JUSTIÇA

Salários dos juízes excedem teto constitucional

Por Flávio Ilha / Publicado em 6 de maio de 2016

Salários dos juízes excedem teto constitucional

Foto: Eduardo Nichele/ TJ-RS/ Divulgação

Foto: Eduardo Nichele/ TJ-RS/ Divulgação

Grande parte da despesa do Tribunal de Justiça do RS com a folha de pessoal e encargos trabalhistas vai para a remuneração dos juízes. Em 2015, foram R$ 2,1 bilhões. Nesse cálculo, não entram os retroativos em auxílio-moradia, juros e correção, que elevariam a despesa em R$ 6 bilhões. Na prática, nenhum juiz recebe mais do que R$ 33.763,00, mas artifícios como abonos, subsídios e outras vantagens acabam elevando os vencimentos. Mas os privilégios não ficam por aí.

Você já imaginou receber um salário de R$ 11.212,21 mensais sabendo que o rendimento médio do trabalhador brasileiro, em 2015, ficou em R$ 2.265,09 segundo o IBGE? Nada mau, não é? Pois, caro mortal, morra de inveja: R$ 11.212,21 foi o desconto legal do “subsídio” – o Judiciário prefere usar esse eufemismo a chamar os vencimentos da magistratura de salário – do desembargador aposentado Luiz Menegat, em março, incluindo imposto de renda, previdência e outras coisinhas. Mesmo com esse desconto astronômico, não se preocupe: o contracheque de Menegat – o maior rendimento entre os 799 magistrados, na ativa ou aposentados, da folha de pagamentos da Justiça estadual – ainda lhe garantiu R$ 48.821,49 na conta corrente, valor que é mais de R$ 15 mil superior ao teto constitucional de vencimentos do serviço público brasileiro, de R$ 33.763,00. Injustiça? Aparentemente não, se for examinada com detalhes a folha salarial de desembargadores e juízes que atuam no Rio Grande do Sul. Dos 338 desembargadores do Estado, da ativa ou aposentados, 19 receberam vencimentos brutos acima de R$ 50 mil em março. O salário de referência, chamado de “remunera- ção paradigma” no contracheque da função, é de R$ 30.471,11. Os salários dos juízes também extrapolam o teto constitucional de R$ 30.471,11: nada menos que 129 deles, entre uma categoria de 880 juízes, receberam subsídios superiores a R$ 40 mil brutos – sendo que desses, 14 passaram dos R$ 50 mil. Uma outra centena se situa justamente nesse limiar, com salários beirando os R$ 39 mil. Por isso não surpreende que, mesmo em tempos de crise, o Tribunal de Justiça do Estado tenha gastado R$ 2,1 bilhões com despesas de pessoal e encargos trabalhistas em 2015, excluindo os benefícios extraordinários.

A conta, entretanto, não deve ficar por aí: no âmbito federal, a Câmara já negocia a urgência e posterior aprovação de projeto para reajustar entre 53% e 78% os salários dos servidores do Poder Judiciário – aumento que foi aprovado em 2015 no Congresso mas vetado pela presidente Dilma Rousseff devido ao alto impacto nas contas públicas. Se aprovado, o projeto pode onerar em mais R$ 5,3 bilhões o orçamento da União de 2016 e outros R$ 36 bilhões até 2019.

Além do reajuste dos servidores, os ministros do STF também encaminharam pedido para elevar o subsídio básico da magistratura de R$ 33,7 mil para R$ 39,3 mil – com impacto em todas as outras esferas do Judiciário devido ao efeito-cascata do reajuste, que se estende automaticamente a todos os tribunais. Nesse caso, a remuneração paradigma de juízes e desembargadores no Estado seria elevada para R$ 35.264,00 ainda em 2016, num aumento de 16% sobre a folha da magistratura.

Salários dos juízes excedem teto constitucional

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Engenharia de vantagens eleva salários
O desembargador Túlio Martins, porta-voz do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e que figura nas listas de salários, ou subsídios, acima dos R$ 50 mil, justifica que a renda dos magistrados se deve a elementos constitucionais previstos na estrutura remuneratória do Judiciário. “Os subsídios são pagos exatamente dentro dos limites legais. Nenhum magistrado recebe acima de R$ 33.763,00. Os valores apontados pelo Extra Classe estão corretos, mas englobam abono de permanência, previsto na Constituição Federal para todos os servidores públicos que já têm tempo suficiente para se aposentarem, mas que continuam na ativa, auxílio-moradia, auxílio-alimentação, Parcela Autônoma de Equivalência (PAE) e, em alguns casos, um terço de férias”, responde Martins, por e-mail.

A resposta sugere que salários acima do teto constitucional são episódicos. Não são. Apenas de “vantagens eventuais” e “indenizações”, o desembargador mais bem pago do Estado recebeu R$ 33.896,10 em janeiro deste ano e R$ 29.334,30 em fevereiro. Em março mais R$ 29.562,59 engordaram a conta do magistrado – em um trimestre foram quase R$ 100 mil extras de “subsídios dentro dos limites legais”.

Os vencimentos líquidos do desembargador chegam em média a R$ 45 mil, sem que nunca tenha sido descontado o estorno referente ao teto salarial de R$ 33,7 mil. O subsídio acima do teto não é eventual: em fevereiro, o salário bruto de Menegat foi de R$ 59.805,41; em janeiro, chegou a R$ 64.367,21. Desde que se aposentou, há dez meses, em apenas um mês o desembargador recebeu salário bruto inferior a R$ 55 mil. Além disso, o magistrado recebeu abono de um terço referente a férias, de R$ 10.834,17, duas vezes em 2015: em julho e em agosto.

O Tribunal não explica quais vantagens e indenizações compõem a parcela variável do vencimento dos servidores com altos salários. Mas fazem parte da lista vantagens como o abono de permanência, que compensa o desconto da Previdência para quem se mantiver na ativa, o auxílio- -alimentação e o auxílio-moradia, pago a servidores da ativa por força de uma liminar concedida pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal – mesmo que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2016 determine que só receba o benefício quem comprovar despesas de hotel ou de aluguel de imóvel para desempenhar suas funções.

Menegat justifica que os rendimentos são fruto de uma carreira de 35 anos na Justiça estadual. “São férias atrasadas e licenças- -prêmio que nunca tirei e que serão pagas em 43 vezes. Enquanto outros se divertiam, eu estava trabalhando. Se fosse numa empresa privada, eu deveria receber de uma vez só toda essa indenização. Mas aceitei o parcelamento. Aliás, nem sei se estão pagando direito porque sou muito desleixado com essas questões financeiras, diz Menegat. Segundo o desembargador aposentado, o Tribunal vem lhe indenizando “há cerca de seis meses” por quatro períodos de férias vencidas e por um ano de licença-prêmio.

Também diz que seus vencimentos estão dentro da lei e que paga todas as deduções integrais, como imposto de renda e plano de saúde, pelo limite máximo. Além disso, diz que se fosse descontado do chamado “estorno de teto” nem a terceira geração de sua família receberia de forma integral as indenizações a que tem direito. “Depois de 35 anos de atividade como juiz, penso que fiz jus a não viver com qualquer coisinha. A esta altura da vida, acho uma afronta perguntar se meu rendimento é justo”, reclama.

Auxílio-moradia retroativo com juros e correções
O secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, diz que o Poder Judiciário burla o teto salarial criando “penduricalhos” para engordar os subsídios de forma indireta, como auxílio para a aquisição de livros e os já citados auxílio-permanência e auxílio-moradia, além do PAE. Só no ano passado, o TJ do Rio Grande do Sul gastou R$ 66,3 milhões com o benefício de moradia para juízes e desembargadores que, na imensa maioria dos casos, têm casa própria e não paga aluguel.

Salários dos juízes excedem teto constitucional

Foto: Contas Abertas

Gil Castello Branco, do Contas Abertas

Foto: Contas Abertas

“Esses artifícios surgiram numa época em que o governo federal se desfez de imóveis funcionais, muitos deles vendidos vantajosamente aos seus próprios ocupantes. Vantagens isoladas para determinados segmentos, como o auxílio- -moradia, apenas agravam ainda mais as distorções no serviço pú- blico”, afirma Castello Branco.

O maior desses “artifícios” é a PAE, uma indenização referente à recuperação da diferença remuneratória entre a magistratura e os deputados federais devido ao pagamento de auxílio-moradia aos parlamentares. A disparidade, verificada entre 1994 e 1998, foi incorporada pelos ministros do STF a seus próprios salários e, em 2008, pelos juízes federais. O próprio Tribunal de Justiça do Estado decidiu se autoconceder o benefício em 2010, com correção monetária pelo IGP-M (34% no período) e juros de mercado (52%). A Procuradoria Geral do Estado e o Ministério Público de Contas contestaram o benefício, mas o pagamento foi mantido pelo Tribunal de Contas (TCE).

Por essa decisão, um magistrado que esteja desde 1994 na Justiça gaúcha tem direito a R$ 115 mil de auxílio-moradia retroativo, mais R$ 275 mil da correção monetária e outros R$ 430 mil de juros, totalizando R$ 820 mil. A conta, em números grosseiros, passa dos R$ 500 milhões. Não há orçamento que resista.

O secretário-geral do Sindicato dos Servidores da Justiça do Rio Grande do Sul (Sindijus), Davi Pio, aponta mais uma vantagem dos magistrados em relação a outros trabalhadores – especialmente do próprio Poder Judiciário: um vale- -refeição de R$ 799 ao mês, o que representa um valor unitário de R$ 36,50 considerando uma média de 22 dias úteis. A média dos servidores de carreira do órgão é de R$ 19.

Além disso, o benefício aprovado pela Assembleia Legislativa em junho do ano passado foi pago de forma retroativa a 2011, ano em que foi instituído por decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Cada magistrado recebeu R$ 38,5 mil como indenização por refeições pagas indevidamente. A conta final passou dos R$ 30 milhões. “É um escárnio. O Tribunal decidiu sozinho, colocou no orçamento e passou a conta para o governo, ou seja, para a sociedade gaúcha. Simples assim, sem dar satisfações a ninguém”, critica Pio. O sindicalista também questiona a proposta que transformou a carreira de oficial ajudante em cargo de confiança, com nomea- ção exclusiva de juízes e desembargadores. Segundo ele, foram criados 96 cargos pelo projeto – aprovado em novembro pela Assembleia.

Nova Lei Orgânica da Magistratura amplia privilégios
Se aprovado como está, o projeto da nova Lei Orgânica da Magistratura (Loman) deve ampliar ainda mais os benefícios do Judiciário sobre outras carreiras do serviço público. O texto, por exemplo, cria auxílio-educação para filhos com até 24 anos de juízes, desembargadores e ministros do Judiciário em escolas e universidades privadas; auxílio-moradia equivalente a 20% do salário bá- sico, o que elevaria o benefício, no caso da Justiça estadual, a R$ 6.094,22; transporte, quando não houver veículo oficial; reembolso por despesas médicas e odontológicas não cobertas por plano de saúde; e licenças para estudar no exterior com remuneração extra.

O projeto da nova Loman, elaborado pelo ministro Ricardo Lewandowski a partir de proposta do ministro Luiz Fux, deve ainda ir para análise do Congresso. Uma emenda de Fux, além disso, estabelece que juízes condenados por improbidade não percam as suas funções. O ministro também pede que, se houver feriados nos 60 dias de férias a que os juízes têm direito por ano, esses dias não contem e o período de folga seja prolongado na mesma quantidade de dias. O projeto determina o livre ingresso e trânsito de magistrados em qualquer recinto público ou privado, quando em serviço, e prioridade em transportes públicos em urgências.

Entre as propostas em discussão no projeto também estão a proibição de indiciamento de magistrados em inquéritos policiais, salvo se o tribunal a que pertencem autorizar. O projeto também proíbe que juízes, desembargadores e ministros do Judiciário sejam interrogados em processo disciplinar ou criminal, a não ser por magistrado de instância igual ou superior.

Os poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também serão reduzidos se a proposta for aprovada. Os conselheiros não poderão mais, por exemplo, criar as semanas de conciliação e os mutirões carcerários, que agilizam o trabalho do Judiciário. O Conselho também não poderá mais criar “normas abstratas”, contexto em que se insere, por exemplo, a resolução que proíbe o nepotismo no Poder Judiciário.

 

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