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A indústria do mal-estar

Por Grazieli Gotardo / Publicado em 12 de agosto de 2016

A indústria do mal-estar

Foto: Reprodução

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Há mais de 25 anos, o jornalista norte-americano Robert Whitaker escreve sobre medicina e ciência para diversas publicações. Em 1998, ao fazer uma série investigativa para o Boston Globe (o mesmo jornal da série de reportagens que deu origem ao roteiro do filme Spotlight), observou que alguns estudos sobre a utilização de medicamentos psiquiátricos apresentavam resultados que não condiziam com o entendimento que se cristalizava na sociedade: de que doenças como depressão, ansiedade e esquizofrenia seriam causadas por desequilíbrios químicos no cérebro, que poderiam ser corrigidos pelas novas drogas. A série de reportagens foi finalista do prêmio Pulitzer de Serviço Público. Depois disso, ele mergulhou na investigação de estudos científicos e constatou várias contradições e interesses de um mercado bilionário, a indústria farmacêutica de drogas psiquiátricas. Seu livro mais comentado Anatomy of an Epidemic – ainda sem tradução para o português, a ser publicado no Brasil em 2017, pela Editora Fiocruz – foi premiado como o melhor livro investigativo de 2010 por editores e jornalistas norte-americanos. Desde então, ele vem sendo convidado para apresentar seus dados em faculdades de Medicina, bem como tem sido confrontado por psiquiatras. Nesta entrevista concedida por e-mail, o jornalista detalha suas descobertas.

Extra Classe – Como teve início a sua pesquisa sobre as drogas psiquiátricas?
Robert Whitaker – Em 1998, fui coautor de uma série para o jornal Boston Globe sobre abusos contra pacientes psiquiátricos em ambientes de pesquisa. Naquela época, tive uma compreensão completamente convencional das drogas psiquiátricas, de que elas corrigiam os desequilíbrios químicos no cérebro e que seu uso contínuo era essencial para as pessoas com diagnóstico de esquizofrenia e outros transtornos mentais graves. Após isso, eu comecei a observar que a ciência não sustentava esse entendimento convencional. Foi isso que guiou minha curiosidade para investigar.

A indústria do mal-estar

Foto: reprodução

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EC – O que o motivou a escrever contra essas drogas?
Whitaker – Ao pesquisar essa história para o Boston Globe, deparei-me com dois estudos que me fizeram questionar esse entendimento convencional. A primeira foi a pesquisa pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que, por duas vezes, relatou que os resultados de longo prazo para as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia eram muito melhores em “países em desenvolvimento” do que nos países “desenvolvidos”. De fato, os pesquisadores da OMS concluíram que quem vive em um país desenvolvido era um forte candidato a não ter um bom resultado se diagnosticado com esquizofrenia. Isso me surpreendeu, e depois eu descobri que, nos países pobres, onde os resultados foram muito melhores, eram usados antipsicóticos muito diferentes. Mantinham-se as pessoas com esses medicamentos no curto prazo, e não por longos períodos. Apenas 16% dos pacientes eram regularmente mantidos com os medicamentos. E assim eu me perguntei: por que os resultados do tratamento da esquizofrenia seriam melhores em países que não mantêm regularmente seus pacientes com as drogas que eu entendi que seriam essenciais para a doença? Outro estudo, feito por pesquisadores da Harvard, relatou, em 1994, que os resultados dos tratamentos para pacientes com esquizofrenia estavam se reduzindo nos últimos anos, estando inclusive abaixo dos índices de resultados do primeiro terço do século 20, muito antes da chegada dos medicamentos antipsicóticos. Isso desmentia o entendimento convencional de que a chegada de antipsicóticos na medicina representou um grande avanço. Isso me motivou a olhar mais a fundo sobre a literatura científica em relação aos méritos dos medicamentos psiquiátricos. Eu não estava motivado a favor ou contra as drogas. Só queria investigar mais sobre seus efeitos, se as histórias que haviam sido divulgadas sobre esses medicamentos, de que eles corrigiam desequilíbrios químicos no cérebro, eram verdadeiras. E quando descobri que a literatura científica realmente contou uma história diferente do que o que nós acreditamos convencionalmente, me motivei a escrever sobre o assunto.

EC – Em que momento de suas pesquisas você percebeu que as drogas psiquiátricas faziam parte de um mercado rentável e quem são os interessados nesse mercado? Essa realidade se mantém nos dias de hoje?
Whitaker – Eu já sabia há algum tempo que as drogas psiquiátricas eram parte de um mercado rentável. Em 1994, cofundei uma editora, que publicou sobre o desenvolvimento da indústria de novas drogas e o mercado crescente. Esta foi uma época em que antidepressivos ISRS (Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina) estavam se popularizando e os novos antipsicóticos atípicos (segunda geração) estavam chegando ao mercado. Escrevi sobre essa comercialização na investigação do Boston Globe em 1998. A indústria farmacêutica continua muito interessada em vender drogas psiquiátricas, uma vez que foi um mercado em franco crescimento nos últimos 30 anos.

EC – Como ocorreu esse crescimento da indústria farmacêutica de remédios psiquiátricos nos últimos anos?
Whitaker – Em 1987, os Estados Unidos gastaram cerca de US$ 800 milhões com drogas psiquiátricas. Os EUA agora gastam mais de US$ 35 bilhões em drogas psiquiátricas a cada ano. Isso é um aumento de 40 vezes nos gastos. Não sei os números para o crescimento no mercado global, mas o mercado tem se expandido drasticamente nos últimos 30 anos.

EC – O senhor diz que as pesquisas comprovam que doenças como a depressão e esquizofrenia não são causadas por desequilíbrios químicos, como sustentam a indústria farmacêutica e a classe médica. O que comprova isso?
Whitaker – A teoria do desequilíbrio químico surgiu a partir de um entendimento de como as drogas psiquiátricas agem no cérebro, e não a partir de investigações de pessoas diagnosticadas com um determinado distúrbio. Por exemplo, os pesquisadores passaram a entender que os antidepressivos aumentam a atividade serotoninérgica no cérebro. Isso os levou à hipótese de que a depressão é devido à pouca atividade serotoninérgica (pouca serotonina no cérebro). Mas quando os pesquisadores estudaram se pacientes diagnosticados com depressão antes de serem submetidos à medicação sofriam com baixos níveis de serotonina, não encontraram nada. Os sistemas serotoninérgicos estavam normais. Essa é a prova. Quando os pesquisadores analisaram se os pacientes diagnosticados com depressão ou algum outro transtorno mental tinham um desequilíbrio químico específico, eles não encontraram nada. Em relação à saúde dos pacientes, isso significa que muitos tomam antidepressivos e outras drogas psiquiátricas com base em uma falsa compreensão. Eles acreditam que têm um desequilíbrio químico que está sendo corrigido pela droga, e, assim, a droga é tal como a insulina para o diabetes. Mas isso não é verdade. Na verdade, a biologia dos distúrbios psiquiátricos permanece desconhecida, e psicofármacos “trabalham” para perturbar o funcionamento normal dos neurotransmissores no cérebro. As drogas são agentes que alteram as funções do cérebro, em vez de agentes normalizadores. Assim, a “medicalização” significa que a prescrição dessas drogas está sendo feita em um contexto que dá às pessoas uma falsa compreensão de seus próprios cérebros. Elas são levadas a acreditar que as suas lutas contra a depressão, ansiedade ou algum outro problema são devido a um problema químico conhecido, quando isso não é verdade. Na realidade, o cérebro humano é incrivelmente complexo e muito do seu funcionamento é um mistério. E quando ingerimos agentes que alteram a função do cérebro, que é o que as drogas psicotrópicas fazem, isso pode ser um problema para nossa saúde física e mental a longo prazo.

A indústria do mal-estar

Foto: Acervo pessoal

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“A indústria farmacêutica quer convencer as pessoas de que é melhor viver com drogas, já que isso constrói grandes mercados para os seus medicamentos. E a psiquiatria é sua aliada: a especialidade médica tem motivos para promover ouso das drogas de curto e de longo prazo”

EC – O que está por trás do interesse em convencer as pessoas de que é melhor viver com drogas de uso contínuo?
Whitaker – Dois interesses: a indústria farmacêutica quer convencer as pessoas de que é assim, já que isso constrói grandes mercados para os seus medicamentos. E a psiquiatria é sua aliada. Pelo menos nos Estados Unidos, grande parte dos psiquiatras deixa de lado a terapia da conversa e manda seus pacientes para psicólogos e outros terapeutas. Seu “produto” no mercado são as drogas. E assim a especialidade médica tem motivos para promover o uso das drogas de curto prazo e de longo prazo.

EC – O que comprova que as doenças mentais estão se tornando muito mais crônicas atualmente do que na era pré-drogas psiquiátricas?
Whitaker – Esta evidência é demonstrada em vários estudos e eles estão todos no meu livro Anatomy of an Epidemic (em tradução livre: anatomia de uma epidemia). Mas, por exemplo, na era pré-antidepressivos, a depressão costumava ocorrer em episódios, e uma alta porcentagem de pessoas que sofriam um primeiro episódio de depressão grave o suficiente para ser hospitalizada jamais teria outro. Apenas algumas poucas pessoas diagnosticadas com um episódio depressivo inicial iriam se tornar cronicamente doentes. Hoje, pelo menos nos Estados Unidos, um elevado número de pessoas diagnosticadas com depressão torna-se depressivo crônico. É possível ver esta mudança no curso da depressão na era moderna das drogas no livro da Associação Psiquiátrica Americana (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM). O livro diz que os estudos apontavam que a depressão ocorria por episódios e que a maioria das pessoas se recuperava desse episódio inicial. Agora, a publicação afirma que a depressão segue um curso crônico. E hoje, se você estudar o curso da depressão em pacientes não medicados e pacientes medicados, o grupo de não medicados tem melhores resultados a longo prazo. Eles são muito menos propensos a acabar cronicamente deprimidos.

EC – Por que é um mito que todas as pessoas com esquizofrenia precisam de medicação para toda a vida?
Whitaker – Estudos após estudos comprovam que uma porcentagem significativa de pacientes com diagnóstico de esquizofrenia pode ficar muito bem, a longo prazo, sem antipsicóticos, e é este grupo sem medicação que tem os melhores resultados no longo prazo. Isso foi mostrado no estudo de Martin Harrow (PhD em Psiquiatria na Universidade de Illinois) com pacientes esquizofrênicos nos Estados Unidos e em um estudo de Courtenay Harding (PhD em Psiquiatria, especialista em esquizofrenia, com passagem pelas principais universidades norte-americanas e hoje consultora internacional para programas de reabilitação mental). Ambos concluíram em suas pesquisas que era um “mito” que todas as pessoas com diagnóstico de esquizofrenia precisavam estar em uso de antipsicóticos por toda a vida e que, aparentemente, apenas uma minoria necessita usar medicamentos no longo prazo.

EC – Qual é a relação entre o uso de drogas ilícitas e antidepressivos e o aumento dos casos de bipolaridade?
Whitaker – É bastante claro que os estimulantes e antidepressivos aumentam o risco de uma pessoa sofrer um episódio maníaco e ser diagnosticada com transtorno bipolar. Com pessoas deprimidas, verifica-se que, quando se dá um antidepressivo, duplica o risco de a pessoa se tornar bipolar. E existem drogas ilícitas que aumentam o risco de uma pessoa ser diagnosticada como bipolar. Por exemplo, adolescentes que fumam maconha regularmente aumentam consideravelmente o risco de desenvolverem a bipolaridade. O problema pode ser resumido da seguinte maneira: drogas psicotrópicas, particularmente quando usadas de forma contínua, podem induzir problemas de humor que levam a um diagnóstico bipolar.

EC – O que concluem os estudos sobre o uso de medicação para depressão ou déficit de atenção em crianças e jovens por longos períodos?
Whitaker – Estudos de longo prazo de jovens diagnosticados com TDAH e tratados têm apontado que os medicamentos não fornecem benefício em nenhuma área. O único resultado é que o uso prolongado pode conduzir a problemas físicos e aumentar o risco de desenvolver bipolaridade.

EC – Ao longo de suas pesquisas e matérias publicadas, você sofreu algum tipo de pressão ou represália?
Whitaker – Houve algumas coisas bastante negativas escritas sobre mim por psiquiatras que são líderes em seu campo. O meu comentário favorito foi o de Jeffrey Lieberman, ex-presidente da Associação Americana de Psiquiatria, que disse a uma estação de rádio canadense que eu era uma “ameaça para a sociedade”. Mas eu, realmente, não tenho enfrentado retaliações, apenas críticas.

EC – Como vem sendo a inserção da sua investigação nas faculdades de Medicina?
Whitaker – Tenho sido chamado por um bom número de escolas médicas para dar palestras e apresentar minhas pesquisas. Ao mesmo tempo, acho que a maioria das escolas médicas simplesmente ignora meus livros e investigações.

EC – Depois dessas constatações, você é contra a utilização de drogas para doenças mentais? Por quê?
Whitaker – Não sou nem a favor nem contra o uso de drogas para transtornos mentais. Sou a favor de serem prescritas dentro de um contexto, o que significa que a sociedade deve compreender que a biologia das perturbações mentais permanece desconhecida, que as drogas não corrigem desequilíbrios químicos no cérebro; que, em geral, a sua eficácia a curto prazo é baixa; que estas drogas vão induzir alterações no cérebro que podem provocar dependência do medicamento e que existem evidências consideráveis de que, a longo prazo, os medicamentos aumentam a cronicidade de distúrbios mentais e o risco de uma pessoa se tornar funcionalmente prejudicada. Se as pessoas tiverem essa informação, então a sociedade e os indivíduos podem usar esses agentes com conhecimento, que, creio eu, envolveria muito mais cautela, e, em geral, por curtos períodos de tempo.

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