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Pessoas trans são expulsas dos espaços de estudo, de trabalho e de moradia, acentua Dodi Leal

Em entrevista exclusiva, a artista, professora e pesquisadora conta sobre sua trajetória, da infância ao doutorado na USP e à docência na UFSB, com destaque para sua transição de gênero
Por Cristiano Goldschmidt / Publicado em 17 de maio de 2021

Foto: Reprodução Facebook GPD Cult/Unicamp

Foto: Reprodução Facebook GPD Cult/Unicamp


O Dia Internacional Contra a Homofobia é celebrado anualmente em 17 de maio, também conhecido como Dia Internacional de Luta Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. No dia 15 de maio, sábado, comemoramos o Dia do Orgulho Travesti e Trans. Em celebração às datas, o Extra Classe entrevistou Dodi Tavares Borges Leal, artista e professora do Centro de Formação em Artes e Comunicação da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e uma das principais pesquisadoras em Artes Cênicas do Brasil na atualidade.

Nessa entrevista exclusiva, Dodi Leal fala da sua infância e da juventude, período em que, para atender aos anseios da família, graduou-se primeiro em Ciências Contábeis. Embora sempre estivesse vinculada às artes, a formação na área só veio mais tarde. A dedicação e os bons resultados acadêmicos lhe oportunizaram períodos de estudos no exterior. Sua pesquisa de doutorado – desenvolvida na USP – resultou em uma tese sobre performatividade transgênera e recepção teatral, tornando-se referência internacional nos estudos das artes cênicas e de gênero.

Ao falar sobre as dificuldades que as pessoas trans enfrentam desde cedo para concluírem os estudos e se inserirem no mercado de trabalho, Dodi lembra que ela mesma, mulher trans, iniciou sua transição de gênero há poucos anos, já na fase adulta, justamente quando cursava seu doutorado. A transição tardia permitiu que concluísse os seus estudos, não sem dificuldades e preconceitos, que infelizmente permanecem na sua rotina mesmo depois de ter passado em concurso para o cargo de professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB): “As pessoas trans são expulsas dos espaços de estudos, dos espaços de trabalho, expulsas do espaço de moradia. É difícil ser inquilina trans. A gente sofre. Até hoje eu passo por isso. Mesmo sendo concursada, doutora, branca, eu ainda gero desconfiança nas locadoras de imóveis. Justamente porque eu fujo à norma cis normativa. Acham que eu não tenho poder aquisitivo, ou que eu não tenho compromisso e responsabilidade com o próprio aluguel”.

Extra Classe – Como começou tua trajetória?
Dodi Tavares Borges Leal – Eu costumo dizer que a minha trajetória começa comigo e com as pessoas que vieram antes de mim, tanto aquelas consanguíneas, como aquelas que se matriciam com a minha presença no mundo, sem formar necessariamente esse conceito de família genealógica. Falo em outras “transcestralidades”. Mas falando propriamente do meu nascimento e da família genealógica, eu nasci no Ipiranga, em São Paulo, em 1984. O Ipiranga é um bairro de resistência nordestina. A minha família por parte de pai veio do Piauí, em finais dos anos 1970, e a família por parte de mãe é de ascendência espanhola e portuguesa de imigração do início do século XX. Então, a primeira constatação que eu tive na minha tese de doutorado, há quatro anos, foi a de que as raízes que eu tinha em São Paulo eram da minha geração, porque embora a minha mãe também tenha nascido lá, as gerações anteriores, como minha vó, meu vô, já não tinham essa ligação com a cidade, porque não nasceram e não vieram de lá. Só foram para lá. Por parte de pai também. Minha família piauiense é indígena, nunca saiu do Piauí. Com meu pai, minhas tias, vó e vô foi a primeira vez que teve essa saída.

EC – Qual a relação da história da tua família com a tese de doutorado?
Dodi – Na minha tese de doutorado, pude ter o financiamento necessário, por bolsa, para poder viajar para a Europa, até o sul da Espanha, até o norte de Portugal e até o sul do Piauí, para poder ouvir as histórias desses lugares, compreender melhor como a minha poética e o meu trabalho enquanto performer dialogam com essas matrizes, seja apreciando, seja criticando. É dialético. Então, não é só negar as origens genéticas para afirmar a “transcestralidade”, e sim fazer uma composição, uma colagem dessas referências todas. Um pouco dessa bricolagem que eu sou. Como se vê, só depois de muito tempo, acho que aos 32 anos, eu fui ter contato com essas noções, com essas verdades da história da família. Não porque eu não soubesse antes das procedências, mas porque pude ir até esses locais.

EC – Desde quando você se percebeu como artista?
Dodi – Minha infância, com relação às artes, é muito interessante. Eu já tinha uma vontade de criação artística gigantesca, e a única referência que eu tinha, como espectadora, era a televisão. Eu brincava de ser dona de uma emissora de televisão. E essa ligação, essa fruição da televisão, foi para mim, durante muitos anos, a referência de arte. Só depois, quando eu entrei no ensino médio, houve a oportunidade de fazer parte de um grupo teatral, que se apresentou no Festival Cepacol de Cultura e Esporte, onde felizmente ganhamos primeiro lugar com uma peça da escola. Estava com 14 anos, e para mim foi muito importante esse espetáculo e esse prêmio, porque ele me motivou, mostrou que eu tinha que investir mais e que tinha que estudar muito mais também. Só que eu não tinha apoio familiar naquela época.

EC – Há pouco você falou em transcestralidade. Pode falar sobre esse conceito?
Dodi – A transcestralidade é uma forma de a gente perceber as nossas matrizes de origem e de relação subjetiva, territorial e até mesmo estético-política com pessoas com as quais a gente se vincula e não são necessariamente nossa família genética. Então, nós, pessoas transvestigêneres, sempre costumamos nos referenciar àquelas outras pessoas trans que vieram antes de nós. Na minha tese, eu criei o conceito de “árvore transgênero-alógica”. Tem a árvore “cisgênero-lógica”, que segue mais ou menos a ideia da “árvore genealógica”, onde a gente vê um reprodutivismo da espécie sendo o tom das composições cisnormativas e também heteronormativas das relações afetivas. E a “árvore transgênero-alógica” é um matriciamento “transcestral”, que não é necessariamente só uma ligação com outras pessoas trans que vieram antes da gente, mas na minha tese eu até advogo que é um devir poético sobre a nossa genealogia, criando relações onde supostamente não era provável. Por exemplo, uma das coisas que eu fiz na minha pesquisa, foi me relacionar com Garcia Lorca e com Antônio Machado, porque minha bisavó e meu bisavô por parte de mãe nasceram na mesma época dos dois. A minha bisavó, ou meu bisavô, não lembro qual a ordem, um nasceu exatamente na mesma região do Garcia Lorca e tem o mesmo sobrenome Garcia. E a outra parte nasceu na mesma região e época do Antônio Machado, parece até que no mesmo ano, e com o mesmo sobrenome.
Então eu consegui, com esse devir poético, me ligar à história. Veja como também foi interessante, o Garcia Lorca se colocava como gay, numa época em que a gente via uma intensa perseguição, e ele até morreu por causa da perseguição de Franco. E vejo que a desobediência de gênero, o que a gente hoje chama de trans, também pode se vincular a uma “transcestralidade” do “Gaycia” Garcia Lorca, como uma grande “transcestral”, uma figura que a gente tem que reverenciar pela sua luta. Então, nessa matriz, eu o coloco como meu bisavô, também meu “transcestral”.

EC – Ou seja, é uma espécie de busca, de reencontro ou de resgate das tuas origens e da tua identidade.
Dodi – Sim. E quando eu me mudei aqui para o sul da Bahia para trabalhar, eu também pude resgatar essa minha relação com o Nordeste. Da minha família que foi do Piauí para São Paulo, eu sou a primeira a voltar a morar efetivamente no Nordeste. Não é no Piauí, eu estou no sul da Bahia, mas é próximo. Eu sinto, de alguma forma, que também é uma missão da minha geração, fazer o contra fluxo, retornar ao Nordeste, entender essas matrizes. Eu morei praticamente a minha vida inteira em São Paulo, e ainda que o Piauí seja um pouco distante do sul da Bahia, para mim há certa proximidade. E voltar para cá está sendo uma oportunidade incrível de mergulhar e procurar compreender a minha ancestralidade.

Eu estou num lugar em que eu queria estar, em que eu preciso estar e onde eu vou continuar. Isso é uma coisa que eu sentia muito pouco em São Paulo. Principalmente depois de muitos anos morando lá, e com todas as toxicidades da metrópole, da megalópole, do excesso de produtivismo, do excesso de urbanismo, isso tudo estava me cansando demais. Até a cena teatral, que eu admiro e admirava muito e com a qual ainda tenho conexões, acho que é abusivamente centralizadora. E eu também preciso me refrescar artisticamente com outros polos no país, justamente para tirar um pouco dessa supremacia paulistana do circuito teatral.

EC – Você fala do aspecto centralizador da cena teatral paulista. Em que sentido e em que medida essa cena é centralizadora?
Dodi – Eu acho que do ponto de vista financeiro, porque o aporte de recursos das instituições patrocinadoras, mas também do Estado ou da cidade de São Paulo, especificamente, é muito substancial. Então, acho que o financeiro é o primeiro grande ponto. O segundo é do ponto de vista do imaginário estético. Eu vejo que São Paulo está muito ligada a uma produção superlativa de estudos do futuro teatral, que me parece muito interessante, mas, ao mesmo tempo, perigoso que seja só São Paulo. Acho que o ponto é esse, essa centralidade. Não o fato da excelência. Eu vejo que São Paulo chega a muitos níveis de excelência criativa porque tem recursos. Quando eu falo que há uma centralidade financeira e uma centralidade do imaginário estético, é porque São Paulo, queiramos ou não, acaba assumindo um protagonismo nacional, o que é prejudicial para as artes. Até costumo falar que nem é eixo Rio-São Paulo, é eixo São Paulo-São Paulo, porque o Rio muitas vezes também está fora deste circuito. Eu acredito que as cartas precisam ser dadas de todos os lugares. Então não é tirar os recursos de São Paulo para pôr em outros lugares, mas aumentar os recursos da cultura para outros lugares sem precisar tirar o volume de São Paulo, que até pode aumentar também.

EC – Sair de São Paulo contribuiu para os teus processos de pesquisa e de criação?
Dodi – Essa é uma pergunta muito complexa para mim porque têm alguns aspectos em que sair de São Paulo fez com que eu até me aproximasse um pouco mais de São Paulo. Porque foi quando eu me mudei aqui para a Bahia que eu me tornei crítica teatral da MITsp, por exemplo, e ano passado fui curadora de uma das ações pedagógicas. Isso para mim foi muito importante e foi uma ação que, por mais que seja uma mostra internacional, ela também é uma mostra muito paulistana. Ela tá muito ligada ali ao circuito do teatro de grupo, da USP, tá muito ligada nas referências de onde eu vim, da minha trajetória. E eu acho que de certa forma, em algumas camadas desse circuito, eu me aproximei ainda mais quando eu me mudei aqui para a Bahia.

EC – E nos processos de criação artística?
Dodi – Do ponto de vista da criação, eu não sinto tanta dificuldade… Na verdade, sinto. Tem dois aspectos que me bloqueiam. Um deles é que a gente vive um contexto de bloqueio criativo geral, uma crise de sensibilidade, onde a arte está sendo colocada à prova por conta disso que eu tenho chamado de guerra pandêmica, dessa situação que a gente está vivendo. Então é difícil criar nesse momento. Mas também tem outro aspecto que tem me bloqueado, que é justamente o excesso de demandas da universidade. Demandas administrativas, demandas acadêmicas. Eu entreguei agora a pouco a coordenação da pós-graduação lato sensu em “Dramaturgias Expandidas do Corpo e dos Saberes Populares”. E foi, para mim, muito importante ter feito parte deste projeto e ter tido a responsabilidade da implementação do curso e da primeira turma do curso, porque ele não existia antes dessa primeira turma e antes da minha coordenação e da vice coordenação da professora Pâmela Peregrino, e agora sinto certo alívio para exercer a própria docência, porque são quarenta horas semanais. A gente precisa orientar na graduação, na pós-graduação, assumir demandas administrativas, responder por laboratórios, projetos. É muita responsabilidade. Então, de certa forma isso tem me bloqueado um pouco para a criação.

EC – Sabes da existência de outra profissional trans coordenando um curso em nível de graduação ou pós-graduação no país?
Dodi – Acho que eu sou a única. Estive por dois anos na coordenação desse curso. E agora estamos trabalhando para abrir o mestrado em Artes nos próximos anos, porque ainda não temos. Pode ser que a Luma Andrade (em 2012, Luma Nogueira de Andrade se tornou a primeira trans no Brasil a conquistar o título de doutora, concedido pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará) tenha coordenado alguma vez, mas eu não tenho certeza.

EC – Dodi, em que momento você se percebeu como mulher trans?
Dodi – Desde a infância eu tinha uma percepção de que eu era uma menina. Eu não sabia o que era uma criança trans, mas eu sempre percebi que eu era uma menina. Não tinha vocabulário, não tinha apoio, não tinha estrutura e nem referências de outras crianças, ou mesmo de outras pessoas adultas nas quais eu pudesse me inspirar. Ou, quando tinha, eram ridicularizadas, era uma vergonha, e era preciso esconder. Então, eu costumo dizer que a minha transição, publicamente, foi um espetáculo, uma estreia para o público, porque esse processo criativo já estava sendo feito há décadas, mas em público acho que foi por volta dos 27 aos 30 anos. Eu estou com 36, atualmente, então tem uns seis anos que eu transicionei. Mas antes, desde a infância, já tinha essa percepção, essa relação com a minha “mulheridade”.

EC – Você conseguiu desde muito cedo se dedicar aos estudos. O que impede que a grande maioria das pessoas trans chegue ao ensino superior e ao mercado de trabalho?
Dodi – O preconceito social. Veja como a minha situação aconteceu. Durante todo o meu percurso, na vida adulta, fui apresentada como um garoto, como um homem gay. Eu talvez só tenha conseguido concluir minhas formações porque a minha transgeneridade não era pública. Foi só durante o doutorado que eu transicionei publicamente. Cheguei ao ápice da minha carreira de estudos e aí eu rendi todo mundo. A partir daqui eu sou trans e ninguém vai poder falar nada, quero meu título. É muito interessante verificar a diferença, porque as pessoas que se afirmam trans desde muito cedo, muitas delas são excluídas. A gente até tem dito que o conceito de evasão não funciona para pessoas trans. O que acontece é expulsão mesmo..

As pessoas trans são expulsas dos espaços de estudos, dos espaços de trabalho, expulsas do espaço de moradia. É difícil ser inquilina trans. A gente sofre. Até hoje eu passo por isso. Mesmo sendo concursada, doutora, branca, eu ainda gero desconfiança nas locadoras de imóveis. Justamente porque eu fujo à norma cis normativa. Acham que eu não tenho poder aquisitivo, ou que eu não tenho compromisso e responsabilidade com o próprio aluguel. Se até hoje eu passo por isso, imagina uma pessoa trans que não é branca, que não é doutora, que não é concursada como eu. As dificuldades que essa pessoa tem são gigantescas.

EC – Tua formação vai da graduação em Ciências Contábeis até a graduação em Artes Cênicas, ambas na USP. Como é que se deu a transição de uma área para a outra?
Dodi – A contabilidade foi um desafio parecido com esse da transgeneridade. Assim como eu já tinha essa percepção concreta de que eu era uma menina, de que eu era uma mulher, de que eu era trans, mas não tinha nome e não reivindicava publicamente, eu também tinha para mim que eu era artista, que eu precisava estudar artes, mas eu não tinha o apoio da família. Antes da faculdade de Ciências Contábeis, eu fiz o técnico em Contabilidade, justamente para tentar acalmar os ânimos da família, para ter trabalho, e consegui. Mas a um custo profissional e afetivo muito grande. Eu não imaginava, por exemplo, que eu conseguiria, com tantas encruzilhadas, dar as reviravoltas que eu dei em relação às áreas. Porque muita gente acaba se prendendo em algumas áreas e não consegue ter oportunidades em outras. Eu tive que ter muita astúcia em cada passo que eu dei nesse caminho, justamente para ver as oportunidades. Então, enquanto eu fazia curso de Ciências Contábeis, fazia o técnico em Interpretação Teatral e trabalhava na Biblioteca da FEA-USP. Com 18 anos, eu tinha os três turnos ocupados. Fazia contábeis de manhã, trabalhava como alfabetizadora popular à tarde, à noite trabalhava numa biblioteca e no fim de semana fazia o curso teatral. Formei-me como técnica em Interpretação, na graduação em Ciências Contábeis e entrei na graduação em Artes Cênicas.

EC – No teu mestrado, em Controladoria e Contabilidade, você estudou a experiência do Teatro do Oprimido do município de Santo André. Como dialogar com duas áreas tão distintas?
Dodi – Durante a graduação em Contabilidade, por ter me aproximado da economia solidária, do movimento de cooperativismo, justamente porque a gente tinha um escritório de contabilidade na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo (ITCP-USP), trazendo as ferramentas da economia solidária, da contabilidade e da autogestão para grupos que não sabiam nem sequer ler, eu fiz uma relação do fazer teatral com esse contexto de economia solidária, que foi quando eu me aproximei do Teatro do Oprimido, o TO, do Augusto Boal, e pude aplicá-lo nesse contexto. Eu estudei a experiência do Teatro do Oprimido de Santo André. Na gestão do Celso Daniel e do João Avamileno, do PT, fizeram doze anos de espetáculos teatrais dentro das assembleias do Orçamento Participativo. Porto Alegre foi a pioneira do OP no Brasil. Santo André foi a segunda cidade do Brasil, e lá, especialmente, tinha o TO junto com o Orçamento Participativo. O livro da minha dissertação de mestrado é dedicado a essa experiência, do teatro nas assembleias orçamentárias. Então eu consegui, com minha pesquisa, fazer essa relação – tirar proveito da Contabilidade, já que ela tirou tanto proveito da minha vida –, e trouxe uma inovação, uma coisa que ninguém tinha feito antes, aproximar essas duas áreas. Até hoje acho que sou uma das únicas pessoas que fez essa relação da área da Economia, da Contabilidade, com a área teatral, desenvolvendo um projeto de pesquisa.

EC – Entre 2010 e 2011 você estudou cinema no Canadá.
Dodi – O Canadá foi muito interessante, porque eu me formei no Mestrado, e uma semana depois eu me mudei pro Canadá, porque eu tinha passado nesse processo seletivo de intercâmbio da graduação em Artes Cênicas que eu fazia junto na época. Fazia o mestrado em Contabilidade junto com a graduação em Artes Cênicas. E aí, eu fiz o intercâmbio em Cinema porque eu já tinha todos os créditos teatrais oferecidos lá na Université du Québec à Chicoutimi (UQAC). Dediquei-me aos estudos de cinema, o que para mim foi uma oportunidade gigantesca de aprendizado, de criar novos procedimentos, novos experimentos. Foi lá que, pela primeira vez, eu tive contato com a linguagem da performance. Eu fiz estudos ligados à performance latino-americana. Tinha uma professora colombiana, e a gente estudou a obra do Alejandro Jodorowski, da Ligia Clark, do Hélio Oiticica. Para mim, foi importante ter realizado minhas primeiras performances no Canadá, porque depois, quando eu voltei, eu mergulhei no teatro performativo, também abri uma produtora audiovisual, juntei as experiências da Contabilidade e as experiências da adolescência – que eu também levo muito à sério como estudo de público –, para ser produtora. Acabei sendo uma boa produtora, e com isso conectei as áreas de audiovisual e Artes Cênicas.

EC – Porque teu doutorado resultou na tese Performatividade Transgênera: equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral. Como é que surgiu a ideia dessa pesquisa e como foi essa experiência?
Dodi – Tudo começou com a necessidade de reivindicar minha transgeneridade na sociedade. Eu já sabia que eu faria esse percurso, mas antes dos espetáculos, dos processos e dos procedimentos de criação teatral, de simplesmente dizer publicamente “ah, eu sou trans”, eu precisava ir fundo no estudo da vida social para compreender o que significa efetivamente ser uma pessoa trans na sociedade. Naquele momento, ao fazer o doutorado em Psicologia Social, os estudos de gênero na área teatral eram muito incipientes – e olha que a gente tá falando de menos de dez anos, eu entrei em 2013, 2014 –, não tinha estudos, não tinha espetáculos, não tinha pessoas trans nos cursos universitários de Artes Cênicas. Ou se tinha, era uma coisa muito silenciada. Hoje a gente tem mais pesquisadoras. Então, eu precisei ir para uma área que pudesse me acolher melhor, e a psicologia social foi essa área, onde eu me liguei diretamente aos estudos de gênero, porque na área da saúde tem uma tradição muito maior em estudos de gênero. E ali eu consegui fazer uma relação prática com os estudos teatrais. Na tese eu faço essa narrativa onde eu pontuo a minha percepção como espectadora teatral das transgeneridades. Porque eu vi um espetáculo que era de um grupo de pessoas cis que faziam personagens trans lá na Rego Freitas, em São Paulo, que é uma rua de prostituição travesti, onde eu morava – morei cinco anos no Arouche. Eu tinha uma relação profunda enquanto espectadora com as imagens que eu via no espetáculo. Mesmo sendo trans fake, eu via e pensava “nossa, isso aqui é muito poderoso; essa força, essa imagem”. Eu falava: “mas o que está acontecendo?”. Porque não são pessoas trans, eu conhecia o grupo, eu conhecia o elenco, era amiga de algumas pessoas que estavam no elenco. E eu falava “nossa Senhora, o que é isso?” – e me sentia nua diante dessas verdades, diante dessas atuações. E aí, quando eu compreendi o dilema ético do trans fake, do fato de que, ao ocupar esse espaço, as pessoas cis acabam atacando o imaginário das oportunidades de trabalhos para as pessoas trans, eu entendi também o dilema ético do que eu estava vivendo, porque eu estava sendo despida por pessoas que se apropriaram de uma estética que não era a delas. Eu me senti nua e violentada, também, enquanto espectadora. Porque eu tive a minha experiência desnudada por pessoas que também acabaram desnudando outras pessoas. E esse é o fio condutor da minha tese, onde apresento três experiências concretas – não só essa reflexão sobre ser espectadora –, mas desenvolvo três projetos. Um deles é A Demência dos Touros, um espetáculo teatral da Cia Teatro do Perverto, que hoje chama Extemporânea; fiz também uma performance em Portugal, no período de doutorado sanduíche, na Universidade de Coimbra, que chamou Tetagrafias, onde eu me relacionava com imagens de tetas e convidava o público a se compor com essas imagens; e uma terceira ação foi uma oficina, Poéticas de gênero em interseccionalidade social. Procurei, nessa oficina, desenvolver aquilo que eu chamei de transição da área teatral do teatro para a “teatra”, a partir dos procedimentos pedagógicos espetaculares. A tese está gigantesca, mais de 500 páginas, e nesse momento estou fazendo um trabalho de edição e de adaptação para se tornar um livro, que vai ser um pouco menor, vai ter por volta de 200, 300 páginas.

EC – Você criou dois conceitos, o de “teatra” e o de “luzvesti”. Que conceitos são esses?
Dodi – A “teatra” é um convite para que a gente repense as estruturas cisgêneras patriarcais da área teatral. É mais um convite do que uma resposta. O último livro que eu lancei, “Teatra da Oprimida”, reúne ações nas cinco regiões do país, e em outros seis países do globo, com as experiências de TO. O subtítulo do livro é “Últimas fronteiras cênicas da pré-transição de gênero”. Não é que a gente já estava aplicando a “teatra da oprimida”. Na verdade, é uma forma profética de uma anunciação, que esse conjunto, esse repertório que a gente desenvolveu já está em movimento de transformação, não só de TO, mas a “teatra” de uma forma geral. Acho que o futuro mostrará que a “teatra” são as novas erupções que vão acontecer dentro dos espetáculos, desmontando a cisgeneridade e o patriarcado em todas as formas. E isso, veremos pelos procedimentos que serão apresentados nos espetáculos, nos procedimentos pedagógicos. E já está acontecendo.

A insustentabilidade da masculinidade, da branquitude, da cisgeneridade e da heteronormatividade a gente vai ver acontecer também nos procedimentos teatrais. Porque muita gente acha que “ah, não, as pessoas são hétero; as pessoas são brancas; as pessoas são trans”. Não! As metodologias são hétero, as metodologias são cis, são brancas. E a gente precisa transicionar. Não são só as pessoas que transicionam gênero, uma área do saber também pode transicionar gênero. Então é uma perspectiva transfeminista do teatro para a “teatra”.

EC – E o conceito de “luzvesti”?
Dodi – “Luzvesti” é uma percepção que veio de um livro de ensaio filosófico sobre a iluminação cênica, que vai trazer para essa área não só os estudos de gênero, mas também uma reflexão poética e filosófica profunda da estética da imaginação e seu potencial para deslindar, desenvelopar os processos de gênero no corpo e também questionar essa relação corpo-máquina, corpo-tela. A luz é uma tecnologia do corpo ou o corpo é uma tecnologia da luz? Quem ilumina quem? Vou fazendo perguntas e tecendo reflexões que vão mostrar que a gente também se veste de luz. E que vestir-se de luz também é uma operação de gênero.

EC – Qual é a tua análise das mudanças na política de investimentos na educação brasileira, iniciada a partir de Michel Temer, com o golpe dado na presidenta Dilma, e intensificada no governo Bolsonaro? Há possibilidade de retomarmos os investimentos nos próximos anos, ou a tendência é de que a situação piore?
Dodi – Nos próximos anos, a gente vai precisar descongelar a PEC dos gastos na educação e na saúde, porque esse congelamento feito depois do golpe, dentro do governo Michel Temer, é um dos pilares que dá sustentação para esse desmonte da Educação que está sendo operado no governo Bolsonaro. Além de todo o despreparo e de toda a anti-política da Educação que ele traz, com o moralismo excessivo, que é antipedagógico, repressivo, anti-aprendizagem, eu acredito que para o futuro a gente precise de uma expansão, para voltar a crescer. Vamos pensar na pós-graduação que fica um pouco mais nítido. Quando formamos doutoras e doutores no país, a gente espera que tenha novas universidades porque a perspectiva é expandir a educação cada vez mais. Com um número maior de doutores e doutoras, a gente vai ter um número cada vez maior de pessoas entrando na graduação; ou seja, vai ter também um número cada vez maior de pessoas atuando no ensino básico, para que as crianças e as/os jovens estudem. E o atual governo quer o oposto disso. O que eles queriam, é que a universidade não fosse mais um centro de potência para a sociedade, como ela se tornou nos governos Lula e Dilma. Na verdade, eles queriam que fôssemos regidos por um capitalismo desenfreado. O Future-se, que foi apresentado no início da gestão Bolsonaro, mesmo não tendo tido sucesso na sua implementação, ele demonstra de imediato a que serve este projeto. Depois, o Weintraub, com toda a sua arrogância e violência de Estado, contra professoras e professores, contra estudantes, acabou demonstrando que este projeto que está aí não tem sustentabilidade. Mas eles estão acabando com a Educação. Quanto mais eles ficarem no poder, menos escolas a gente vai ter, menos universidades, menos pessoas formadas e mais pessoas com fome. E não só fome de comida, fome de expansão de vida.

EC – Tu acreditas numa possibilidade de mudança?
Dodi – Eu titubeio. Tem horas que eu acredito, tem horas que eu desacredito. Acho que a sociedade tá desencantada. Acredito nas mudanças em escala menor. E quanto mais tivermos mudanças pequenas, a gente talvez se inspire e respire mais para que as nossas referências estejam nos poderes, nos governos. Quem quer que seja que volte a ocupar o governo federal, precisa ser uma pessoa – ou um grupo de pessoas – a favor da vida, e não só da vida humana. Eu sei que temos pessoas com condições e preparadas para nos fazer voltar a crescer economicamente, pedagogicamente, para alimentar o nosso povo. Eu sei que temos uma população desejosa de mudança. Mesmo que eu titubeie se isso vai acontecer ou não, de uma coisa eu não tenho dúvida: todo mundo quer. Mesmo que a gente desacredite que isso possa acontecer efetivamente, todo mundo gostaria de ter prosperidade. E eu desejo prosperidade travesti para todo mundo.

EC – As instituições de ensino superior cresceram muito nos últimos anos, em quantidade e em qualidade. Em que medida elas têm contribuído para a formação de artistas e professores de artes no Brasil?
Dodi – Eu acho que a universidade brasileira continua sendo muito elitista. As universidades precisam descer um pouco do salto, desse lugar de detentoras do saber que legisla e legitima qual é a verdadeira arte, qual é o espaço artístico. Acho que isso tem mudado aos poucos. Mas a arte continua sendo muito elitista, não só nos seus espaços e circuitos, mas no conceito de arte, no conceito de produção. Penso que as universidades de artes precisam se comprometer com os estudos de empregabilidade, com os estudos de produção, para que as pessoas que se formam possam aprender a abrir uma MEI, para que elas aprendam a se associar numa cooperativa que vai solicitar recursos em editais. Muitas universidades acreditam que esse não é o seu papel – dar ferramentas concretas e práticas. Eu já penso o contrário. Aqui a gente está fazendo isso na nossa graduação. Estamos fazendo uma parceria com o SEBRAE, para trazer ferramentas de autogestão, de empreendedorismo, de cooperativismo, para os cursos de artes. Eu acredito que a universidade tem esse papel de aprofundamento do pensamento crítico, mas também de inserção profissional. Tudo isso que eu acho que ela já faz muito bem, precisa ser balanceado com o papel da integração profissional.

EC – Você enfrenta preconceito dentro do ambiente universitário desde que assumiu como docente?
Dodi – Sim, tenho percebido alguns desafios internos na instituição, desde erro de pronome até um desprestígio desproporcional com relação à produtividade, à confiança, às potências e possibilidades do meu corpo. Mas há também uma violência externa que eu chamo de assédio profissional. Justamente porque eu tenho vivido uma especulação gigantesca para participar de projetos, de instituições, curadorias de festivais, coletivos teatrais, que me querem de todos os lados do país. Essa situação tem um lado positivo que é o prestígio e a necessidade, mas tem o outro lado que é uma extrema violência, porque eu sou uma só, e a gente precisa de outras pessoas trans que tenham essa abrangência, que estejam em outros lugares. Muita gente acha que por fazer um convite para bancas ou até mesmo para projetos artísticos, que eu tenho que aceitar. E eu não posso estar em todos os lugares. As pessoas ficam ofendidas, mas infelizmente, eu não posso. Eu sinto que está acontecendo isso, individualização de algo que deve ser de uma coletividade, deve ser um espaço para todas.

EC – Como a arte pode contribuir na construção de uma sociedade próspera?
Dodi – Eu vou sintetizar numa frase: “A arte, para ser da Terra, e não de Marte, tem que olhar face a face com a morte. Por que arte, Terra, Marte e morte? Porque a gente vive num contexto exponencial de morte”. Então, a arte não pode ser de Marte. A arte tem que ser da Terra. O que estamos vendo acontecer não são apenas as mortes, porque a gente também morre quando a gente é esquecida. Eles estão promovendo o genocídio das populações trans, indígenas, negras. Estão fazendo esse serviço de varredura, e a arte tem um papel de olhar a face da morte nesse momento. Eu vou retomar Augusto Boal, que é uma das inspirações da minha trajetória. Foi um grande mestre com o qual eu tive a oportunidade de estudar e aprender. Ele fala que a gente não precisa somente de ar, água, terra e fogo, dos elementos, mas também, da moradia, de trabalho, de direitos estéticos. Que o ser humano precisa ter direito à Arte. Respirar imagens, criar sons, possibilitar movimentos e poesia, para que a gente faça uma revolução estética. Então, o meu ativismo enquanto professora, enquanto pesquisadora, enquanto performer, é o caminho de reivindicar a arte feita por pessoas trans. E isso está sendo cada vez mais um resultado não só meu, porque eu faço um ativismo conjunto, de muitas pessoas trans que estão reivindicando esse lugar. E eu fico muito satisfeita de ser uma pesquisadora da arte trans e apontar esses caminhos, de ter essa responsabilidade histórica de luta dentro do contexto institucional da pesquisa. Acredito que é isso, estou vendo cada vez mais esse crescimento do direito à arte.

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