GERAL

Infância dilacerada

Abuso infantil: “em 90% dos casos atendidos o acusado é uma pessoa conhecida”, afirma a pediatra Maria de Fátima Fernandes Gea, coordenadora do Centro de Referência no Atendimento Infanto-juvenil (CRAI)
Por Cristina Ávila / Publicado em 14 de maio de 2021

Foto: Freepik

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Um dos mais antigos conselhos de mães é ensinar seus filhos a não falarem com estranhos. Mas os conhecidos podem ser as piores pessoas. Com papo divertido, o vizinho bonzinho sabe armar infalíveis ciladas. Foi o que aconteceu com uma menina de 12 anos moradora na região metropolitana de Porto Alegre, filha esclarecida de pais de classe média, profissionais de nível superior. Quando ela descobriu que estava enredada por um pedófilo, era tarde para escapar. Um romancinho adolescente se transformou na mais desesperadora experiência de horror. Não viu saída.

“O que meus pais vão pensar de mim?”, se perguntou a jovenzinha, sentindo-se culpada por ter trocado com um homem mensagens das quais se envergonhava. A culpa foi maior do que a confiança que poderia ter tido nos próprios pais – que a abraçaram imediatamente, quando souberam do drama que vivia.

“A chantagem sobre a criança, o segredo estabelecido, é muito difícil de ser quebrado. É fundamental o trabalho de educadores e educadoras, em quem a criança confia. Salvamos vidas”, observa a deputada Maria do Rosário (PT/RS), professora e uma das autoras da Lei 13.431/2017.

Essa legislação federal estabeleceu um sistema que permeia a rede de atendimento público às vítimas, em que se destacam o que se denomina “escuta especializada” e “depoimento especial”, os quais passaram a ser feitos em ambientes seguros, por profissionais capacitados para esse tipo de trabalho e de modo que a vítima seja ouvida uma única, ou pelo menos o mínimo de vezes, durante todo o processo de acolhimento e investigação.

A gaúcha ex-ministra de Direitos Humanos (2011/2014), ativista dos direitos da criança e do adolescente no parlamento, enfatiza que a pedofilia acontece em todas as classes sociais, nos mais diversos ambientes, até mesmo de cultos religiosos, e a escola é uma das primeiras instituições com chances de fazer o alerta.

“Por isso a ideia de homeschooling é de extrema violência contra crianças, nega direitos e nega proteção integral”, ressalta, referindo-se à proposta que dá direito aos pais de ensinarem filhos em casa, prescindindo do sistema formal de educação.

A família dessa menina de 12 anos não quer se identificar, por medo de que as reações das pessoas aumentem ainda mais o sofrimento que a destroça. A mãe só descobriu a verdade quando a menina se viu obrigada a revelá-la, diante de uma consulta médica. Precisava fazer um acompanhamento de rotina, pedido no ano anterior pela ginecologista por causa de um desequilíbrio hormonal próprio da idade.

Vergonha, medo e chantagem na infância

Deputada Federal Maria do Rosário

Foto: Twitter/ Reprodução

Deputada Federal Maria do Rosário

Foto: Twitter/ Reprodução

Foi por vergonha e medo que ela acabou cedendo às chantagens do irmão de uma amiga, dez anos mais velho do que ela. A mãe relata que sua filha única chorava todos os dias encerrada no quarto, mas insistia em se livrar de perguntas justificando que estava deprimida por causa do isolamento imposto pela pandemia.

“Ele a chantageava com as mensagens. ‘Ela me disse: “Mãe, eu não queria… Tanto que ele ameaçou de me esmurrar porque eu não me mexia no momento em que fez o que fez comigo… eu não queria’.”

A deputada Maria do Rosário enfatiza “um marco para o enfrentamento dessas situações” – o 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, instituído pela Lei Federal 9.970, de 2000. Nessa data, foi executada Araceli Cabrera Crespo, aos 8 anos, raptada e drogada, que teve o rosto destruído por estupradores, em Vitória (ES). Ela era filha de um operário e uma dona de casa. Passados 48 anos, sua história ainda impacta a capital capixaba, por serem os algozes comerciantes com influência política, o que interferiu nas investigações e no julgamento do caso.

De acordo com Maria do Rosário, o 18 de maio se consolidou a partir de ampla movimentação nos anos 1990 para reforçar o cumprimento do artigo 226 da Constituição Federal que trouxe a responsabilidade do Estado, da família e da sociedade para a proteção integral dos direitos da criança e do adolescente. “Se conceituou o abuso sexual como aquele que acontece no ambiente familiar, doméstico de um modo geral, ou por pessoas que a criança conhece”, explica a deputada.

Mudam os sobrenomes das famílias, mas o drama se repete

Maria de Fátima Fernandes Gea, coordenadora do Centro de Referência no Atendimento Infanto-juvenil (CRAI), órgão da Prefeitura de Porto Alegre

Foto: Igor Sperotto

Maria de Fátima Fernandes Gea, coordenadora
do Centro de Referência no Atendimento Infanto-juvenil (CRAI)

Foto: Igor Sperotto

Anualmente, milhares de famílias enfrentam o mesmo drama. Em março de 2021, o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos (MMFDH) publicou em sua página na internet que, em 2020, as denúncias feitas por meio do Disque 100 e Ligue 180, canais oficiais do governo federal, receberam 350 mil denúncias de violações de direitos humanos, sendo 95 mil contra crianças e adolescentes. A informação não discriminou a violência sexual.

Porém, em maio do ano passado, a ministra Damares Alves disse que foram 86,8 mil casos em 2019, com aumento de 14% em relação a 2018, citando nesse caso que a violência sexual contra crianças e adolescentes chegou a 17 mil denúncias em 2019.

E salientou que estudos acadêmicos apontam que somente 10% são notificados, o que levaria a quase 1 milhão de casos de violência contra menores de 18 anos. Em sua opinião, a realidade é ainda mais subnotificada, pois é silenciosa.

A ministra desconfia especialmente dos números da pandemia, quando, em abril de 2020, houve queda de 17,1% nas denúncias gerais de violência contra crianças e adolescentes.

“Quando as portas das casas começarem a se abrir e a gente começar a receber as crianças nas escolas e nas creches, o que nos aguarda?”, questionou.

Nessa matéria publicada pelo MMFDH em maio do ano passado, a maioria das vítimas era de meninas entre 4 e 11 anos de idade (55%), e a autoria de violências gerais recaía sobre a mãe (52%). Contudo, ao se referir à violência sexual, os acusados eram padrastos (21%), pais (19%), mães (14%), tios (9%) e vizinhos (7%).

90% dos abusadores são pessoas próximas

“Em 90% dos casos que atendemos, o acusado é uma pessoa conhecida”, afirma a pediatra Maria de Fátima Fernandes Gea, coordenadora do Centro de Referência no Atendimento Infanto-juvenil (CRAI), órgão da Prefeitura Municipal de Porto Alegre em parceria com o Governo do RS, que funciona no Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas.

“Esse serviço completa 20 anos neste ano. É pioneiro e referência nacional. Único no Brasil que tem a configuração de trabalho de três entes públicos em um mesmo local: o município de Porto Alegre, representado pelos funcionários de saúde que são psicólogos, médicos e assistentes sociais, e a Secretaria de Segurança Pública do Estado, representada pelo Departamento Médico Legal (DML) e Polícia Civil”, explica a médica. Todos os profissionais têm treinamento e formação específica para tratar das vítimas.

Esse CRAI prestou 1916 atendimentos em saúde no primeiro trimestre de 2021 e foram realizados 6247 em 2020, incluindo perícias física e psíquica. As vítimas precisam chegar com boletim de ocorrência policial (PM).

O órgão também encaminha medidas futuras a serem tomadas. Maria de Fátima chama a atenção dos pais para evitar abusos: “Não significa que não vamos confiar em ninguém. O que não se pode é terceirizar o cuidado dos filhos”. A capital atende todo o estado, mas há serviços em outros municípios, embora bem longe de dar conta das demandas do Rio Grande do Sul.

A punição para esses crimes ficou mais próxima depois que a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito realizada em 2003 e 2004, em que Maria do Rosário foi relatora, provocou mudanças no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ela reforça, porém, a impunidade, favorecida pelo preconceito.

“Identificamos a cultura do estupro na polícia, no Judiciário, no Ministério Público, em escolas e até em Conselhos Tutelares.” Ela e a presidente da CPMI, senadora Patrícia Saboya (na época, PPS/CE), percorrem 22 estados para levantamento de situações in loco.

Mas é claro que também se aplica a Lei 13.431/2017 no Judiciário. Como relata a assistente social Mirani Dutra, especialista do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que trabalha no Fórum de Novo Hamburgo: “Sou uma das responsáveis por conduzir o depoimento especial para apuração de violência contra crianças e adolescentes”. Ela comenta que esse tipo de crime ocorre quase sem testemunhas, por estar geralmente encoberto nos espaços familiares. “A palavra da criança muitas vezes acaba sendo uma das únicas provas para compor o processo criminal, sendo o seu relato bastante valorizado para a tomada de decisões judiciais.”

Depoimento especial

Os tribunais gaúchos inspiraram a legislação, pois recorrem ao depoimento especial antes mesmo da legislação nacional.

“A audiência acontece em uma sala onde ficam apenas o entrevistador (psicólogo ou assistente social) e a criança/adolescente, que estará resguardada de todas as outras pessoas. O juiz e as demais autoridades acompanham a entrevista através de uma câmera que faz a transmissão em tempo real. As perguntas são feitas ao entrevistador por meio de um fone de ouvido”, relata Mirani Dutra.

“Muitas crianças, adolescentes e seus familiares deixam de recorrer à polícia por medo de enfrentar o acusado no Judiciário”, conta a assistente social. “Mas a Lei 13.431/2017 traz uma série de dispositivos para garantir a proteção e evitar que outras violências venham a acontecer, impedindo o contato físico ou visual com o acusado durante a audiência, inclusive oferecendo medidas protetivas de afastamento do agressor.”

Mirani Dutra explica que a legislação é regulamentada pelo Decreto 9.603/2018, o qual determina a constituição de comitês de gestão colegiada em estados e municípios, como já acontece em Novo Hamburgo. Ela acentua que denunciar é dever de todos, mesmo sem evidências concretas e que a educação sexual é obrigação desde a primeira infância.

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