GERAL

A gramática da inclusão

Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 15 de outubro de 2021

A gramática da inclusão

Arte de Fabio Edy Alves sobre foto de Freepik

Arte de Fabio Edy Alves sobre foto de Freepik

Com a ideia de um português inclusivo para pessoas com orientação sexual não binária (masculino e feminino), que não se sentem contempladas pelo uso, principalmente, do masculino genérico, a chamada linguagem neutra aos poucos começa a aparecer fora de grupos sociais restritos. Quem nunca viu uma arroba (@) ou um xis (X) que agora dão lugar a letras como es para buscar a chamada “neutralidade de gênero” em algum texto ou saudação por aí?

Se “todes” usado no Museu da Língua Portuguesa reinaugurado em 12 de julho passado, em São Paulo, causou polêmica, – o secretário nacional de Cultura, Mário Frias, ameaçou “tomar medidas” para impedir o que chamou de “vandalização” da língua –, não é menor o barulho entre linguistas e até mesmo militantes das causas que envolvem transexuais, travestis, não binários ou intersexo.

Uma coisa é certa: o consenso está longe, mas a discussão posta. No debate, para uns a dita linguagem neutra é considerada um movimento social, parte da evolução da língua. Outros a encaram como um possível modismo.

Sírio Possenti, professor titular do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entende que não é possível ignorar as formas discriminatórias marcadas na língua: “A língua não funciona no vácuo”, diz.

Sírio Possenti, professor titular do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Foto: Antoninho Perri - SEC - Unicamp

Sírio Possenti, professor titular do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp)

Foto: Antoninho Perri - SEC - Unicamp

É a mesma visão de outros importantes filólogos procurados por Extra Classe, mas alguns optaram em não aprofundar o tema e não participar da reportagem e nem mesmo autorizaram a publicação das justificativas de suas negativas. Medo de cancelamentos?

Mais corajoso, Carlos Alberto Faraco, pelo menos, explica suas razões. “Eu estou evitando entrar nessa polêmica. Já me envolvi em muitas polêmicas linguísticas e resolvi não participar desta. Se publico, será inevitável o bate-boca”, afirma o ex-reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e autor de um dos mais usados manuais de linguística, o Linguística Histórica. Uma Introdução ao Estudo da História das Línguas (Parábola).

Outro renomado linguista pede para omitir seu nome e é categórico: “Iiiiixi! Ninguém quer mexer com isso. É modismo que não cola”.

Será que é só modismo?

Laerte: “O modismo, quando está em vigor, pode não ser um modismo. Ele pode ser um processo de transformação”

Foto: Arquivo Pessoal

Laerte: “O modismo, quando está em vigor, pode não ser um modismo. Ele pode ser um processo de transformação”

Foto: Arquivo Pessoal

A cartunista Laerte Coutinho não crava um prognóstico. “Se é um modismo, isso a gente só vai saber daqui a muito tempo (risos). O modismo a gente só fica sabendo a distância. Aquilo foi um modismo”, brinca.

Escolhida no último dia 23 de setembro para receber o troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE) ao Intelectual do ano, Laerte, que se apresenta como uma pessoa transgênero, uma mulher trans, completa: “O modismo, quando está em vigor, pode não ser um modismo. Ele pode ser um processo de transformação”.

Já para Richard Miskolci, a “principal crítica é sobre a noção de cisgeneridade e a moda de se autodefinir como não binário”.

PHD em Sociologia, professor titular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Miskolci é um dos precursores em pesquisas relacionadas à Teoria Queer no meio acadêmico brasileiro.

Em seu último livro, Batalhas Morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada (Autêntica), o professor fala que existe em campo um conceito que “denota desconhecimento ou interesse em refutar as teorias sobre gênero em favor de políticas identitárias que são, ao mesmo tempo, anti-intelectuais e autoritárias”.

Um vocabulário para entender seu lugar no mundo

Para Miskolci, propostas de linguagem neutra podem, sim, ser vistas como expressão de demandas de igualdade. “Ter um vocabulário para compreender seu local no mundo é fundamental para que grupos historicamente subordinados possam demandar reconhecimento, mas tal vocabulário – compreendido aqui de forma sociológica e educacional – não necessariamente exige reformar a língua”, analisa.

Richard Miskolci

Foto: Milla Pizzignacco/Divulgação

Richard Miskolci

Foto: Milla Pizzignacco/Divulgação

O professor fustiga: “Há línguas sem gênero, como o húngaro, o que não significa que ela é neutra, tampouco que não exista desigualdade de gênero na Hungria”. (Nota do Editor: leia entrevista complementar sobre este tema)

“Às vezes apoio, às vezes me cansa”

Movimentação que se iniciou globalmente por volta de 2012, no Brasil, a ideia de se buscar uma forma de não caracterizar o gênero no vocabulário já contempla diversas propostas. Se hoje ile e elu figuram como as mais fortes tendências para a nova composição de um pronome neutro, o uso da arroba (@) ou do xis (X) praticamente são consideradas ultrapassadas por dificultar a leitura e a vocalização.

Laerte Coutinho diz que “a arroba (@), o asterisco (*), essas coisas todas, o xis (X), são evidentemente recursos gráficos. No começo, ainda ninguém tinha tentado elaborar uma versão falada para essa questão dos novos pronomes”.

A cartunista tem uma resposta bem-humorada quando indagada sobre seu posicionamento a respeito da linguagem não binária: “Bom, a minha opinião é fluída, como os gêneros. Às vezes apoio, às vezes me cansa”.

Lentidão, discussão necessária e futuro incerto

Para a criadora dos Piratas do Tietê, entre outros personagens icônicos, “mudar a linguagem dessa forma que está se propondo, que é uma mudança no cotidiano, é uma coisa custosa. É uma coisa que demora. Uma coisa lenta”.

Sírio Possenti acha que é ainda impossível prever se essa nova forma de comunicação poderá ser incorporada à norma culta e às gramáticas no futuro e até mesmo o impacto que isso pode ter na educação.

É por isso os momentos de cansaço de Laerte Coutinho. Ela ainda acentua que “as novas disposições em relação às questões de gênero são maiores do que isso. Está havendo algum descompasso e uma certa área de tensão nessa parte dos pronomes”.

Para Laerte, as novas ideias quanto a gênero são completamente justificadas. “As pessoas que estão transitando ou que estão abordando novas possibilidades de gênero não querem ser só mulher ou homem. Querem abrir um leque de possibilidades. É muito interessante. Eu acho importante que isso aconteça”, registra.

Importante não superficializar o debate

Atena Beauvoir Roveda: filósofa, escritora e poetisa

Foto: Igor Sperotto

Atena Beauvoir Roveda: filósofa, escritora e poetisa

Foto: Igor Sperotto

Atena Beauvoir Roveda, filósofa, escritora e poetisa trans, segue a mesma linha de pensamento. Salienta que a linguagem neutra não apaga a linguagem masculina ou feminina. “A gente encontra em outras línguas gêneros que não são masculinos ou femininos, como o grego clássico, onde criança não é definido como masculino ou feminino e, sim, um gênero neutro”, assinala.

Atena considera que as regras “podem se adequar às realidades porque elas são construídas por nós, seres humanos” e defende um amplo diálogo.

“Se hoje nós negarmos a discussão de qualquer tema de um determinado tipo de público, amanhã a gente vai estar negando outro tema de discussão e assim vai”, reflete. “Eu mesma não uso a linguagem neutra, até porque estou adequada na linguagem feminina – sou a Atena, sou a escritora, sou a mulher, sou a gaúcha, sou a brizolista –, mas eu não quero retirar o direito das pessoas que querem buscar a linguagem neutra para si de terem os seus direitos preservados”.

A mudança de tratamento é uma decorrência disso no entendimento de Laerte. “A gente vai ter que chegar a esse ponto em algum momento. Agora é isso. Tem uma área de tensão aí. Tem gente que fica nervosa”, diz.

Atena frisa que o importante no processo é também não superficializar a discussão. “Não negar e integrar todas as opiniões, divergentes ou convergentes sobre o tema. Acho importantíssimo nós abrirmos o espaço democrático sem nenhum tipo de imaturidade da nossa parte.”

Segundo a filósofa, o diálogo produtivo não se dará “de maneira inautêntica, levando na má-fé o assunto. A gente tem que propor uma boa-fé para discutir qualquer tema”.

Laerte também entende que não se deve evitar a polêmica. “A princípio, eu acho correto, estou de acordo com a necessidade de uma proposta de uma mudança em relação aos tratamentos. É um sinal de respeito. É tratar as pessoas como elas gostam de ser tratadas. Eu não gostaria de ser tratada no masculino. Pessoas que não se enquadram nem como masculino, nem como feminino também têm direito a propor uma forma de tratamento”, defende ao lembrar que “se a língua demora para mudar, ao mesmo tempo as pessoas têm o direito de serem tratadas ou tratades com respeito. Isso não é um absurdo”.

Apesar disso, Laerte diz que tem bem claro que esse respeito passa por “uma prática mais ou menos complicada”: a de usar um novo sistema de flexão de gênero. “A língua portuguesa tem disso. Tudo é generificado. Cadeira é feminino, enfim”, resigna-se.

Sobre como tratar isso, ela recorda que nos Estados Unidos se usa o pronome no plural, They. “Para mim, é mais estranho. Prefiro um pronome novo”, conclui.

Diferenças entre linguagem inclusiva e linguagem neutra

André Fischer, autor do Manual ampliado de linguagem inclusiva e outras obras voltadas às comunidades LGBTQI+

Foto: Felippe Moraes/Divulgação

André Fischer, autor do Manual ampliado de linguagem inclusiva e outras obras voltadas às comunidades LGBTQI+

Foto: Felippe Moraes/Divulgação

O jornalista André Fischer, criador do portal MixBrasil, é autor de uma série de livros voltados à comunidade LGBTQI+, entre eles o Manual ampliado de linguagem inclusiva (Matrix).

Conforme ele, torna-se importante fazer a diferença do que é a dita linguagem neutra do que é uma linguagem inclusiva. Se, de um lado, existe o esforço na busca de um gênero neutro para mitigar o que os ativistas chamam de machismo do idioma, a linguagem inclusiva já faz uma diminuição de marcadores de gênero, com a vantagem de usar as palavras que já estão na gramática usada hoje no Brasil.

“A linguagem inclusiva busca não só essa questão de marcadores de gênero, mas também erradicar vocabulários racistas, capacitistas, etaristas, LGBTfóbicos. Eu, particularmente, acho que, em uma linguagem mais inclusiva, se tenta buscar o máximo de palavras que já são comuns para dois gêneros. Não tem que reforçar o feminino e ainda se criar um terceiro gênero. Basta substituir ou em uma saudação dar ‘bem-vindos e bem-vindas’, por exemplo”, exemplifica Fischer.

Para ele, ao falar em linguagem inclusiva, “se está pensando em algo maior que não é só essa questão de gênero, mas, também, em substituir um vocabulário que é preconceituoso”.

André não nega a importância das discussões sobre uma possível linguagem neutra. Compreende, no entanto, que é uma movimentação social que “não vai se concretizar nas cartilhas, nas gramáticas antes de 40, 50 anos, mesmo se for iniciado agora”.

Para o jornalista, em primeiro lugar, é necessário haver um consenso sobre qual seria esse gênero neutro. “A gente tem quatro sistemas propostos e, pelo menos, dois têm sido usados em meios distintos.”Registra o “pronome” ile que se vê muito no LinkedIn, usado mais no meio empresarial, e, nas escolas, “com a galera mais nova, o elu”.

Fischer lembra que, ao se fazer uma saudação “sejam bem-vindes” ou se referir a “todes”, para ser simpático, não é o gênero neutro. “O gênero neutro é você criar um terceiro gênero, que vai ter pronomes, que vai ter artigos. Você tem que ter o minhe, tue ou inho, minho. Aí depende do pronome que você usar.”

Ele, para exemplificar, faz uma frase que considera engraçada: “Ile está na casa des avôes dile (ele está na casa dos avós dele). Porque para avô e avó, também tem que criar um avô neutro. Daí tem uma série de palavras. Tem que ter avôe. Avô, avó, avôe”, discorre ao apontar a inexistência de consensos.

“Tem gente que se sente incomodada com o uso de um ou outro pronome. Então, é uma questão que é muito complicada. Se a gente fala de linguagem inclusiva, já é outra coisa.”

Ao finalizar, sugere ainda ainda como ficaria a frase ‘eu falei com a mãe dele’, ao se usar o ile e o elu: “Eu falei com a mãe dile. Eu falei com a mãe delu”.


Leia também

Avanços, equívocos e retrocessos nas lutas identitárias

O protagonismo dos subalternizados

 

Comentários