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Neto 116: identidade recuperada

Por Gilson Camargo / Publicado em 12 de maio de 2015

No dia 24 de março de 2004, o sociólogo argentino Jorge Castro Rubel esteve na Escola de Mecânica da Armada (Esma) para participar de um ato público no qual seria anunciada a transformação do maior centro de tortura e extermínio da Argentina em um Espaço para a Memória. Sem saber, estava voltando ao local onde, em junho ou julho de 1977, nascera de forma prematura, em uma peça do cassino de oficiais. No ano passado, ele soube que fora um bebê de saúde frágil e com baixo peso que os repressores tiraram da mãe biológica, presa e torturada na Esma, e levaram a um hospital infantil onde a criança foi adotada porcivis. Jorge descobriu essa história, a sua história, com o auxílio de familiares, da Comissão Nacional Pelo Direito à Identidade (Conadi) e da Associação das Avós da Praça de Maio. Até o dia em que uma tia se aproximou para lhe dizer que quem ele acreditava que eram seus pais na verdade não eram, ele nunca tivera dúvidas sobre sua identidade. “Nesse instante, soube que poderia ser filho de desaparecidos. A princípio, pensei que não podia ser egoísta se havia uma família que estava me procurando. Senti uma responsabilidade em relação a eles. Porém, depois, fui entendendo que também era por mim, que era muito importante conhecer minhas origens”, resume.

Neto 116: identidade recuperada

Foto: Conicet/Divulgação

Foto: Conicet/Divulgação

Jorge Castro Rubel, 37, é sociólogo pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e investigador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet). Desde 2012, atua como pesquisador assistente no Instituto de Investigações Gino Germani, onde estuda a relação entre conflito sindical e cultura. Mora com a mulher e dois filhos na periferia de Buenos Aires, no célebre bairro Villa del Parque, onde viveram o escritor franco-argentino Julio Cortázar e o cantor de tangos Julio Sosa. Seus pais biológicos, ele soube somente agora, são Ana Rubel e Hugo Castro, militantes da Forças Argentinas de Libertação (FAL), que foram sequestrados em janeiro de 1977 pelo Exército e permaneceram em algum centro de detenção à disposição dos militares até que Ana foi levada para a Esma para dar a luz. Nesta entrevista ao Extra Classe, Rubel, que é o 116º neto a ter sua identidade recuperada segundo a Abuelas, evita entrar em detalhes sobre os pais adotivos ao contar essa experiência. “É uma bomba, uma comoção que te digam que a história que você conhece está incompleta ou está equivocada. Mas todos temos o dever de dizer e o direito de saber a verdade”.

Extra Classe – Quando e em que circunstâncias ficou sabendo que as pessoas que o criaram não são seus pais biológicos?
Jorge Castro Rubel – Descobri que não era filho biológico dos meus pais em agosto de 2014, quando uma tia minha me informou sobre essa realidade. Isso, obviamente, mudou muito a minha vida. Acho que é extremamente importante saber tudo sobre minhas origens e entendo que é assim para a maioria das pessoas. Portanto, valorizo e aprecio muito que eu tenha sido informado sobre esta situação.

EC – Isso muda sua vida? Em que sentido?
Rubel – Essa informação permitiu que eu descobrisse minhas verdadeiras origens, quem são meus pais e minha família biológica. Mas saber minha origem não desloca a minha história, não significa começar de novo. Representa um enriquecimento. Passei a reformular muitas coisas.

Neto 116: identidade recuperada

Foto: Conicet/Divulgação

Foto: Conicet/Divulgação

EC – E que providências tomou?
Rubel – A partir da informação trazida por essa tia, chamei a Associação das Avós da Praça de Maio (Abuelas) com o objetivo de confirmar ou descartar ser filho de pessoas desaparecidas durante a última ditadura militar que se desenvolveu na Argentina entre 1976 e 1983. E uma vez que entrei em contato com as Abuelas, segui os procedimentos estabelecidos para esses casos: me apresentei na sede da Associação e eles me encaminharam à Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi), do Ministério de Justiça e Direitos Humanos, que se encarrega de dar continuidade ao processo (de reconhecimento). A pedido da Conadi, me submeti a análises de DNA no Banco Nacional de Dados Genéticos.

EC – Como te informaram dos resultados?
Rubel – Recebi um telefonema de Claudia Carlotto, titular da Conadi. Ela me disse que se não me avisasse do resultado imediatamente poderia não sobreviver de tanta emoção e que se estava me chamando era por que havia dado positivo. Perguntei em que grupo familiar havia dado e ela me mandou olhar no computador. Vi quem haviam sido meus velhos. Em todo esse processo eu consultava muito a página das Abuelas, buscava os semelhantes. Claudia me contou quem eram meus pais e fomos para o Centro com minha mulher. Pedi que ela dirigisse porque eu poderia provocar um acidente. Na Conadi me receberam muito bem. A verdade é que em todo o processo encontrei calor, contenção e respeito. A mensagem para os que têm medo é que não o tenham. Claudia me mostrou as fotos dos meus pais.

EC – Nunca teve dúvidas sobre suas origens? Como foram sua infância e adolescência?
Rubel – Dúvidas claras creio que nunca tive. Revisando um pouco meu passado e conversando com pessoas próximas, creio que tive, sim, dúvidas sobre algumas questões  vinculadas. Ainda assim, não recordo se tive dúvidas claras sobre se podia ser filho de desaparecidos. Tive uma infância e adolescência das quais recordo com felicidade. Poderia dizer que foram como as de qualquer pessoa normal.

EC – De que forma sua história pessoal está conectada com a sua linha de pesquisa?
Rubel – Creio que meus interesses profissionais têm a ver com o ambiente no qual eu cresci e não com minhas origens biológicas.

EC – Um ambiente de conflitos sociais, políticos, trabalhistas…
Rubel – Minha pesquisa visa questões relacionadas com os conflitos sociais e, entre estes, o conflito trabalhista. Mas, em um período temporalmente pós-ditadura. Minha pesquisa está voltada para os conflitos sindicais no palco aberto na década de 1990, caracterizados por reformas pró-mercado estabelecidas na Argentina durante esses anos. Atualmente,
continuo a estudar questões relacionadas aos conflitos, particularmente na cultura de protestos existente na Argentina.

EC – Quem são as pessoas que o tomaram como filho e como se deu essa ‘adoção’?
Rubel – Fui criado por um casal de civis sem vínculos com as forças armadas. O contato com meu padrasto, que é médico, foi feito no Hospital Infantil Pedro de Elizalde (Casa Cuna à época), em Buenos Aires, local onde fui abandonado pelos militares, proveniente da Escola Superior de Mecânica da Armada (Esma), onde minha mãe foi sequestrada e onde eu nasci. Meu padrasto estava de plantão naquela noite. Segundo ele acreditava, eu era apenas um menino abandonado de procedência desconhecida.

EC – Como era e como ficou a sua relação com os pais adotivos após a revelação de que eles não são seus pais biológicos?
Rubel – A relação com eles é boa.

EC – Por que é importante buscar a verdade?
Rubel – É importante que as pessoas que tenham informações ou dúvidas sobre as origens de um familiar as transmita diretamente a eles, porque somos pessoas que estão próximas dos 40 anos de idade. É uma bomba, uma comoção que te digam que a história que você conhece está incompleta ou está equivocada, mas tem que dizer.

EC – Há alguma conexão entre o desaparecimento dos seus pais e a adoção?
Rubel – Como disse anteriormente, meus pais adotivos eram civis e não tinham vinculação com as forças armadas. Sendo assim, não existiu nenhum vínculo entre uns e outros.

EC – Quem eram Ana Rubel e Hugo Castro? O que o senhor apurou sobre a militância dos seus pais e o que aconteceu com eles?
Rubel – Ana e Hugo, meus pais, foram dois militantes políticos revolucionários que pertenciam às Forças Argentinas de Libertação (FAL), uma organização política armada socialista. Eles foram sequestrados pelas forças armadas em janeiro de 1977 e posteriormente foram desaparecidos por estas.

EC – O senhor pretende fazer algo que simbolize o resgate da memória deles?
Rubel – Ainda é cedo para responder sobre isso. Sem dúvida, posso dizer que sempre me senti próximo dos processos de memória, verdade e justiça com relação aos fatos relativos à violação dos direitos humanos na última ditadura.

EC – Por que, ao ser adotado, o recém-nascido estava com a saúde debilitada?
Rubel – Há um consenso de que meu estado de saúde era muito precário. Estava cianótico. A cianose é um sintoma de insuficiência circulatória, doença pulmonar ou intoxicação por gases tóxicos, característica da cardiopatia congênita denominada tetralogia de Fallot, em que a criança pode apresentar, logo ao nascer, coloração azulada da pele e das mucosas. E com baixo peso. As causas, desconheço. (De acordo com o depoimento de Sara Solarz de Osatinsky, a criança pesava apenas 2 quilos. Sara é sobrevivente da Esma e, junto com Alicia Milia, testemunhou o nascimento de Jorge.)

EC – O que é o “Plano de Apropriação de Bebês”?
Rubel – Chama-se “Plano Sistemático” a prática sistemática de sequestro, desaparecimento e ocultamento de bebês e crianças, filhos de militantes sequestrados e desaparecidos. É um plano deliberado que foi colocado em prática por membros das forças armadas durante a última ditadura.

Neto 116: identidade recuperada

Foto: Conicet/Divulgação

Foto: Conicet/Divulgação

EC – O senhor é o “neto recuperado número 116”, como assinala a Abuelas. Acredita que pode haver outros casos ainda não revelados de pessoas que foram tiradas de seus pais biológicos por militares durante a ditadura e adotadas de forma clandestina por esses e sem ter conhecimento da verdade?
Rubel – Não tenho dúvidas a respeito. A Associação das Avós da Praça de Maio considera que falta encontrar aproximadamente 400 jovens.

EC – Tem partilhado essa experiência? Como?
Rubel – Uma vez que foi determinado que eu era um dos meninos procurados pela Abuelas, tive vários convites para partilhar a minha experiência ante várias audiências. Nesse contexto, falei com os jovens na província de Chaco, onde minha mãe nasceu. Essas palestras têm sido extremamente importantes para mim porque as considero como uma contribuição pequena, mas necessária para discutir publicamente as violações de direitos humanos durante a ditadura na Argentina, especialmente os casos de roubos de bebês.

EC – Dos países latino-americanos que passaram por períodos de ditadura militar, a Argentina foi o que respondeu de maneira mais enérgica aos crimes cometidos, tendo condenado mais de 200 militares e civis por envolvimento nas prisões, torturas, desaparecimentos e mortes. A que se pode atribuir essa vanguarda na punição aos
crimes de Estado?
Rubel – Nesses temas, quer dizer, em relação aos processos de memória, verdade e justiça, a Argentina está claramente na vanguarda. E creio que isso se deve ao forte movimento de direitos humanos que se desenvolveu no país junto às políticas implementadas por diversos governos. Houve também fortes resistências a esses processos, resistências que se foram quebrando com muita força de vontade.

EC – Como a sociedade argentina, especialmente os jovens, convive com a memória dos crimes da ditadura, lembrando que em países como o Brasil, que também viveu sob a repressão, não são raros os casos de jovens e grupos de direita que na atualidade reivindicam o retorno de militares ao poder?
Rubel – Graças ao trabalho realizado por distintos atores, há na Argentina um repúdio profundo às violações dos direitos humanos praticadas pelas forças armadas nos anos 1976-1983. Esse trabalho deve continuar e se aprofundar para que esse repúdio se estenda cada vez mais e seja dominante na cultura do respeito à vida digna.

EC – O governo da presidente Cristina Kirchner, que está no final do segundo mandato, enfrentou a quarta greve geral com a paralisação convocada em março pela Central de Trabalhadores da Argentina (CTA) e pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), que concentra a maioria dos sindicatos da área de transportes. Qual a sua avaliação sobre o momento político do país?
Rubel – Considero que essa greve não teve maiores consequências, pois as organizações expressaram publicamente suas posições e no dia seguinte o país retomou sua rotina sem contratempos. Neste sentido, creio que a situação política no país é absolutamente normal. Qualquer ator social tem na Argentina o direito de expressar suas posturas sem nenhum tipo de limitação.

EC – Enquanto sociólogo, o que pensa da atual conjuntura social e política brasileira, em que se insurgem grupos de ultradireita com forte representação no Congresso?
Rubel – Não conheço com profundidade a situação política brasileira e, portanto, prefiro não me aventurar em nenhum tipo de análise além de repudiar qualquer vontade de promover mudanças políticas de forma violenta.

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