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Por trás dos golpes

por César Fraga / Publicado em 11 de abril de 2017

Por trás dos golpes

Foto: Antônio Scarpinetti/Ascom/Unicamp

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Por trás dos golpes

Reprodução

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No período que precedeu o golpe de 1964, a Justiça do Trabalho vinha tomando uma série de decisões a favor de trabalhadores e sindicatos, que tinham aprendido a ocupar espaços institucionais e a se beneficiar da legislação e da justiça trabalhistas, usando a seu favor as regras da CLT. É o que diz o historiador e professor Fernando Teixeira da Silva, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Silva acaba de lançar o livro Trabalhadores no Tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no Contexto do Golpe de 1964 (Editora Alameda/Fapesp). A obra vai muito além de se deter ao que sugere o título, pois remonta a história das leis trabalhistas no Brasil, da Justiça do Trabalho e da participação dos trabalhadores em momentos distintos da história, permitindo alguns comparativos com o presente. Segundo ele, os golpes de 1964 e 2016 são ambos, em parte, reação a períodos de conquistas de direitos sociais. Para ele, a grande ofensiva contra os direitos trabalhistas também está no centro do chamado golpe parlamentar que depôs a presidenta Dilma Rousseff no ano passado, como esteve em 1964 e nas tentativas que o precederam. Além disso, desmente a versão aceita de que a CLT seria uma mera cópia da Carta Del Lavoro, de Mussolini, e amplia a compreensão sobre esse conjunto de leis agora posto em xeque diante das reformas trabalhistas e leis que permitem a terceirização das atividades-fim.

Extra Classe – Como o senhor encara a declaração do presidente da Câmara Federal, o deputado Rodrigo Maia, de que a Justiça do Trabalho não deveria existir?
Fernando Teixeira da Silva – O Rodrigo Maia faz parte de um projeto de desmonte dos direitos trabalhistas, e ele não explicitou as razões pelas quais ela não deveria existir. Mas, diante dos projetos que ele está envolvido, como terceirização, reforma da Previdência, reforma trabalhista, fica muito evidente que a intenção é tirar qualquer proteção legal e judiciária da parte dos trabalhadores. Trata-se de um projeto bem delineado, cada vez mais evidente no sentido de, dessa vez, destruir esses anteparos que os trabalhadores ainda têm diante do desrespeito patronal frente aos direitos dos trabalhadores. Eu acho que agora a gente está no momento mais impactante de ataque a esses direitos de toda a história da CLT. Além disso, também é o momento mais favorável a uma destruição dessas instituições que foram criadas durante esses anos todos para preservar direitos. Se a gente pegar o período da ditadura militar, por razões várias, se conseguiu de certa forma conciliar justiça do trabalho, CLT, direitos, mantendo inclusive a estrutura sindical. Ou seja, todo um edifício corporativista contra o qual o golpe militar, em parte, se justificou.

EC – Por que a ditadura militar também teve, mais tarde, um viés populista?
Silva – Há um trabalho importante que será publicado pela Unicamp em breve e que foi minha orientanda, chamada Larissa Corrêa, que mostra a influência dos Estados Unidos no Brasil, principalmente no período João Goulart e nos primeiros governos militares no sentido de impor o negociado acima do legislado, como hoje se pretende aquele modelo americano mais voluntarista, de negociação direta sem intervenção da Justiça. Mas eles não conseguiram, em parte porque os próprios militares, baseados num projeto nacionalista, acabaram não aceitando esse modelo, e depois porque os militares viram que era possível conciliar a estrutura sindical, todo o corporativismo, com uma política de controle dos trabalhadores.

EC – Até porque o perfil do sindicalismo da época era completamente diferente do que é agora, menos combativo e político e mais voltado para o assistencialismo e corporativismo. Seria isso?
Silva – Sem dúvida. Depois, Collor de Mello tentou impor uma política neoliberal mas não teve sucesso pelas razões que já se conhece, principalmente porque ele cai antes de implementar mudanças. E, depois, o Fernando Henrique Cardoso, que teve oito anos para promover esse desmonte e também não conseguiu. Uma das estratégias, inclusive, foi criar uma quantidade praticamente insignificante de novas Juntas de Conciliação na Justiça do Trabalho (N.E.: transformadas em Varas do trabalho em 1999).  Eu até fiz um estudo que mostra isso. Até o governo FHC, depois das Constituição de 1988, houve uma explosão de Juntas de Conciliação e o Fernando Henrique praticamente congela esse movimento. Depois, com Lula há uma retomada na criação de Varas. Graficamente dá para ver em termos estatísticos que houve um achatamento na criação de novas juntas no período FHC.

EC – E agora vemos um esvaziamento da Justiça do Trabalho com cortes de verbas. Como isso afeta?
Silva – Sim, houve um corte profundo na Justiça do Trabalho. Inclusive o relator do orçamento foi bastante claro, quando disse que o corte consistia em constranger os tribunais a reverem sua posição, a jurisprudência no sentido de serem, segundo ele, “menos protecionistas” a favor dos trabalhadores. Ou seja, na medida que os tribunais tomem decisões mais favoráveis aos empregadores. Ainda mais agora, com a crise econômica, o número de ações trabalhistas aumentou em 30%.

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Foto: Antônio Scarpinetti/Ascom/Unicamp

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EC – Trata-se de uma chantagem clara que o Legislativo faz com o Judiciário trabalhista para favorecer o setor empresarial e do atual governo comprometido com esse setor?
Silva – Acho que sim e com participação do restante do Judiciário. Se a gente observar bem dentro da própria Justiça do Trabalho e no restante do Judiciário. De um lado você tem uma parte minoritária, mas que conta com o beneplácito do presidente e do ministro do TST, que é o Ives Gandra, que é totalmente favorável que se imponha o modelo negociado sobre o legislado, dizendo que há um excesso de litigiosidade, que há uma explosão litigiosa no Brasil e de uma suposta insegurança jurídica etc. De outro lado, o próprio Supremo (STF) decidindo sobre várias coisas. Na verdade, já existe uma flexibilização, uma espécie de reforma via Supremo. Se a gente pegar, nos últimos anos, as decisões do STF têm sido muito evidentes nesse sentido. O papel do Judiciário tentando terceirizar em atividades-fim, criando jurisprudência para isso, não conseguiu. O desafio agora tem sido o Legislativo fazer passar a terceirização para todo tipo de atividade, o que implica desmonte geral não só da CLT, mas da própria Justiça do Trabalho. Em grande parte, algumas decisões do Supremo já flexibilizam jornada de trabalho, invade algumas questões contratuais, por exemplo, se um contrato não é renovável, se há ausência de novo contrato, os sindicatos partem do zero. Não valem as cláusulas de convenção anterior.  Uma coisa que até então a Justiça do Trabalho vinha contemplando. Então, existe uma flexibilização silenciosa via Judiciário que afeta diretamente horas de descanso, horário de refeição, férias e por aí vai.

EC – Os poderes estão alinhados nesse sentido?
Silva – Eu acho que agora há uma conjunção de forças, que vai do Executivo, passando pelo Legislativo até o Judiciário e uma parte minoritária da Justiça do Trabalho, pois há ministros do TST contrários à reforma trabalhista, mas há forças por dentro da Justiça que trabalham a favor. Muitas vezes, hoje, a Justiça do Trabalho acaba sendo um bom negócio para os patrões. Eles dividem ou parcelam dívidas trabalhistas e até mesmo fazem dívidas trabalhistas de maneira propositada, dividem isso em várias prestações e sempre há uma tentativa de anistia.

EC – Como o projeto de terceirização ressuscitado pelo Rodrigo Maia, aprovado na Câmara?
Silva – Sim, o projeto de terceirização do Maia no Congresso vai nesse sentido. De fato, hoje, há uma convergência de forças e de fatores que levam à expectativa bem pessimista em relação a esse desmonte. Estamos no momento mais agudo desse processo. Talvez até não só por questões internas, por questões internacionais também, pois o argumento é sempre flexibilizar para poder concorrer internacionalmente. Há também o discurso sempre em voga de que é preciso equilibrar contas públicas com retomada da economia. E o argumento de sempre é que a CLT é arcaica, que é engessada, que o intervencionismo do Judiciário trabalhista encarece a mão de obra. Cria desemprego, de que a Justiça é paternalista e cria insegurança jurídica e por aí vai. Para não dizer que ainda se repete a exaustão que foi uma cópia da Carta Del Lavoro, do modelo fascista italiano.

EC –  Seu livro desmistifica um pouco a relação da CLT com a Carta Del Lavoro, gostaria que o senhor explicasse um pouco isso.
Silva – Outros trabalhos já mostraram que não faz o menor sentido dizer que a CLT é um decalque, uma cópia da Carta Del Lavoro, mesmo porque ela não era uma lei, mas uma carta de princípios em termos corporativistas. Evidentemente há inspirações, principalmente em relação à chamada estrutura sindical oficial. O que eu fiz foi uma comparação mais específica com a Magistratura Del Lavoro e eu tentei mostrar como as duas justiças são bastante diferentes, não só no seu funcionamento, mas na sua estrutura. Boa parte dos elementos que são agregados para ser pensar uma comparação ou uma cópia, que é o modelo paritário ou o que pelo menos era jurisclassista, a conciliação, uma série de mecanismos de funcionamento da Justiça, mostram que eram bastante diferentes. Fiz uma análise de um capítulo inteiro para mostrar como existe uma diferença marcante. No Brasil, as influências foram várias. A própria experiência que já vinha se fazendo ao longo dos anos 1920, havia o Oliveira Vianna, que foi o grande edificador da Justiça do Trabalho. Ele reivindicava uma influência norte-americana, em parte como um álibi para dizer que ele não tinha grandes inclinações fascistas, mas em parte é verdade, tinha lá certa influência.

EC – Também havia inspiração norte-americana?
Silva – Mais recentemente escrevi um texto mostrando como o New Deal, dos Estados Unidos, até nos aspectos do edifício legal, jurídico, tinha muito de corporativismo e num país liberal que se colocava contrário ao fascismo, houve trocas inclusive com a própria Itália. O poder normativo que é o instrumento mais importante que eu analiso e que define  certas coisas específicas da Justiça, era uma invenção da Austrália e da Nova Zelândia, que nasceu de um projeto trabalhista na virada do século 19 para o 20, além de várias outras influências. Em termos da estrutura da Justiça, a maior semelhança é a Alemanha pré-nazista, da República de Weimar. Então, não se sustenta esse tipo de argumento.  É uma pecha que não cabe, mesmo que tenha ocorrido e houve inspirações corporativistas. E o corporativismo não necessariamente equivale a fascismo, embora tenha sim algumas implicações que vêm do fascismo, porém é extremamente mais complexo. Muito dessa legislação foi criada previamente ao Estado Novo (que inicia 10 de novembro de 1937 e se encerra 29 de outubro de 1945), que foi o período ditatorial. A CLT na verdade é uma série de leis que já vinham sendo criadas. Então, já existia todo um edifício legal corporativista, que já havia sido criado na lei dos sindicatos patronais e de trabalhadores em 1931, antes do período ditatorial, durante o governo provisório de Vargas (1930-1934).

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Foto: Antônio Scarpinetti/Ascom/Unicamp

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EC – Que também sofreu pressões dos trabalhadores?
Silva – Sim, não foi apenas uma criação unilateral de governo, houve também um reconhecimento histórico da luta dos trabalhadores, que tanto a CLT quanto a Justiça do Trabalho, a organização sindical, nada disso pode ser creditado a uma identidade original, uma espécie de maçã podre fascista, porque depois disso muita coisa mudou. O que desafia os historiadores de maneira geral, cientistas políticos e sociais é como essa estrutura foi tão longe. Mesmo com modificações desafia qualquer outro modelo. Talvez só a Austrália tenha algo parecido em termos de uma duração no tempo como esse que a gente agora está vendo em vias de derrocada. Mas é um modelo, vamos dizer assim, costumo dizer que é uma espécie de oxímoro. É algo rigorosamente flexível. É um rigor flexível. No caso da Itália o modelo foi tão rigoroso e impregnado pelo fascismo, pelo Executivo, pelo partido, que praticamente não funcionou. E no Brasil funcionou, principalmente depois do período democrático. Aí, por várias razões. Uma delas é que os próprios trabalhadores deram vida a esses instrumentos, que a princípio foram criados em parte com preocupação de, como alguns dizem, populistas ou de manipulação. Mas evidentemente, os trabalhadores entenderam que podiam se apropriar de parte desse modelo em benefício próprio.

EC – Como a Lei de Greve?
Silva – Sim. A própria Lei de Greve de 1946, que durante muito tempo houve uma discussão sobre se era constitucional ou não. Curiosamente algo muito pouco explorado na historiografia, é que curiosamente ela se transformou em um fator grevista, por razões lá que eu explico no livro, e tem a ver com a possibilidade de ameaça de greve e fazer com que isso criasse um dissídio coletivo em que muitas vezes a própria Justiça e a própria Lei de Greve, que vieram tentar eliminar ou ao menos mitigar os movimentos grevistas, e acabaram sendo utilizados de maneira extremamente criativa para reforçar esses movimentos.

EC – Mas isso acaba sendo domesticado no Golpe de 1964?
Silva – O próprio comportamento da Justiça do Trabalho às vésperas do Golpe de 1964, tento mostrar isso, foi um comportamento cada vez mais afinado com argumentos de sindicatos e advogados dos trabalhadores. Foi uma luta pacienciosa e rotineira. O que mostra que os trabalhadores foram também capazes de se apropriar por dentro dessas instituições e transformar os objetivos em algo que era bem mais favorável aos seus interesses. Então trata-se de algo muito mais complexo do que simplesmente uma noção de dominação, dominação e de outro lado resistência visceral, aberta ou então, alguns trabalhadores teriam sido cooptados, enganados. Eu tento mostrar que a luta dos trabalhadores por dentro da institucionalidade, ocupando essa institucionalidade que levou, em grande parte, ao golpe de 1964. Trabalho com duas hipóteses: uma que acha que os trabalhadores acabaram sendo sujeitos da sua própria dominação, porque teriam sido cooptados e fizeram funcionar essa máquina toda contra eles próprios, numa espécie de grande ingenuidade, ou então de forma arquitetada por parte das esquerdas, principalmente do partido comunista.  E, de outro lado, a perspectiva de que a institucionalidade não conseguiu absorver determinados conflitos que extrapolavam os limites institucionais.

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Segunda Parte da entrevista com o historiador Fernando Teixeira da Silva 

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Foto: Antônio Scarpinetti/Ascom/Unicamp

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EC – Como as ligas camponesas?
Silva – Um dos exemplos são as ligas camponesas do Julião, no pré-1964. E eu tento mostrar que não nem uma coisa nem outra. Pelo contrário, foi a luta dentro dessas instituições que tornou isso insustentável para grande parte dos empresários e grande parte dos fazendeiros. Tem um capítulo sobre trabalhadores rurais, e eu insisto muito nisso. Eram instituições que não deveriam ser ocupadas por parte da esquerda ou pelos próprios trabalhadores, mas eram instituições que deveriam existir no sentido de controlá-los. É claro que em tudo isso há muitas contradições. Há todo um jogo de tentativa de controle, cooptação etc., mas é muito mais complexo o que eu tento mostrar.

EC ‒ Que é completamente diferente do cenário que a gente viu depois, com os movimentos operários do ABC, do MST e outros movimentos sociais, que desembocou  no processo de redemocratização e que começa a mudar a cara dos sindicatos e que teria se iniciado por fora das instituições.
Silva – Foi apenas em parte por fora. Talvez até muito mais em termos discursivos. Se criou uma memória daquele momento, do chamado novo sindicalismo, que pretendeu estabelecer um antes e um depois. Até essa ideia do “novo”, que foi uma insistência muito grande por parte de grupos autonomistas insistia que o passado dos trabalhadores só era digno de lembrança na Primeira República sob inflexão anarquista libertária de ação direta. E todo esse período que veio antes do novo sindicalismo caiu no limbo nessa renovação, que foi em grande parte sugerida e apresentada. Hoje muitos trabalhos mostraram que as coisas não eram assim tão nítidas e tão claras. Evidente que havia ali uma tentativa de destruição de toda essa herança, mas logo depois, mesmo grupos que tinham vínculos estreitos com a tradição do novo sindicalismo, acabaram mantendo e convivendo com essa estrutura toda.

EC ‒  Foi muito mais uma transição do que uma ruptura?
Silva – Sim. Foram formas de acomodação do antigo com o novo modelo. Ainda existe muita coisa a ser revista a esse respeito, pois há uma espécie de idealização de movimentos, que eram à margem da institucionalidade com movimentos até certo ponto heroicos. Na verdade, foram momentos muito passageiros, temporários, e que ainda, agora nesse momento de reação terrível por parte dos setores mais conservadores, existe que quase até um apego a esses modelos todos. Os sindicalistas não falam mais em destruir a CLT, que o próprio Lula falava isso à época das grandes greves do ABC, que a “CLT era uma espécie de AI-5 dos trabalhadores”. Há toda uma reconsideração que acaba influenciando muito na análise histórica. O Lula, antes de ser presidente acabou colocando uma série de elementos novos para se pensar. Quando se quer uma mudança dessa estrutura toda, desse modelo todo, mas por parte da direita é claro, e boa parte dos trabalhadores e do movimento sindical preferem ainda se apegar a esse passado, porque você tem aí um anteparo contra as forças de mercado, e tudo mais.

EC ‒E hoje, esse ataque comandado pelas federações empresariais que fazem  lobby no Legislativo, no Executivo e até mesmo no Judiciário, como o senhor estabeleceria um comparativo? A Justiça do Trabalho tende a sofrer mais nos períodos de autoritarismo? Ou o senhor não considera o período atual autoritário?
Silva ‒ Primeiro, eu considero o atual momento bastante autoritário. A primeira coisa que a gente tem de considerar é que a própria CLT – às vezes, as pessoas têm uma visão muito equivocada ‒, de tratar-se meramente de uma lei de 1943, do Estado Novo, numa ditadura etc. Vamos com calma. A CLT sofreu cerca de 236 mudanças que ocorreram via Congresso Nacional, decretos do Executivo, emendas constitucionais e medidas provisórias. Entre todas essas formas de alteração da lei, 75% ocorreu por meio legislativo. O período de maior alteração, sem dúvida, foi durante a ditadura militar. E, foi exatamente durante a ditadura que teve a maior quantidade de decretos emanados do Executivo. Hoje há uma tendência muito grande nesse sentido, ter o Legislativo favorável a uma ampla alteração do modelo vigente, mas você vê aí, como eu falei antes, o Executivo e o Judiciário também legislando sobre o assunto. Então é evidente que em momentos democráticos você tem mais usos mais favoráveis da legislação aos trabalhadores.

EC ‒ E a crise?
Silva ‒ Estamos vivendo um período difícil, que além de ser um período de recessão econômica, também é um período de fechamento político muito estreito. É claro que isso impõe dificuldades imensas aos trabalhadores. E sabemos que muitas vezes os trabalhadores preferem um mau contrato ao desemprego.

EC  ‒ Existe comparativo com 1964?
Silva ‒ Em grande parte tudo isso que está acontecendo é uma reação à ampliação de direitos. Essa é uma comparação que eu tenho feito. Se tem alguma coisa que se assemelha a 1964, que impôs aí uma ditadura. Hoje acho que a gente não está vivendo uma ditadura ainda, mas sim uma prática política extremamente autoritária, excludente etc. Uma ditatura do poder econômico, se for o caso. Você tem uma semelhança muito grande com 1964. No período imediatamente anterior houve uma sociedade muito criativa, com movimentos sociais nunca vistos até então. Como dizia, foi uma reação porque os trabalhadores puderam se apropriar da institucionalidade. E hoje, temos muito mais a perder, porque houve um acúmulo de direitos conquistados nos últimos anos, não só do ponto de vista social. Em 1964 estava muito polarizado na questão do capital/trabalho. Agora existe uma ampliação em termos de questões raciais, de gênero e não questões especificamente de classes. Então, há reação a políticas e a uma sociedade mais inclusiva. É uma elite que não aceita empregadas com direitos, pobres no aeroporto, negros na universidade. Os direitos estão no centro do golpe. Se a luta por direitos estava no centro do golpe de 1964, agora está novamente e ampliada neste golpe atual que estamos vivenciando.

EC  ‒ Qual a sua síntese sobre a aprovação Lei da Terceirização sancionada pelo presidente Temer no final de março?
Silva – Terá um impacto tremendo entre os trabalhadores. Aumentarão as jornadas de trabalho, os índices de doenças profissionais, os acidentes de trabalho, a rotatividade. Também arrebenta com a noção de categoria profissional, na medida em que os contratos de trabalho   são mais frágeis, na medida em que a relação com o contratante é mais distante do ponto de vista dos direitos sociais, trabalhistas etc. Então, neste sentido, não há dúvida nenhuma de que vai ser muito ruim. Mas parece que a jogada é essa: de tentar vetar essa lei ou retroagí-la e depois acabar sancionando a PLC 30/2015, do Senado, sob o argumento de que ela uma proteção maior do trabalhador, o que está muito longe de ser verdade. Trata-se de uma lei que teve intervenção direta da Confederação Nacional da Indústria, da Fiesp, Febraban, deputados que também são grandes empresários, que também possuem interesses nesse tema, como é o caso do próprio autor da proposta o ex-deputado Sandro Mabel (PMDB).   Sem contar que na Justiça do Trabalho os maiores devedores são as empresas que contratam diretamente terceirizados, ou seja 25% dos mais devedores estão entre as empresas que fazem a contratação e não a empresa contratante. O passivo da Justiça do Trabalho é extremamente alto e sem garantias por que muitas dessas empresas acabam fechando. E a lei não cria nenhuma garantia de que deveriam pagar. Haverá um estreitamento do mercado interno uma vez que terá impacto em salários e na poupança dos trabalhadores, e isso afetará a poupança dos trabalhadores; com isso vão consumir menos, o Estado vai arrecadar menos, criando problemas fiscais, previdenciários, mais gargalos no SUS, pois aumentará a procura pelos serviços de saúde. Algumas dessas empresas são menos capacitadas para lidar com os problemas de segurança do trabalho, problemas de doenças. Tudo isso causará um efeito contrário na economia. E, se a economia não cresce, não haverá novos empregos. O provável é que se repita mais ou menos o que aconteceu no México.

EC ‒ O que aconteceu no México?
Silva ‒  Lá ocorreu há alguns anos exato como está ocorrendo aqui. Diziam que liberar a terceirização aumentaria o número de empregos, quando na verdade decresceram e entre os trabalhadores que têm emprego houve um aumento muito grande da rotatividade. Então, tudo isso que estão cantando aqui em verso e prosa já foi testado em outros países, basicamente da mesma maneira e não funcionou. Sempre sob a desculpa de se tornar mais competitivos no mercado americano. Claro que os EUA tinham interesse nisso, porque aí eles passam a comprar carros no México mais baratos do que eles fariam nos Estados Unidos. E foi isso que aconteceu. Existe um suposto barateamento do custo, mas de fato as empresas vão enxugar as folhas de pagamento e propor contratos individuais, que é a chamada pejotização (cotratação mediante nota fiscal de empresa).  Mas não parou por aí, existem vários movimentos contra isso e  o jogo continua sendo jogado. Há grupos bastante envolvidos, como a Anamatra, o próprio TST, emitiu nota contra a terceirização, no mesmo sentido. E tudo isso acaba tendo um efeito multiplicador e deverá ter muita reação neste mês de abril, inclusive com passeatas e paralisações previstas.

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