GERAL

A satanização do descanso e a santificação do trabalho

No Gênesis, da Bíblia judaico-cristã, o trabalho é imposto como uma pena eterna a Adão e Eva. A preguiça, por sua vez, foi transformada pela Igreja católica em pecado capital
Por Marcia Camarano / Publicado em 28 de outubro de 2013
Arte de Frans Francken

Arte de Frans Francken

Arte sobre tela Eternal Dilemma Eternal Dilemma – The Choice Between Virtue and Vice, 1633 de Frans Francken II

Arte de Frans Francken

Na introdução do seu texto, o cubano Lafargue argumenta que trabalhar, muitas vezes além das forças humanas, é resultado do dogma religioso, que impinge que o homem veio ao mundo para sofrer e “não à filosofia, contrária, que diz ao homem: goza”. Para ele, a moral capitalista é uma lamentável paródia da moral cristã, que condena os homens à redução do mínimo de suas necessidades, suprimir suas alegrias e as suas paixões e condená-lo ao papel de máquina, entregando trabalho sem dó nem piedade. É a religião do trabalho.

É também a religião, diz, quem dá todo o amparo para que o capital explore economicamente o trabalho de homens, mulheres e crianças. É a moral cristã que prega “quanto mais os meus povos trabalharem, menos vícios existirão”. Irônico, ele lembra que Cristo pregou a preguiça no sermão da montanha, citando a seguinte passagem: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda sua glória, não se vestiu com maior brilho” (Evangelho segundo São Matheus, cap. VI).

Mais irônico foi ao recordar que “Jeová, o deus barbudo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal: depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade”. Mas, como lembra o filósofo marxista Leandro Konder, o problema é que quando os pobres tratam de imitar Jeová, a polícia os rotula como vagabundos e os põe na cadeia.

Diz Lafargue: “Tal como Cristo, a triste personificação da escravatura antiga, os homens, as mulheres, as crianças do proletariado sobem penosamente, há um século, o duro calvário da dor: desde há um século que o trabalho forçado quebra os seus ossos, magoa as suas carnes, dá cabo dos seus nervos; desde há um século que a fome torce as suas entranhas e alucina os seus cérebros…” E, aí, é ele quem reza: “Ó, preguiça, tem piedade de nossa longa miséria! Ó, preguiça, mãe das artes e das nobres virtudes, sê o bálsamo das angústias humanas!”

No livro do Gênesis, da Bíblia judaico-cristã, o trabalho é imposto por Deus como uma pena eterna a Adão e Eva. Já a preguiça, por sua vez, foi transformada pela Igreja católica em um pecado capital, qual seja: condenável.

Lafargue não estava sozinho em sua tese. Trouxe para seu apoio a vida dos gregos antigos, que tinham desprezo pelo trabalho. “Só aos escravos era permitido trabalhar. O homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos de inteligência. Poetas cantavam a preguiça, esse presente dos deuses”.

ÓCIO – Em meados dos anos 1990, início de 2000, os livros do sociólogo italiano Domenico De Masi passaram a ser leitura obrigatória entre os sindicalistas brasileiros. Os mais conhecidos sãoDesenvolvimento sem trabalho e Ócio criativo.

O italiano enxerga o trabalho como uma escravidão e aponta que a saída para a humanidade é monopolizar a imaginação e a criatividade, qualidades que os robôs não possuem. Tal qual a moral cristã, que faz o sujeito se sentir culpado se não estiver trabalhando, De Masi acredita que as pessoas gostariam de trabalhar menos. Porém, quando conseguem isso, entram em depressão pela simples vontade de ser útil e não se tornar ocioso.

Ele assegura que assim que a humanidade deixar de correr atrás do dinheiro, como único objetivo de vida e identidade de cidadania, talvez, no futuro, possa dispor do tempo ocioso da melhor maneira.

“Todas as misérias morais e individuais vieram de sua paixão pelo trabalho” – Paul Lafargue

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