GERAL

Sem democratização da comunicação não há democracia

Por César Fraga e Valéria Ochôa / Publicado em 1 de março de 2014

Jornalista, especialista em Sociologia, professor, cartunista, Celso Augusto Schröder é um dos ativistas expoentes, ao lado do jornalista Daniel Herz (1954-2006), da luta pela democratização da comunicação social no Brasil, que teve na Constituinte, na década de 1980, um dos seus primeiros embates e que, apesar das derrotas, conseguiu constituir o Conselho de Comunicação do Congresso Nacional. Schröder foi titular desse Conselho de 2004 a 2006, reassumindo em 2012 como conselheiro representante da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a qual preside. Também é presidente da Federação de Jornalistas da América Latina e Caribe (Fepalc) desde 2009 e vice-presidente da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ). No Rio Grande do Sul integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, do governo estadual. Schröder representou a Fenaj na Conferência Nacional de Comunicação, realizada no governo Lula, que promoveu um grande debate sobre a Comunicação no país e aprovou 672 propostas para subsidiar o governo. Passados quatro anos da ConfeCom, nada foi feito. E mais, houve um racha no movimento. A Fenaj abandonou a coordenação do Fórum Nacional de Comunicação. Nesta entrevista, ele lembra das dificuldades da luta, do poder da mídia no Brasil, do cenário político e das novas frentes.

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Extra Classe – Pode-se dizer que a Democratização da Comunicação no Brasil chegou efetivamente à agenda pública?
Celso Augusto Schröder – Finalmente. Não foi fácil trazer esta luta para a agenda pública e aqui faço uma referência ao jornalista Daniel Herz, que iniciou este debate na década de 1980 e organizou um grupo para fazer a disputa na Constituinte. A Constituição avançou em tudo, menos da área da Comunicação. Os artigos barram a tentativa de trazer o conceito de dimensão pública, de que a comunicação social é um bem público e, portanto, permeada pelo controle público. A única vitória que tivemos foi a criação do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, que ainda está em disputa. Nós bancávamos um Conselho Deliberativo. Perdemos isso. O Conselho é consultivo. Mas a grande novidade é que o Congresso reconheceu a necessidade de um espaço nacional pra discutir a comunicação social. O impasse é que há mais de 200 projetos de lei para serem discutidos.

EC – Qual é afinal o poder da mídia?
Schröder – Nos demos conta que estávamos enfrentando o poder do país e que não era pouca coisa. Na época da Constituinte éramos um grupo de jornalistas, artistas, enfim, partidários que trabalhavam com a comunicação. A mídia não é mais como antigamente, um “poder auxiliar” da elite. Ela é a elite brasileira. Está representada por deputados, inclusive proprietários e de afiliados da Rede Globo, por uma sintonia muito grande com os setores conservadores. Não é à toa que a presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito, diretora-superintendente do Grupo Folha, disse que os jornais brasileiros se propunham a fazer política porque a oposição não faz política. É verdade. Neste momento, os partidos de oposição não conseguem produzir política eficiente e a mídia atribuiu a si, e de uma forma completamente espúria, este papel. Mais do que ampliar-se em relação à década de 1980, o papel partidário da Globo e dos demais grupos sofisticou-se e entrou em vários outros espaços da política em que não estavam, como, por exemplo, o Judiciário.

EC – A mídia faz oposição a quem?
Schröder – As políticas não só de governo, mas as políticas populares, de mudanças, que estão em andamento, têm dois locais de resistência: o Judiciário, principalmente nas instâncias superiores, e a mídia brasileira, principalmente nos grandes conglomerados.

EC – A democratização da comunicação efetivamente passa pelo quê?
Schröder – Não haverá democracia se não houver democratização da comunicação. Portanto, esta luta é estratégica, anterior às lutas econômicas, clássicas. O poder político da mídia foi deslocado para um setor novo: de auxiliar passou a protagonista e determinante. Se nós lembrarmos que dois presidentes imediatos à ditadura militar têm origem nos quadros das afiliadas da Rede Globo – ou seja, o Sarney e o Collor de Mello – empresários da comunicação – no Maranhão e em Alagoas, respectivamente, e os presidentes do Congresso, Jader Barbalho e ACM são também daRede Globo… Não é à toa que o Congresso tem mais de 200 projetos de lei engavetados lá.

EC – E o Conselho de Comunicação doCongresso diante disso?
Schröder – Esta é a grande novidade. Neste momento, nós estamos propondo no Congresso Nacional, através do Conselho, que o artigo 220 da Constituição seja regulamentado. Este artigo trata da propriedade cruzada, do conceito de monopólio e oligopólio. Se tu perguntares nos Estados Unidos o que é monopólio, a resposta é: não pode ter uma rádio, uma TV, um jornal no mesmo espaço geográfico. Isso define o monopólio. No Brasil não temos esta definição.

EC – Como a esquerda concebe o papel da comunicação?
Schröder – A esquerda ainda não elegeu a democratização da comunicação como estratégia. Atribui à comunicação uma dimensão tática, e por isso está sempre atrás das demandas e chegando atrasada. A última chutada fora do tempo da bola foi o PT reivindicar o marco regulatório dois anos depois que nós tínhamos feito uma conferência nacional, onde tínhamos deliberado pelo marco regulatório, quando o governo tinha toda a legitimidade para fazer, e não o fez. E o PT ignorou a conferência e suas deliberações. É óbvio que a imprensa pega e gruda o marco regulatório ao PT e passa a ser o marco regulatório do PT. E todo o nosso esforço de universalizar o debate, de incorporar inclusive as contradições da própria mídia, fica à margem.

EC – Como a discussão chega ao bloco da mídia?
Schröder – Além da nossa presença maior, de uma vontade política que reconhece que tem um déficit democrático na área da Comunicação, também aparecem as contradições internas desse bloco da mídia, que era monolítico, controlado de forma quase inquestionável pela Rede Globo. A partir de um certo momento, pelo crescimento ou pelas disputas internas do grupo, por exemplo, com a Bandeirantes, SBT, Record, os interesses já não são tão os mesmos. E é claro, por exemplo, a Bandeirantes precisa de uma reorganização do ponto de vista das redes nacionais para poder crescer.

EC – Como se dá isso?
Schröder – Uma regra determinante nos Estados Unidos, por exemplo, é que não se pode obter mais de 30% de audiência nacional, porque é preciso evitar a voz única nacional, garantir a regionalidade e, portanto, é antidemocrático ter audiência nesses níveis. No Brasil, se isso for aplicado, abre um espaço muito grande para as novas redes. Do ponto de vista econômico e de gestão, essas novas redes precisam reorganizar esse marco regulatório. Não é possível que seja essa terra de ninguém, onde vale tudo porque isso acaba com a ideia das representações culturais regionais.

Foto: Igor Sperotto

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Foto: Igor Sperotto

“Neste momento, os partidos de oposição não conseguem produzir política eficiente e a mídia atribuiu a si, e de uma forma completamente espúria, este papel”

EC – A Rede Globo chegou a ter mais de 90% de audiência, mas esta realidade está mudando…
Schröder – A audiência da Globo está caindo muito, mas isso não é exatamente bom, nem espontaneamente bom, porque ela não está baixando a partir de uma política pública que está reorganizando o sistema, mas está perdendo para um espaço de produção de conteúdo também degradado. Portanto, um tipo de cenário que deveria ser pautado por política pública, como foi na Europa, como foi nos EUA nos anos 1940… No Brasil está acontecendo, mais uma vez, a partir dos embates econômicos dos agentes. E isso é degradante, porque a economia não produz o melhor conteúdo e nem o mais eficiente.

EC – E a comunicação digital?
Schröder – O embate interno dos comunicadores sociais, da área de radiodifusão especialmente, e a chegada deste novo ator econômico e tecnológico, as empresas de telefonia, estão produzindo uma possibilidade de reação. A tecnologia digitalizou-se e com isso ela possibilita que a telefonia entre no negócio, porque do ponto de vista técnico, não há mais diferença nenhuma entre voz, imagem e dados. Porém, telefonia é uma coisa, comunicação social é outra, e radiodifusão, outra. Na radiodifusão, eu estou falando para ene pessoas, e então eu tenho responsabilidade social, estou interferindo numa espaço queé público, precisa ser regulado. Na telefonia, eu estou falando para uma pessoa. Já a internet, tecnicamente e do ponto de vista legal, é um para um, mas é um para um na ene – então eventualmente ela assume a dimensão de radiodifusão. Tem que ser regulada.

EC – Devem ser regras diferentes?
Schröder – Não tem sentido passar o Jornal Nacional na TV Globo, que é submetido a uma série de regras, inclusive a de que os proprietários da Globo tem que ter 70% de capital nacional; mas quando o jornal for veiculado na TV a cabo, é considerado telefonia. Como assim? O Jornal Nacional é o mesmo. Esta regra é fruto de uma absoluta esquizofrenia de quando a TV digital foi escolhida no país. Na época, nós avisamos que esse era o pior modelo, pois é o que tem menos convergência. A Globo e o governo escolheram este porque dava chance de dez anos para a Rede Globo reorganizar seu modelo de negócio. E a Globo está sinalizando já há uns dez anos: deixará de ser uma rede de televisão, no sentido de transmissora de sinal. Ela será uma grande produtora de conteúdo, então, tanto faz se é a RBS sua filiada ou se é a Tim, a Claro, ou seja lá quem for, ela perpetua seu descompromisso de ator social e de produtor de cultura nacional.

EC – O que a Fenaj está propondo?
Schröder – Nós não estamos pleiteando que a Globo desapareça, mas sim que eles, assim como todo o sistema brasileiro de comunicação, seja submetido a princípios reguladores. Está no DNA da Globo a sua reação à regulação. Quando a empresa se somou conosco, e foi comigo falar com os ministros para fazer a ConfeCom, estava convencida de que o ambiente naquele momento não era bom para a radiodifusão brasileira. A entrada desses novos atores econômicos (as telefonias) ameaça mesmo a radiodifusão, pois quando foi escolhido o modelo japonês de TV Digital, foi para não regular, e não regularam. A transição não é como se fosse a passagem da TV preto e branco para a colorida. Alguns até faziam essa metáfora. Mas isso é uma ingenuidade, TV digital é outro serviço, não tem nada a ver com a televisão anterior. Exige uma nova regulação.

EC – Qual o entendimento dos empresários sobre isso?
Schröder – Perdemos um tempo precioso no qual poderíamos ter estabelecido uma parte do marco regulatório novo (da Comunicação) já ao transferir para a TV digital. Deixamos mais uma vez a disputa entre empresários. Os empresários não têm a menor ideia de qual é o novo modelo de negócio, e o Brasil abdicou, a partir de seu governo, de determinar qual é o modelo de serviço. Se o modelo de serviço fosse determinado, o de negócios estaria pautado.

EC – Em que ponto o marco civil da comunicação se encontra com o marco da internet?
Schröder – Uma das críticas que eu faço ao marco civil da internet é de que ele está sendo discutido como se não fizesse parte do marco civil da comunicação. Está se discutindo o marco civil da internet sob uma lógica ingênua. Primeiro, porque se imaginava que a internet era um lugar de liberdade, e não é. Essa ideia, me parece, está superada, pois não é nem livre do ponto de vista conceitual, nem técnico. Deve-se pensar o marco civil da internet articulado com um modelo de marco regulatório de comunicação que também está em disputa.

EC – Das propostas deliberadas pela Conferência, qual destacaria?
Schröder – Um Conselho de Comunicação no país – espaço independente e público. E poderia ser inclusive a comissão que viabilizou a Conferência (tripartite), e se isso tivesse ocorrido nós estaríamos com o marco regulatório aprovado agora, porque todos os atores estavam lá dentro. Mas o que ocorreu foi que o ministro, Franklin de Sousa Martins (ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República até 2010), elaborou um esboço de projeto, remeteu à presidência e lá está.

EC – O governo subestimou a Conferência e seus resultados?
Schröder – O governo, acho que por uma avaliação equivocada do cenário, atribui às empresas de comunicação social um poder que elas não têm mais e aspira uma aliança que é ingênua. Ou seja, a possibilidade de construir um apoio nas eleições. Eles desconhecem esse papel ontológico que as empresas de comunicação no Brasil assumiram de serem os partidos políticos efetivos no país. Eles vão cumprir esse papel. A Veja cumpre esse papel, a Folha de São Paulo vai assumir e a Globo já está cumprindo. Teremos, a partir de agora, um jornalismo  espetacularizado, com interesses privados, produtos culturais que não representam o país todo. Se pegar a RBS, no RS, ela é derrotada desde 1988. Ou seja, eles têm sido derrotados na política, mas têm sido vitoriosos do ponto de vista ideológico e cultural. A cultura brasileira está muito pautada por esses valores que não são humanos e civilizatórios, eles atendem a questões econômicas.

EC – Qual a principal divergência entre Fenaj e FNDC e qual é o nó que o movimento pela democratização da comunicação deve desatar para que essa luta tenha um ganho real?
Schröder – Coordenei o FNDC até bem pouco tempo. Basicamente houve o rompimento na última plenária há dois anos, quando houve eleição, e eu já tinha sinalizado que a Fenaj sairia da coordenação, e nos parecia que esta deveria ser assumida pelo Conselho Federal de Psicologia, fundadores do Fórum, e representam exatamente essa extrapolação da comunicação que nós desejávamos que o FNDC tivesse. A CUT já tinha manifestado o desejo de assumir a coordenação, mas nós achamos que era equivocado, porque era o mesmo que o PT assumir. Criava uma marca. Primeiro, porque reduzia. Mas o principal problema era que alinhava as políticas do FNDC às políticas de governo. E isso é um equívoco. A agenda dos movimentos sociais não é a agenda do governo, não pode ser. A proposta é de nós irmos para frente do Congresso Nacional ou do Palácio e exercer aquilo que nós decidimos na ConfeCom. Exigir que o ministério produza a lei, que mande para o Congresso o projeto de lei. É isso que tem que acontecer.

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

“Uma regra determinante nos Estados Unidos, por exemplo, é que não se pode obter mais de 30% de audiência nacional, porque é preciso evitar a voz única nacional, garantir a regionalidade e, portanto, é antidemocrático ter audiência nesses níveis”

EC – Ou seja, regular a Constituição não é suficiente?
Schröder – A comprovação de que estava equivocado esse olhar que o novo FNDC imprimia foi quando propôs a lei de emenda popular. Primeiro, porque ignorava todo o processo da ConfeCom, em que nós dizíamos que uma nova lei tinha que incidir principalmente sobre a convergência de ideias; depois, porque reproduz a fala do Franklin Martins de simplesmente regular a Constituição brasileira. E nós tínhamos dito que isso é insuficiente. A Constituição é ineficiente sob vários aspectos, mas o principal: ela não fala da convergência, porque não tinha convergência naquele tempo. Um marco regulatório que não conversar com a convergência, não serve para nada. O projeto está cheio de erros, porque foi feito por três pessoas. Esse debate foi feito num local que se chama Comissão pela Liberdade de Expressão, que a Fenaj não participa.

EC – Quais os erros que você identifica no projeto do Fórum?
Schröder – Nós não tivemos chance de debater. Um dos erros mais graves: ele desloca essa estrutura que nós queríamos que fosse dada por um conselho de comunicação nacional para o Ministério das Comunicações, como era na ditadura. E remete esse conselho a uma posição completamente secundária, como é na Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). A nossa crítica à EBC é que o seu Conselho de Comunicação é secundário, não está na estrutura de comando, como é na BBC (empresa pública de comunicação do Reino Unido), por exemplo. E mais, esse projeto ainda leva a fiscalização para duas agências: Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Agência Nacional do Cinema (Ancine), que são duas agências econômicas, reguladoras do ponto de vista das empresas e não podem ser agências reguladoras do Estado. A Fenaj não pode apoiar esse projeto, porque mesmo nesse conselho secundarizado não tem jornalistas nem trabalhadores de comunicação.

EC – Qual o próximo passo da Fenaj para buscar a aplicação das resoluções da ConfeCom?
Schröder – Quem representa a sociedade é o Estado brasileiro. O debate nacional já foi feito e subsidiou o Estado. Acho que estamos em um momento histórico, mas não tem sinalização nenhuma do governo de realizar. Em abril, vamos fazer o congresso dos jornalistas onde queremos reafirmar a Conferência. Também, articular forças dentro do FNDC para retomar a cobrança firme e inequívoca de um projeto de marco regulatório elaborado pelo Executivo brasileiro, iniciando pela regulamentação do sistema público. Na nossa visão, a partir de uma escuta completa da sociedade, a representação pública da sociedade, que é o Estado brasileiro, tem que fazer isso. Não tem sentido um projeto exclusivo da Fenaj.

 

 

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