GERAL

O Brasil apequenado de Bolsonaro

Por César Fraga / Publicado em 21 de novembro de 2018
"Transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém não é um gesto contra a Palestina, é contra a ONU, contra todo mundo. Os únicos que pensam diferente são os Estados unidos e a Guatemala. O Brasil se torna caudatário de uma política absolutamente voltada para algo que é uma mistura de religião com interesse em lobby"

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

“Transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém não é um gesto contra a Palestina, é contra a ONU, contra todo mundo. Os únicos que pensam diferente são os Estados unidos e a Guatemala. O Brasil se torna caudatário de uma política absolutamente voltada para algo que é uma mistura de religião com interesse em lobby”

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Na manhã desta quarta-feira, 21, o ex-ministro das relações exteriores (por duas vezes) e ex-ministro da Defesa, Celso Amorim, conversou com o Jornal Extra Classe, no saguão do hotel Plaza São Rafael, sobre as polêmicas internacionais envolvendo o governo eleito. Amorim fez considerações sobre as declarações do futuro presidente que levaram o governo cubano a sair do programa Mais Médicos no Brasil, o anúncio da transferência da embaixada em Israel para Jerusalém e o alinhamento subserviente do Brasil aos interesses norte-americanos. O ex-chanceler esteve em Porto Alegre para participar de uma reunião ampliada da CUT/RS e federações, realizada no Sindipolo. Celso Luiz Nunes Amorim tem 76 anos e serviu ao Itamaraty desde os governos militares, após formar-se no Instituto Rio Branco, em 1965, quando obteve, logo a seguir, o título de pós-graduação em Relações Internacionais pela Academia Diplomática de Viena, na Áustria, em 1967. Amorim se graduou em primeiro lugar de sua turma no Instituto Rio Branco e, como prêmio, foi enviado em 1966 à Academia Diplomática de Viena, onde ele terminou a sua tese e retornou ao Rio de Janeiro antes de ser enviado para seu primeiro posto como diplomata em Londres. Em 2009, o articulista David Rothkopf, da revista estadunidense Foreign Policy, indicou Amorim como “o melhor chanceler do mundo”.

EC – Existem farpas recíprocas entre o senhor e o atual indicado para o cargo de Ministro das Relações Exteriores que, inclusive, disse que buscaria “possíveis falcatruas suas”, após críticas que o senhor teria feito projeto de Ernesto Fraga Araújo para o Itamaraty, que seria, na sua opinião, medieval. Como o senhor vê isso tudo?
Celso Amorim – Da minha parte não há farpa nenhuma. Pessoalmente não tenho nada contra o Ernesto Araújo, inclusive devo tê-lo promovido umas duas vezes, quando ele era funcionário do Itamaraty por indicação de seis ou sete coordenadores. Não tenho nada a comentar sobre os ditos dele a meu respeito.  Minhas críticas são de ordem política e não pessoal, e a partir das ideias dele sobre a política externa publicadas em seu blog. Principalmente ao artigo sobre o Trump de que discordo totalmente. Talvez eu tenha feito alguma metáfora um pouco forte que possa tê-lo incomodado.

EC – E que críticas exatamente o senhor faz?
Amorim – Mas na verdade, o que eu quis dizer é que há um retrocesso, não apenas um retrocesso em relação ao que representou o governo Lula, em termos de política internacional e projeção do Brasil no cenário mundial. Mas existe um retrocesso, ao menos anunciado na retórica do futuro governo, em relação aos governos anteriores, de Fernando Henrique Cardoso, Itamar, Collor, Sarney e até mesmo aos governos militares.

 EC – Inclusive o senhor atuou nesses governos anteriores como diplomata e embaixador.
Amorim – Sim, fui embaixador na ONU com muito orgulho. Nunca me envergonhei do Brasil. Uma vez ou outra discordei lá de alguma instrução. Isso acontece, mas talvez até mais por alguma questão de ênfase do que propriamente de orientação. Uma ou duas exceções. E, trabalhei em postos multilaterais, que têm de focalizar os interesses do Brasil. E, no governo Itamar eu fui ministro. E nem se tratava de um governo de esquerda, mas de centro, com viés nacionalista.

EC – Inclusive, do ponto de vista prático e pragmático, nem os governos Lula e Dilma foram de esquerda, na pratica sempre estiveram ao centro ou centro-esquerda?
Amorim – Enfim, é o que as pessoas dizem e acabou se convencionando no debate.

EC – E essa mistura de questões de estado com religião evocados pelo próximo governo?
Amorim – Eu não tenho nada contra os valores do cristianismo, mas essa mistura de religião dogmática com política é algo que incomoda muitíssimo. Isso poderia ser com qualquer religião: islã, judaísmo, cristianismo, qualquer uma. Esperemos que o Brasil não passe a viver em um estado teocrático. Eu acho muito incômodo você ouvir dizer, por exemplo, que “a esquerda combate o sexo heterossexual porque não quer que venha um novo messias” ou coisas assim. São coisas difíceis de encaixar como minimamente críveis.

"O Brasil é o único país do mundo que acredita que o comunismo é uma ameaça"

Foto: Marcus Perez/ CUTRS

“O Brasil é o único país do mundo que acredita que o comunismo é uma ameaça”

Foto: Marcus Perez/ CUTRS

EC – Mas esse tipo de pensamento também não está sendo levado para a política externa?
Amorim – E, falando mais especificamente da política externa, fica difícil de aceitar que o Trump possa ser o modelo para o Brasil. Primeiro, porque esse modelo é irreplicável para qualquer outro país, porque a própria denominação América First (América Primeiro) é por si só excludente. O que se faz lá, sob essa concepção, só vai beneficiar os Estados Unidos e mais ninguém. Não dá para pegar carona nessa política. Há uma contradição, em termos, nessa posição e nessa visão de que o ocidente está ameaçado e que o Trump seria o modelo e a China maoísta seria o inimigo.

EC – Muitas simplificações e busca de inimigo único pra compor uma retórica populista?
Amorim – Há uma porção de concepções de que discordo totalmente. É óbvio que o governo Temer já tinha sido, digo já no pretérito perfeito, ou mais que perfeito, que é como se tivesse acabado, né?  A política externa do governo Temer já havia deixado de lado muitas das posições do governo Lula e Dilma, quando se trata de política externa, em que a defesa do interesse brasileiro e a diplomacia são pontos comuns. Mas diria que no governo Temer houve uma regressão mais por abandono do que por convicções. Tirando talvez a questão da Venezuela e do Mercosul, que tiveram posições claramente negativas e ideológicas do que em outros países, que foram pautados pelo descaso.

EC – E um negativo demarcatório?
Amorim – Venezuela e Mercosul eu diria que sim. A exclusão da Venezuela do Mercosul, o isolamento do país, a pouca prioridade dada à integração sul-americana em geral. Não tanto no Mercosul, mas na Unasul, por exemplo, que foi desativada. Em tudo isso houve retrocesso. O Brasil não tomou mais nenhuma iniciativa importante em relação aos Brics. Houve até visitas, mas nada de relevante. Nada importante em relação à África. Na parte da defesa, teve essa negociação entre Embraer e Boeing, que é um desastre do ponto de vista da soberania nacional e da tecnologia brasileira. Mas digamos assim, as coisas não eram tão verbalizadas. (Nota de redator: União de Nações Sul-americanas (Unasul) é um bloco que reunia os doze países da América do Sul: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela)

EC – Existe uma retórica do retrocesso?
Amorim – O que está acontecendo agora, no que foi dito, e do que está sendo feito, mesmo antes do novo governo ser empossado é muito diferente. Você dizer que vai transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, por exemplo, é algo que não é A, B ou C, não é contra a Palestina, é contra a ONU, contra todo mundo.  Os únicos que pensam diferente são os Estados unidos e a Guatemala. O Brasil se torna caudatário de uma política absolutamente voltada para algo que é uma mistura de religião com interesse em lobby. É difícil de definir. Mas, mesmo as pessoas da comunidade judaica brasileira com quem me relaciono e que possuem relações orgânicas com a comunidade nunca fizeram qualquer lobby ou pensaram nisso. Isso vai contra toda uma perspectiva do processo de paz no Oriente Médio.

EC – E o episódio dos cubanos?
Amorim – Essa questão com relação à Cuba vai deixar desassistidos milhares, senão milhões de brasileiros a partir de preconceitos. Cuba, na realidade, faz uma excelente medicina. Os médicos vão a lugares onde ninguém vai. E não é só no Brasil, eles vão na Etiópia, na África do Sul, numa prática sabida e conhecida, inclusive por pessoas que não simpatizam com o regime cubano. Que se existe uma área em que eles fizeram bastante progresso na área de saúde. Eu conheço isso desde a época do Ministério da Ciência e Tecnologia, em que eu trabalhei no governo Sarney e vamos combinar que o Sarney não era comunista, né? Eu estive em Cuba, fizemos acordos na área de saúde e biotecnologia. São exemplos bastante evidentes desse retrocesso. Tem também as declarações do futuro ministro da Economia, de que a Argentina não é prioridade, de que o Mercosul não é prioridade. Tudo isso choca muito.

EC – E esse conceito estranho, de que fala o futuro ministro das Relações Exteriores, de combater o “globalismo” como se fosse uma conspiração esquerdista mundial?
Amorim – Me parece uma coisa muito exótica. Como se a globalização fosse inventada por uma conspiração marxista. Até os partidos comunistas europeus eram muito críticos à União Europeia, por exemplo, muito embora isso tenha mudado. Então, uma coisa dessas não tem nada a ver com a realidade. É uma invenção. O Brasil é o único país do mundo que acredita que o comunismo é uma ameaça. Repito: é o único!

EC – Qual o efeito prático que esse tipo de política baseada em delírios e invenções pode ter a curto, médio prazo?
Amorim – Possibilidade de ganho econômico eu não vejo nenhuma. Eu prevejo muito prejuízo. A questão dos árabes, por exemplo, já teve o gesto do Egito, cancelando a visita do ministro atual. Obviamente esse tipo de coisa afeta as relações comerciais. É claro que o comércio tem sua lógica própria, mas ela se assenta numa relação política. Essa questão da embaixada em Jerusalém obviamente terá impacto. O Brasil é hoje o maior exportador de carne cortada conforme os preceitos muçulmanos. E isso outros poderão fazer. Não se trata de uma tecnologia secreta. Qualquer país pode abocanhar esse mercado. Vale lembrar que o Brasil tem historicamente um altíssimo saldo comercial com os países árabes e islâmicos, porque tem o Irã também, que não é árabe, e com o qual o Brasil também mantém relações de exportação. Aliás, poderia exportar muito mais. Também teve as declarações sobre a China. Algumas coisas talvez parem na retórica. Mas, em outras, a retórica tem um efeito importante.

"Nos governos Lula tivemos boas relações com os EUA. Mas essa relação estreita, para não dizer íntima e carnal, declaradamente subserviente parte de uma visão estratégica de que nós somos subordinados a esse projeto de mundo. Como se o Trump tivesse vindo à Terra para melhorar o mundo"

Foto: Agência Câmara

“Nos governos Lula tivemos boas relações com os EUA. Mas essa relação estreita, para não dizer íntima e carnal, declaradamente subserviente parte de uma visão estratégica de que nós somos subordinados a esse projeto de mundo. Como se o Trump tivesse vindo à Terra para melhorar o mundo”

Foto: Agência Câmara

EC – A China convidou o PSL e o governo Bolsonaro a conhecer o sistema chinês.
Amorim – Os chineses são pragmáticos e vão tentar manter. Mas eu fico preocupado com essa relação com os EUA.

EC – Por quê?
Amorim – Nós, durante o governo Lula, tivemos excelente relação com os Estados Unidos. O presidente Bush (Filho) esteve aqui duas vezes e colocou um capacete da Petrobras na cabeça, uma coisa que eu jamais imaginaria que um presidente americano faria. Ele foi visitar um terminal de etanol. Nós não tivemos más relações com os EUA, foram boas, mas essa relação estreita, para não dizer íntima e carnal…

EC – Subserviente?
Amorim – Declaradamente subserviente, porque parte de uma visão estratégica de que nós somos subordinados a esse projeto de mundo. Isso é declarado, como se o Trump tivesse vindo à Terra para melhorar o mundo.

EC – Se a América vem em primeiro é obvio que o Brasil é secundário. Seria isso?
Amorim – (Risos) Isso nos enfraquece muito. Um grupo como os Brics, e já ouvi essa expressão, países que fazem parte passam a ver o Brasil como um Cavalo de Troia. Então, o prejuízo que há na confiança e na credibilidade do país é enorme. E, óbvio que com ou sem Brasil esse grupo seguirá existindo. Por outro lado, é difícil imaginar que a classe empresarial que possui negócios com os países sobre os quais foi gerada polêmica possa ser prejudicada com essas medidas sem que se manifestem em contrário e exerçam pressão política.  A Rússia, por exemplo, o Brasil chegou a vender muita carne para eles. E pra se chegar nisso houve muita conversa diplomática e esforço envolvidos.

EC – Muitos produtores inclusive, do setor da agroindústria também saem perdendo. Como fica isso? Aliás, um setor que ganhou com os governos do PT.
Amorim – Quem mais ganhou com o governo Lula economicamente foi o agronegócio. As exportações aumentaram brutalmente para o mundo árabe, para a Rússia, para a China. A agroindústria ter se voltado contra o PT é uma coisa meio incompreensível. Por que eles têm uma posição tão crítica ao PT e às esquerdas em geral? Mas, tudo bem, isso é possível. Mas não é uma oscilação como houve entre Fernando Henrique e Lula, se tivesse voltado para uma coisa tipo Fernando Henrique, tipo Alckmin. Eu não seria a favor, mas seria compreensível. O que está havendo é uma coisa muito diferente. Eu vou evitar qualificativos e adjetivos, mas eu acho que há aí sim, nem vou chamar de retrocesso, porque não encontro paralelo. Simplesmente não há paralelo em termos de verbalização do momento que estamos vivendo. No comecinho governo militar – não falo da parte interna, mas da externa, falo das relações internacionais – teve aquele negócio das fronteiras ideológicas. Mas poucos anos depois mudou, o Brasil já estava se abstendo da resolução sobre Cuba, com quem nunca rompeu relações e nunca dificultou nem se falou nada que criasse problemas com a relação com a União Soviética. Tinha até uma divisão do Itamaraty, que se chamava Coleste, que travava com os países do Leste Europeu, que se diziam comunistas. E, isso, no regime militar.

EC – Havia mais equilíbrio?
Amorim – Nós tínhamos uma visão de um mundo equilibrado. Não era um mundo pra todo mundo fazer só o que a China quer, que a Rússia quer ou os Estados Unidos. Não, pelo contrário. Haviam relações fortes com os Estados Unidos. Eu me lembro de uma conversa com a Condolezza Rice de que era importante ter uma cooperação Brasil e Estados Unidos na África para equilibrar outras influências também. É um jogo como é o jogo da política internacional. Não é você se colocar totalmente nos braços de um ou de outro. Ainda mais um país grande como o Brasil. Ainda se fosse um país pequeno do Caribe ou da América Central seria mais difícil ter uma política que o torna mais independente. Mas para o Brasil isso não é opção, trata-se de uma necessidade. Nós temos dez vizinhos. Haverá sempre um pluralismo na região. Vai ter sempre um, cujo regime não é o mais querido pelos nossos governantes. Um exemplo disso é que no governo Lula nós tínhamos excelente relação com o Uribe, na Colômbia. Nunca houve problema. Muito pelo contrário, e ele sempre vinha para o Brasil e não havia qualquer mal-estar. Então, todo esse mito de ser anti, de ser contra, de sempre procurar alguém que você precise odiar ou detestar, sinceramente, isso para mim não me convence nem nas relações pessoais, humanas, da política interna e muito menos na política internacional.

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