JUSTIÇA

Obscurantismo na contramão dos fatos

Estatuto da Criança e do Adolescente completa 25 anos em meio a discussões que colocam em risco suas conquistas que ainda nem foram totalmente efetivadas
Por Clarinha Glock / Publicado em 2 de julho de 2015

Obscurantismo na contramão dos fatos

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O preço social da não implementação efetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 25 anos no dia 13 de julho, é altíssimo. Ele tem nome, cor e classe social. Os ativistas de movimentos sociais que na década de 1990 se mobilizaram para inserir na Constituição o artigo 227, que garante a defesa prioritária dos direitos dos jovens e lutaram pela aprovação do ECA, hoje se perguntam: “onde foi que erramos?” Por que, em pleno século 21, em um país governado por um Estado democrático, crianças e adolescentes, em sua maioria pobres e negros, quando não morrem assassinados, são apontados como os principais responsáveis pela insegurança e pela violência no Brasil? Uma explicação pode estar em campanhas feitas através de meios de comunicação tendenciosos que propagam o medo e a violência, aproveitando a desinformação e a incompetência da sociedade e do Estado em fazer cumprir plenamente o ECA e a Constituição.

No que depender da proposta de redução da maioridade penal, aprovada em votação na Câmara dos Deputados em 17 de junho de 2015 e que no dia 30 de junho vai à votação pelo plenário, há um risco iminente de regressão de conquistas históricas. A discussão vai na contramão de experiências internacionais, como na Espanha e nos Estados Unidos, onde a redução da idade penal aumentou os índices de criminalidade entre os jovens. Outras leis buscam inclusive ampliar o ECA diante da tragédia que se abate sobre a juventude brasileira.

Promulgada em 26 de junho de 2014, a Lei 13.010, que ganhou o nome de Lei Menino Bernardo, ou Lei da Palmada, estabeleceu sanções administrativas para quem maltratar crianças e adolescentes, com previsões de políticas públicas e medidas para coibir a violência infantil. Bernardo Boldrini, que deu o nome à lei, tinha 11 anos e havia pedido ajuda para vizinhos, amigos e até para um juiz para sair de uma família que o hostilizava violentamente. Nem na escola encontrou a escuta e acolhida de que precisava. Seu corpo foi encontrado em abril de 2014 enterrado às margens de uma estrada em Frederico Westphalen, cidade localizada a cerca de 400 km da capital gaúcha. Os acusados pelo crime foram o pai de Bernardo, um médico respeitado com residência em Três Passos; a madrasta, que era enfermeira; uma amiga e o irmão dela. Todos de cor branca.

O detalhe da cor e da classe social é importante, porque se Bernardo fosse negro, ou pobre, como Emanuel Vinícius Gonçalves Rocha, provavelmente sua morte não teria causado tanta repercussão. O relatório Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial 2014 mostra que, em todos os estados brasileiros, com exceção do Paraná, os negros com idade de 12 a 29 anos correm mais risco de exposição à violência que os brancos na mesma faixa etária. No caso específico dos homicídios, o risco de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é, em média, 2,5 vezes maior que uma pessoa branca.

Praticamente um ano depois de Bernardo, os jornais publicaram a notícia de que Emanuel, de 12 anos, foi “abatido a tiros” no bairro Restinga, em Porto Alegre, em 30 de abril de 2015. Desde os seis anos, havia sido acompanhado na escola pelo Conselho Tutelar, assistência social, abrigos e Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (Fase). Todos falharam. Em suas passagens pelos equipamentos de proteção, os registros indicavam que o irmão mais velho de Emanuel havia sido morto a pauladas, que o garoto havia fugido de casa para não apanhar do padrasto, que se envolveu com o tráfico e praticava pequenos furtos. Justamente por não ter cometido um delito mais grave, é que Emanuel ficou apenas 30 dias na Fase e voltou para as ruas em regime de semiliberdade. Ironicamente, se tivesse cometido um crime, talvez ainda estivesse vivo dentro da instituição. O destino de outras crianças como Bernardo e Emanuel poderia ter sido outro se, conforme prevê o artigo 227 da Constituição, seus direitos fossem respeitados desde muito antes, ainda na Primeira Infância.

Faltou fazer o dever de casa

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Faltou fazer o dever de casa
Depois de 25 anos de trabalho na área da infância e adolescência, a socióloga Graça Gadelha admite: “Faltou fazer o dever de casa”. Houve avanços, como a redução de indicadores da mortalidade infantil, por exemplo. “Mas temos déficits gravíssimos do ponto de vista da política da saúde, que não contempla a todos, sobretudo os mais vulneráveis, e também faltam políticas voltadas ao esporte, à cultura, ao lazer”, avalia. Na sua visão, a sociedade, a família e o poder público, de um modo geral, não estão fiscalizando e monitorando o cumprimento do Estatuto. O ECA prevê a corresponsabilidade do Estado, do poder público e da sociedade. Segundo Graça, o exercício dessa instância poderia estar dentro dos conselhos municipais, estaduais, do próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. “De que forma nós estamos acompanhando o orçamento público? De que forma nós estamos criando mecanismos de participação dessa sociedade? Que tipo de eleitores somos?”, questiona.

A discussão sobre a redução da maioridade penal surge neste contexto. “O ECA foi construído num contexto democrático, em que os direitos sociais estavam na ordem do dia. O retrocesso com a discussão da redução da maioridade penal se dá no bojo de uma sociedade em crise, perplexa, que tenta negar os avanços históricos dos últimos anos”, analisa a professora Carmem Maria Craidy, assessora do Programa de Prestação de Serviços à Comunidade para adolescentes em medida socioeducativa e do Programa Interdepartamental para adolescentes e jovens em conflito com a lei da Ufrgs, e conselheira do Conselho Estadual de Educação. De um lado, diz Craidy, há uma população inserida no mercado de consumo, mais escolarizada, e que quer continuar a progredir, mas que encontra limites. De outro, estão as elites ameaçadas por uma população antes subalterna e que agora tem voz. Portanto, trata-se de uma crise mais social e política do que econômica: os primeiros querem continuar ascendendo, e isto provoca uma insegurança grande e um desejo de retroceder que é potencializado por grupos  reacionários, como algumas igrejas, explica. “E há os políticos que tentam se aproveitar da situação, inclusive para fazer carreira, manipulando insatisfações, até para salvar a própria pele – 70% dos que votaram a favor da PEC 171 respondem a processos judiciais”, acrescenta.

Craidy acredita que existe um misto de ignorância, manipulação, demagogia, oportunismo e má fé. As notícias sobre adolescentes em conflito com a lei geralmente ganham destaque a partir de um evento grave, polarizando as atenções. São atos extremos, condenáveis, que confundem a opinião pública. No entanto, o Mapa da Violência organizado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz e Unesco deixa claro quem são as principais vítimas da violência: cerca de 70% dos jovens entre 15 e 25 anos de idade morrem por causas externas, sendo que 38% são assassinados.

O número de assassinatos cometidos por jovens antes dos 18 anos de idade não chega a 1%. É uma juventude sem esperança, conclui Craidy. “Nos presídios brasileiros, mais de 50% têm menos de 30 anos. Desses, a maioria estudou, em média, até a 5ª série do ensino fundamental. Temos de dar uma resposta social, educacional e cultural para os jovens, e não encarcerar mais”, acrescenta. Graça Gadelha concorda. “O papel da escola é fundamental. A educação ainda está a anos-luz do ponto de vista de criação de processos que deem à população informações, capacitações na construção das suas habilidades socioemocionais e na sua capacidade crítica, para que esses jovens tenham um protagonismo político”. Para Graça, a fragilidade atual provocada pela discussão da redução de maioridade penal poderá servir para uma reflexão profunda e um retorno à indignação e ao exercício de cidadania.

Um mundo de direitos a ser explorado sem intermediários

Foto: Facsímile/youtube/reprodução

Foto: Facsímile/youtube/reprodução

Um mundo de direitos a ser explorado sem intermediários
Jovens e crianças que discutem racismo, violência de gênero, igualdade social, na forma de músicas, em programas de rádio e televisão, em blogs, sites e jornais virtuais ou impressos, em que eles/elas mesmos são protagonistas. Assim são os projetos e trabalhos de educomunicação, que unem a educação e a comunicação para provocar mudanças, interferir na realidade e gerar questionamentos, onde todos aprendem com todos − professores, alunos, familiares, comunidade.

E onde o processo de elaboração e criação, através dos mais diversos meios de comunicação, é, por si só, um aprendizado e uma forma de conscientização para lutar contra preconceitos e estigmas. No seminário sobre o papel da mídia na difusão de direitos humanos promovido pela Andi em Brasília, Carlos Mamani Jiménez apresentou os Eco Jóvenes da Bolívia, que no programa de rádio Radar Juvenil apresentam de maneira divertida informações sobre como ir atrás de seus direitos.

No VI Encontro Brasileiro de Educomunicação realizado em Porto Alegre, na PUCRS, entre 10 e 12 de junho de 2015, a professora da Universidade Federal do Mato Grosso Naine Terena de Jesus, que traz no nome a identificação de seu povo indígena, explicou como as novas tecnologias estão presentes na vida dos jovens indígenas que habitam no Mato Grosso, seja através dos blogs como nos perfis do Facebook. “Os indígenas se apropriam do audiovisual e das redes sociais provavelmente porque são povos orais, e têm mais facilidade com imagens e som”, disse Naine em sua apresentação. É também uma forma de militância. “Porque ainda somos invisíveis – indígena só aparece na televisão quando está fazendo uma manifestação, atrapalhando o ‘progresso’; ou no dia do índio, e aí aparece como um ser folclórico, que vive na mata, pescando”, critica. “Os terenas têm contato com a tevê, mas não se veem representados”. Ao assumir os meios de comunicação, levam sua história para dentro da sala de aula e contam como foram importantes, por exemplo, durante a Guerra do Paraguai, preenchendo uma lacuna existente nos livros didáticos.

Pesquisas botam o dedo na ferida: está na hora do mea culpa da mídia
Quando, há 21 anos, a jornalista Âmbar de Barros criou a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) depois de tomar conhecimento, pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que mais de uma criança era assassinada por dia no Brasil, seu objetivo era dar visibilidade a um extermínio silencioso da infância brasileira. Âmbar tornou-se voluntária do Movimento e engajou-se na luta pelo ECA. “Hoje temos que repensar as estratégias porque, com as novas tecnologias, a situação mudou. O papel dos grandes veículos de comunicação continua sendo de formadores de opinião − eles criam o senso comum que as pessoas repetem sem se questionar − mas essa mídia precisa abrir espaço para argumentos e fatos.

Tema foi discutido em seminário que comemorou os 21 anos da Andi, no mês de junho, em Brasília

Foto: Mila Petrillo/ANDI

Tema foi discutido em seminário que comemorou os 21 anos da Andi, no mês de junho, em Brasília

Foto: Mila Petrillo/ANDI

Não está fazendo isso, porque a discussão está partidarizada”, analisa Âmbar. A solução, a seu ver, passa pela educação. “Só uma pessoa com anos de bom estudo, capaz de pensar por si próprio, de ter uma visão crítica sobre as informações que chegam das mais diversas formas, é capaz de exercer a verdadeira cidadania”. A Andi cresceu, tornou-se Andi – Comunicação e Direitos e, no seminário de comemoração  de sua maioridade, intitulado A mídia brasileira e os direitos humanos: avanços e desafios, realizado de 10 a 12 de junho de 2015 em Brasília, colocou em pauta um tema tabu nos meios de comunicação: as violações de direitos pela mídia brasileira.

Durante o seminário, a Andi lançou os dois primeiros volumes do Guia de Monitoramento (acesse o Volume 1  e o Volume 2) com ferramentas para identificar essas violações e refletir sobre maneiras de coibir seu avanço. Após análise de 30 programas “policialescos” de rádio e televisão, em dez capitais brasileiras, que promovem a espetacularização dos fatos narrados, reforçando a cultura do medo e da repressão, foram identificadas violações como desrespeito à presunção da inocência, incitação de crime e violência, exposição indevida de pessoas, identificação de adolescentes em conflitos com a lei, violação do direito ao silêncio, tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante. Acionado por organizações da sociedade civil como a Intervozes, o Ministério Público tem entrado na Justiça contra os meios de comunicação que praticam essas violações, já que mecanismos de autorregulação, que deveriam ser usados pelos próprios meios, são insuficientes na prática.

O impacto das mensagens violentas sobre o universo infanto-juvenil e as medidas passíveis de serem tomadas foram avaliados pelos convidados do seminário. “Há uma ausência de reflexão, e a mídia contribui para isso com a espetacularização, com o entretenimento superficial, com o consumismo desenfreado”, afirmou Erika Kokay (PT/DF), deputada titular da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. A deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), ex-secretária da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, acrescentou: “Os programas sensacionalistas construíram na sociedade brasileira uma distorção da imagem de quem são nossas crianças e jovens. E colhem hoje talvez a vitória de uma legislação retrógrada.

Prometem que as medidas tomadas, que rasgam a Constituição de direitos fundamentais, darão fim à violência. Pois se fossem os adolescentes brasileiros os responsáveis pela violência letal ocorrida no Brasil – não o são −, ainda assim não colheriam a paz com esta medida”. Para Celso Schröder, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, é preciso aprovar com urgência um marco regulatório da mídia: “Temos a obrigação de atribuir à mídia a dimensão pública que deve ter”.

*Clarinha Glock participou do seminário Andi 21 anos: A mídia brasileira e os direitos humanos: avanços e desafios, em Brasília, a convite da Andi.

O que dizem as leis
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, à alimentação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Artigo 227 da Constituição Federal de 1988

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi instituído pela Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, que normatizou o artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Surgiu a partir da mobilização social que deu origem ao Fórum Nacional de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esse movimento recolheu mais de 6 milhões de assinaturas para garantir a criação de um artigo que estabelecesse os direitos humanos de meninos e meninas na Constituição. O ECA substituiu o Código de Menores. Traz em sua base a doutrina de proteção integral, reforça o princípio da criança e do adolescente como “prioridade absoluta” e institui o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente que se apoia em três eixos: a promoção e a defesa dos direitos e o controle social. (Fonte: Estatuto da Criança e do Adolescente: um guia para jornalistas, Rede ANDI Brasil, 2011)

O que diz a PEC da Redução da maioriadade penal
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/1993 altera o artigo 227 da Constituição e reduz a idade penal de 18 para 16 anos. Desta forma, os jovens maiores de 16 anos passem a responder criminalmente por seus atos. No dia 17 de junho de 2015, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou a proposta. O texto deverá passar por votação do plenário da Câmara no dia 30 de junho de 2015.

Alguns mitos sobre a Redução da Maioridade Penal:
MITO – Os jovens são os principais responsáveis pela violência no Brasil.
FATO − Dos 21 milhões de brasileiros entre 12 e 18 anos incompletos, apenas 0,013% cometeram crimes contra a vida. Mas a cada hora um adolescente é assassinado. A Unicef monitora a situação com o Índice de Homicídios na Adolescência. Em 2005, fez uma projeção de que 35 mil adolescentes seriam assassinados entre 2006 e 2012. O diagnóstico estava próximo da realidade: 33,6 mil pessoas dessa faixa etária morreram no período. Se as condições atuais prevalecerem, 42 mil jovens serão mortos de 2013 a 2019 antes de completar a idade adulta. (Fonte: Casimira Benge, coordenadora do programa de proteção à criança do Unicef no Brasil, acesse aqui)
MITO − Crianças e adolescentes que cometem atos infracionais no Brasil ficam impunes, a exemplo daqueles que são liberados automaticamente ao completarem 18 anos.
FATO − O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que a medida de internação pode ter duração máxima de três anos, independentemente da idade em que o adolescente é sentenciado. Ou seja, o adolescente de 17 anos que comete um crime grave poderá permanecer em regime de internação até os 20. Mesmo depois de liberados, os adolescentes e jovens podem continuar cumprindo medida em meio aberto ou semiaberto, sem prazo determinado para extinção da medida, a depender da avaliação técnica e decisão judicial.
(Fonte: Instituto Sou da Paz. Para acessar a íntegra e outros artigos sobre o tema, acesse aqui)

 

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