GERAL

A reinvenção do sindicalismo

Por César Fraga / Publicado em 6 de dezembro de 2018
“Os sindicatos são o instrumento capaz de recolocar os trabalhadores em movimento para, de forma organizada, defender e construir seus direitos de proteção à vida, às condições de trabalho, à saúde, ao patrimônio, diante das transformações que estão ocorrendo na economia”

Foto: Igor Sperotto

“Os sindicatos são o instrumento capaz de recolocar os trabalhadores em movimento para, de forma organizada, defender e construir seus direitos de proteção à vida, às condições de trabalho, à saúde, ao patrimônio, diante das transformações que estão ocorrendo na economia”

Foto: Igor Sperotto

Na manhã do dia 27 de novembro, o diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o economista Clemente Ganz Lúcio, palestrou para lideranças e todas as centrais sindicais na sede do Sindipolo, em Porto Alegre. Na ocasião, falou de forma um tanto apocalíptica sobre as novas tecnologias, principalmente a inteligência artificial que estabelece novas relações de trabalho e da necessidade de o sindicalismo renovar sua atuação e suas bases. Ele alertou os dirigentes sindicais para as profundas mudanças que estão em curso na economia, na política e sobre as consequências no movimento sindical. “Os sindicatos como conhecemos hoje estão com data marcada para morrer”, afirmou. O economista observou também que o capitalismo mudou no Brasil e no mundo e que os sindicatos estão sendo marginalizados no processo. Segundo ele, os nossos sindicatos estão se transformando em entidades de aposentados pela baixa participação dos jovens e das categorias informais e precarizadas. Depois da palestra, Ganz Lúcio conversou com exclusividade com Extra Classe sobre a necessária reinvenção dos sindicatos para sobreviver nesse contexto adverso

Extra Classe – Por que o sindicalismo como conhecemos hoje está com data marcada para morrer?
Clemente Ganz Lúcio – Há uma mudança profunda no sistema produtivo. As empresas estão se transformando a partir de uma mudança na sua propriedade. Fundos de investimento passam a adquirir as empresas e a reorganizá-las para que elas produzam outras coisas. Essa produção implica  uma organização econômica que entrega para o acionista, o novo dono da empresa, um retorno econômico diferente do que entregava antes. O acionista quer tirar muito mais do resultado da empresa do que o proprietário antigo. Isso quer dizer que o investimento e a lógica da empresa mudam, porque ela quer entregar para o acionista mais lucro. O capitalista anterior queria investir o lucro e ver a empresa crescer. Já esse novo dono quer retirar o máximo para ele, como retirada individual. Isso muda a lógica.

EC – Inclusive, no setor de educação, isso vem ocorrendo.
Ganz – Em todos os setores. Mas se pegarmos aqui no Brasil, a Kroton está comprando todo o setor privado de educação. Que é um grande negócio. E, agora, por exemplo, eles vão disputar o estado e conceder ao setor privado a tarefa de executar parte da educação pública. Essa é outra parte da disputa que será feita, assim como, imagino, ocorrerá no setor de Saúde.

EC – A inovação tecnológica está a serviço dessa lógica da aceleração?
Ganz – Sim, pois a lógica da empresa se altera. E uma das dimensões que acelera a produção de rentabilidade para o investidor é a inovação tecnológica, que sofre um processo de aceleração, ou seja, há muito recurso mobilizado para inovar, a inovação está criando mudanças disruptivas. Nós estamos saindo de um padrão que a gente conhece para um padrão que a gente não conhecia. Mais que um padrão de produção novo, é um padrão de relações sociais, do uso da tecnologia no nosso cotidiano e que também altera o que as empresas produzem. A gente pensa no geral como a tecnologia na indústria, como o braço mecânico lá na linha de montagem, sempre colocando o vidro no carro. Mas é muito mais do que isso. A gente agora pode entrar no supermercado – já tem testes no Brasil –, encher o carrinho, sair sem ter contato com outros humanos e os produtos são debitados sem passar por nenhum caixa, coloca as compras dentro do carro e vai embora. Aquilo que você coloca dentro do carrinho será debitado do seu cartão de crédito. A consequência dessa tecnologia é que aquele produto, quando é retirado da prateleira, gera uma informação para a empresa que produz e ativa toda a cadeia de abastecimento para repor. Assim, a organização do processo produtivo e de circulação da informação é feita sem que nenhuma pessoa participe, apenas a inteligência artificial. Não é só a indústria que está em transformação, o comércio também está, assim como o setor de serviços, a agricultura e o setor público.

EC – Por exemplo?
Ganz – Tem o Watson, por exemplo, que é uma plataforma cognitiva, um recurso de inteligência artificial que faz processos na Justiça, inclusive processos trabalhistas. Ele produz uma peça na Justiça para defesa. Em frações de segundos, gera uma peça para dizer ao reclamante se os argumentos são os que os juízes estão aceitando e qual o percentual de êxito na ação. Aí a pessoa avalia, inclusive, com base em qual tendência, com determinados juízes ou comarcas, a partir de decisões anteriores, conforme critérios utilizados. E isso já é disponível hoje e usado em escritórios de advocacia. O custo deste advogado artificial são frações do custo de um advogado, mas tem uma empresa por trás disso que vai ganhar com essa ação. Portanto, a taxa de riqueza acumulada por esse escritório que vai ter advogados artificiais e um ou dois proprietários é um negócio monstruoso. No setor público, gradativamente, a inteligência artificial vai realizar o atendimento do público para várias questões. O cidadão vai fazer o pedido de aposentadoria e talvez nem precise ir no local. Será atendido por uma máquina, que realizará o atendimento e dará a resposta sobre o que esse cidadão terá de fazer para se aposentar ou porque a pessoa não teve seu direito atendido. E estamos falando de uma máquina que pode, no limite, fazer um atendimento melhor do que uma pessoa.

EC – Novo padrão?
Ganz – Alguns já devem ter recebido a ligação do atendente virtual da telefonia móvel: “aqui é o Robert, teu atendente virtual”. É uma máquina que tá ligando e dizendo “você esqueceu de pagar a conta, quer pagar?” Então, essas mudanças são disruptivas, porque elas rompem com o padrão que a gente tinha. Colocam uma nova situação no processo produtivo. Essa nova situação será operada por trabalhadores que estão promovendo isso, realizando essas mudanças. Esses trabalhadores que estão produzindo essas mudanças estão construindo um novo mundo do trabalho e em geral esses trabalhadores não estão no sindicato.

EC – Esse profissional é o mesmo que trabalha a distância?
Ganz – Bom, aí tem o trabalhador que está no tipo de inserção ocupacional diferente, vínculo diferente, jornada diferente.  Quem é o patrão do motorista de Uber? É uma máquina. Tem pessoas por trás dele? Tem. São os donos da empresa e não aparecem. Quem opera o Uber? Quem define para o taxista se vai fazer A, B ou C? Uma máquina. O patrão com quem ele se relaciona é uma máquina. É um mundo radicalmente diferente. Como um sindicato imagina que vai representar o motorista de aplicativo?

EC – A própria demissão é arbitrária.
Ganz – Exato. É a máquina que decide. O cara estava com três estrelinhas e baixou para duas, caiu a avaliação, o cara está fora do jogo. Foi desligado e não tem a quem recorrer, porque é uma máquina que está tomando a decisão com critérios. Como um sindicalista negocia com uma máquina? Negocia o quê? De que jeito? Qual a agenda do trabalhador do Uber? Talvez esse trabalhador, neste momento, no Brasil, nem queira um sindicato. Em outros países já perceberam a necessidade de criar seus sindicatos. Mas qual a pauta desse trabalhador? Esse cara trabalha de 12 a 24 horas num dia para fazer a féria dele e ter condições de permanecer em pé. A agenda dele provavelmente não é a nossa agenda. Esse cara vai precisar ter uma taxa de retorno para poder comprar um carro novo. Isso significa que a cada três anos esse trabalhador transfere seu patrimônio para Uber e fica pobre. Há uma nova situação que criou um tipo de relação que nós desconhecemos e que precisa reinventar uma nova proteção.

EC – E o sindicalismo convencional?
Ganz – Esse sindicalismo que nós temos protege o mundo do trabalho que está em mudança e é uma mudança que se acelera. A aceleração da mudança cria um novo ambiente que o sindicato atual talvez desconheça e cuja agenda que precisa ser construída vai ser construída por esses trabalhadores que estão promovendo essas mudanças, que no geral estão fora do sindicato. Portanto, a referida “data marcada para morrer” é: se esses trabalhadores não vierem para o espaço do sindicato, não recuperarem ou não inventarem uma forma de se representar para esse mundo que está em construção, a agenda desse sindicato tenderá a ir minguando.

“Parte de uma saída para uma reinvenção do movimento sindical, passa por dar oportunidades para que os jovens, esse pessoal que está entrando no mercado de trabalho, com menos de 30 anos, possa gradativamente ocupar os espaços do sindicato para construir suas agendas de negociação”

Foto: Igor Sperotto

“Parte de uma saída para uma reinvenção do movimento sindical, passa por dar oportunidades para que os jovens, esse pessoal que está entrando no mercado de trabalho, com menos de 30 anos, possa gradativamente ocupar os espaços do sindicato para construir suas agendas de negociação”

Foto: Igor Sperotto

EC – Como reinventar os sindicatos nesse cenário adverso de mudanças no mundo do trabalho, de perda de direitos no campo político e de estrangulamento da Justiça do Trabalho?
Ganz – A reinvenção dos sindicatos passa por recolocar os sindicatos como o movimento dos trabalhadores de se colocarem para enfrentar seus problemas. Portanto, as suas direções, estruturas e patrimônios são instrumentos para colocar os trabalhadores em movimento. Colocá-los diante dos problemas de forma organizada para que possam enfrentá-los. O sindicato é a forma de fazer com que os trabalhadores do Uber, por exemplo, inventem um jeito de se defender, de construir seus direitos de proteção à vida, às condições de trabalho, à saúde, ao patrimônio, que é o carro deles. Isso vai ter que inventar, pois não está dado por ser uma coisa inédita. O Uber cobra 25% de taxa por cada real que o cara faz. Não paga imposto em muitas cidades. Tudo isso são coisas inéditas. As prefeituras não sabem como resolver o problema. Os taxistas brigam com o Uber. O consumidor acha maravilhoso, porque está pagando um terço do valor de uma corrida. É um conjunto de mudanças que o sindicato precisa dar conta.

EC – Inclusive, gerando a quebra do transporte coletivo?
Ganz – Afeta o transporte coletivo e seus trabalhadores, a rede de táxis formais, afeta a receita da prefeitura, pois os taxistas pagam impostos e eles não, afeta a segurança. Quem controla a qualidade dos carros que estão rodando? O taxista formal precisa passar por vistorias, ter pneus em condições etc.; o órgão público analisa o fichamento do cara para ver se não é um bandido. Então, o sindicato vai ter de colocar essas coisas para repensar sua atuação. Ou essas pessoas vêm pro sindicato para fazer dele esse instrumento. E são esses trabalhadores que vão construir essa agenda. É o motorista do Uber que vai dizer qual é a agenda, não sou eu, nem o sindicato. O motorista de táxi tem outra agenda. O sindicato dos taxistas trabalha com o taxista formal, esse outro taxista também, está fora do jogo.

EC – E nas categorias que fazem parte dos setores que ainda seguem os modelos tradicionais de produção, também devem investir nos jovens trabalhadores?
Ganz – Exatamente. Parte de uma saída para uma reinvenção do movimento sindical passa por dar oportunidades para que os jovens, esse pessoal que está entrando no mercado de trabalho, com menos de 30 anos, possa gradativamente ocupar os espaços do sindicato para construir suas agendas de negociação, das condições de trabalho, pensar as condições de trabalho nas empresas, pensar as formas de ocupação flexíveis que estão dadas pela economia. O trabalhador autônomo, por conta própria, agora o trabalhador intermitente, com jornada parcial. Esse cara trabalha para várias empresas. O trabalhador intermitente pode trabalhar para 20 empresas, mas numa determinada semana ninguém o chama para trabalhar. Está empregado, mas não trabalha nem recebe. Como organiza isso? Como faz para representar esse trabalhador? E é óbvio que vai ter problemas, aos montes. Esse trabalhador é muito diferente do trabalhador que chega todo dia às 8 horas, entra pelo portão da empresa, e se tiver problemas faz um piquete.

EC – E tem carteira verde-amarela que pode estar por vir?
Ganz – E tem ainda a Carteira de Trabalho Verde-Amarela, que o Bolsonaro anda prometendo.  Então, como eu faço para que esses trabalhadores se coloquem em movimento para fazer com que seus problemas se transformem em uma agenda regulatória de proteção de direitos?

EC – Não se trata de uma simples volta às bases.
Ganz – É uma outra base totalmente nova. Um outro mundo. Acho, por exemplo, que o local de moradia passe a ser a referência para essa força de trabalho que talvez venha a representar 60% a 70% e que não tem mais um local físico e fixo ou dentro da empresa. Ou trabalha para vários locais fixos, ou trabalha na rua, ou trabalha mediado pelo telefone celular, prestando serviço, ou trabalha por produção e ele entrega a partir da sua casa. Existem várias logísticas possíveis. Trabalho em casa. Jornada de trabalho. Condições de trabalho. Eu costuro calças, por exemplo. Uma costureira: Quem paga a energia da máquina? Está incluído no valor/hora. Quem paga a máquina quando ela quebra? Ah, mas eu sou autônomo. Trabalho em casa e posso cuidar dos meus filhos. Mas e quando entra um pedido muito alto, coloca os filhos para trabalhar?  A gente sabe que é assim na vida real. Tem coisas que são novas, mas que surgem de velhas práticas. E nós sabemos qual é o resultado. Não necessariamente quer dizer que piora as condições de vida das pessoas. Relativamente, podem até ficar melhor. Antes, não tinham nada, agora têm alguma coisa. Tudo é relativo num país com tamanha desigualdade. A carteira verde-amarela pode significar acesso ao mercado de trabalho para 20, 30 milhões de pessoas.

EC – Quais as perspectivas para a classe trabalhadora com o governo Bolsonaro?
Ganz – Na nossa democracia, com todas as limitações, a sociedade elegeu um governante. O que é perplexo nessa situação é que a sociedade escolheu um governante que não apresentou para esta mesma sociedade o seu projeto de governo. Ou seja, nós não sabemos, enquanto sociedade, onde ele quer chegar. Sabemos meia dúzia de coisas. Mas, no geral, uma agenda que mexe nos direitos civis: na liberdade, nos limites do Estado laico – que exalta os valores da família conservadora e temente a Deus – e na questão da violência. São os três principais pontos que ele destaca.

EC – Ainda nem se sabe até que ponto o discurso se refletirá em ações cosméticas ou efetivas?
Ganz – Exato. Por outro lado, o governo é que tem por trás dele interesses econômicos pesados, interessados em se reapropriar da riqueza do Brasil e fazer um projeto de desenvolvimento econômico voltado para essa elite econômica interessada na riqueza do país, no patrimônio público e no mercado de consumo.

"Na educação, por exemplo, a Kroton, é operadora de um processo de concentração no setor privado, não mais apenas na educação superior, mas em todos os níveis, o que inclui ensino médio e fundamental"

Foto: Igor Sperotto

“Na educação, por exemplo, a Kroton, é operadora de um processo de concentração no setor privado, não mais apenas na educação superior, mas em todos os níveis, o que inclui ensino médio e fundamental”

Foto: Igor Sperotto

EC – Se as políticas só beneficiarem os setores mais voltados para as commodities, como o agronegócio e mineração, acabam por gerar mais concentração de renda e desemprego, concorda?
Ganz – Sim, isso mesmo. Setores também controlados por multinacionais interessadas em adquirir a riqueza do país, cujo efeito dessa presença pode representar um aumento do desemprego, principalmente para os trabalhadores de média e baixa qualificação. Pode ser que tenhamos setores que possam crescer em termos de empregos. Podemos ter uma integração internacional da nossa economia que a gente desconhece. Não existem paradigmas para pensar. Portanto, podemos ter nesses quatro anos mudanças que são profundas.

EC – E o setor de educação?
Ganz – Na educação, por exemplo, a Kroton é operadora de um processo de concentração no setor privado, não mais apenas na educação superior, mas em todos os níveis, o que inclui ensino médio e fundamental. Além de comprar as grandes escolas e redes, eles estão lançando um novo serviço de assistência às escolas. Ou eles compram e dominam ou eles prestam consultorias para reestruturar o negócio. Na prática, um sistema que também permite criar escolas associadas à Kroton como um sistema de franchising. Algo semelhante ao Mc Donalds. Vende a marca, mas cada loja precisa seguir o padrão estabelecido para o uso. A dona da marca dita as regras e define quanto ela retira em percentuais do negócio. A parceira tem todos os riscos e a dona da marca, no caso a Kroton, tem o percentual dela garantido. Como o Uber.

EC – É a chamada uberização? Em que consiste?
Ganz – Sim. A uberização da economia tende a transformar toda a estrutura econômica vinculada a centros de negócios, que são controlados por interesses, no geral, muitas vezes mediados pelas máquinas e por inteligência artificial.

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