é das mulheres. A culpa é da sociedade patriarcal. Avançaremos pouco sem mudança cultural”, discursou.

Apesar de muita impunidade, a lei mostra seus resultados. Na mesma semana do sexto aniversário da Maria da Penha, um agressor foi condenado a 15 anos de prisão por assassinar a mulher Patrícia Esber, em Canoas, em 2009, enquanto ela dormia. “É preciso avançar para que nenhuma mulher perca a vida, porque alguém se considera dono do seu destino”, disse a socióloga e ativista histórica do movimento feminista, Lícia Peres.

“Mulheres como a Maria da Penha tiveram coragem de denunciar. Sua luta é reconhecida e mostra que vale a pena. Queremos que o agressor da Márcia, assim como todos os outros fiquem presos e paguem pelos seus crimes. Nós estamos no movimento para isso” disse a secretária-adjunta da SPM, Catherine Topper.

Programa inédito no país inicia em Porto Alegre

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Em setembro passaram a funcionar as Patrulhas Maria da Penha: são guarnições da Brigada Militar especialmente treinadas ao atendimento das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. O efetivo está qualificado para o cumprimento das medidas protetivas. O programa é inédito no país e inicia pelos bairros de Porto Alegre abrangidos pelo programa Territórios da Paz.

“Antes a mulher ia na delegacia, pedia proteção, o Judiciário deferia, e ninguém fiscalizava se o agressor andava por perto. Será o olho do Estado na casa daquela mulher”, descreve a delegada Nadine Anflor. “Tenho esperança que pelos menos aquelas que pedirem proteção não sejam mortas. É preciso que registrem, porque os dados permitem que a gente conheça a realidade para avançar”, sinaliza. Criado em 2005 pelo governo federal, o Disque 180 é uma Central que esclarece às vítimas sobre seus direitos, onde e como obter ajuda. Foram 2,7 milhões de atendimentos de 2006 a 2012. O serviço nacional é gratuito e porta de entrada na rede de atendimento para as mulheres.

Outra novidade é que os agressores terão de pagar os gastos públicos gerados pela violência. O INSS cobrará o ressarcimento de gastos da União com auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e pensão por morte para os dependentes nos casos de violência doméstica. Essa medida iniciou por Brasília, em agosto, e será estendida aos estados.

O acolhimento também faz a diferença. Uma equipe multidisciplinar realiza uma espécie de triagem analisando se a demanda é psicológica, assistencial ou jurídica. “Precisamos entender o problema daquela comunidade. A solução construída entre as partes facilita a compreensão, é mais efetiva e duradoura”, completa.

A maior parte das demandas é de ações relacionadas à família como pensão alimentícia, investigação de paternidade, separações e divórcios. Moradora do bairro Grande Mathias, M. Soares tinha um problema de família há quase um ano. Procurou o auxílio e assegura que o serviço prestado pela Defensoria Pública é fundamental. “Temos uma acesso mais rápido a este recurso”, opina.

Sociedade machista e velhos conceitos

São alguns exemplos de avanços nas políticas públicas. Porém, as ações serão insuficientes se mantida a cultura machista e patriarcal. “Passamos a ter leis positivas, mas os padrões precisam mudar. É um trabalho cotidiano de toda a sociedade”, registra a jornalista Télia Negrão. “É preciso transformar a estrutura da sociedade que segrega a mulher ao espaço da casa e o homem ao espaço público. Precisamos discutir a divisão sexual do trabalho doméstico e termos papéis iguais. Assim a violência não se consolida na mão de um que acha que tem poder sobre o outro” diz Cláudia Prates, da MMM.

Quadruplicaram denúncias por telefone no estado

Desde a adesão do governo do RS ao Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do Governo Federal, em 2011, o acolhimento no Centro de Referência da Mulher (CRM), através do Escuta Lilás 0800 5410803, quadriplicou e realizou mais de 2 mil atendimentos.

Para Márcia Santana, esse aumento dos registros é um avanço. “As mulheres percebem que há serviços públicos para acolhê-las. A divulgação da Rede Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres tem levado as gaúchas a se sentirem mais seguras para procurar ajuda”, afirma. Desde 2011, a secretaria capacitou mais de 5 mil agentes multiplicadores para o combate à violência doméstica.

Um agressor é preso por dia em Porto Alegre por violência doméstica contra a mulher, em flagrante ou de forma preventiva. “Nunca tivemos isso antes da Maria da Penha. Mas ele fica dois, três meses preso e a mulher vai lá e desiste da continuidade antes da condenação”, destaca Nadine Anflor.

FEMINICÍDIOS – Durante o mês de setembro, no tempo decorrido entre o final da apuração e a edição desta reportagem, sete mulheres foram assassinadas por seus companheiros (crime de feminicídio) no estado. De janeiro a setembro deste ano, ocorreram 77 homicídios, desencadeados por violência doméstica.

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