JUSTIÇA

Remuneração de juízes chega a R$ 650 mil por ano

Levantamento do Conselho Nacional de Justiça mostra que cada um dos mais de 18 mil magistrados de todas as esferas do Judiciário brasileiro recebe em média quase R$ 650 mil em salários e vantagens por ano
Por Flávio Ilha / Publicado em 11 de outubro de 2017
Composição do STF em 1965: ditadura militar esvaziou o sistema judiciário e implantou distorções como os supersalários e o maior índice de servidores por habitante do mundo

Foto: Arquivo STF/ Divulgação

Composição do STF em 1965: ditadura militar esvaziou o sistema judiciário e implantou distorções como os supersalários e o maior índice de servidores por habitante do mundo

Foto: Arquivo STF/ Divulgação

Em um país que produzirá 3,6 milhões de novos pobres somente em 2017 e onde 23% da população ganha menos de um salário mínimo, os juízes e servidores do Judiciário compõem uma ilha de supersalários, remunerações acima do teto e benefícios surrealistas. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça mostra que cada um dos mais de 18 mil magistrados de todas as esferas do Judiciário brasileiro recebe em média quase R$ 650 mil em salários e vantagens por ano. Somados os demais servidores, o custo da Justiça só com pessoal chega a R$ 76 bilhões por mês

Confusa, obscura e em geral escondida em portais pouco transparentes, a remuneração dos magistrados brasileiros continua sendo um tabu. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) relativo a 2016 revelou que os juízes brasileiros custaram ao país em média R$ 47.703 entre salários e vantagens a cada mês – ou 41% acima do teto constitucional de vencimentos determinado pelo STF, de R$ 33.763. Cada um dos 18.011 magistrados brasileiros recebeu por ano em média R$ 648.739 de salários ou vantagens, incluindo todas as esferas do Judiciário. A conta com esses pagamentos ultrapassou R$ 11 bilhões em 2016.

Se forem acrescidos os servidores do Judiciário, que chegam a 280 mil em todo o Brasil e receberam em média R$ 13.760 no ano passado de salários mensais, o gasto só em pessoal chega a R$ 76 bilhões na Justiça – superior ao Orçamento do Rio Grande do Sul em 2016, cujas despesas chegaram a R$ 63 bilhões. Para se ter uma ideia da distorção de valores, um professor da rede pública de ensino no estado recebe, no topo do plano de carreira, R$ 3.780,54 mensais por uma jornada de 40 horas semanais. Dito de uma outra forma: um juiz no Rio Grande do Sul custa o equivalente a 12 professores no estado. Se considerado o nível mais baixo de um docente em tempo integral, cujo salário chega a R$ 1.890,26, a relação se amplia para 24 professores para cada magistrado, em média.

Se a comparação for com os brigadianos, a distorção se mantém em níveis parecidos. O gasto médio de um magistrado no Rio Grande do Sul é suficiente para pagar o soldo de 14 soldados PM 1ª Classe, o nível mais básico da tropa – cujo salário atual chega a R$ 3.153,32. Num paralelo com o posto de 1º tenente PM, mais alto da hierarquia de baixa patente da Brigada Militar (que não são considerados oficiais), um juiz pagaria oito desses profissionais da segurança pública a cada mês.

Afinal, por que um magistrado precisa ganhar tanto?

A resposta não é simples. Os dados revelados pelo CNJ no início de setembro incluem, além dos salários, vantagens remuneratórias que não existem em outras carreiras de Estado, como auxílio-moradia, vale-alimentação retroativo, verba indenizatória para transporte, abono em dinheiro para gastos com saúde e férias de 60 dias, entre outros benefícios. O descontrole sobre gastos adicionais é tamanho que o corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, propôs uma uniformização em um sistema eletrônico dos contracheques dos magistrados em todo o país, para que a sociedade – e a própria Corregedoria – possam acompanhar esses pagamentos.

“Caso as mudanças sejam aprovadas pelo CNJ, o salário de qualquer juiz brasileiro poderá ser conferido no portal do órgão de maneira clara. Queremos, com essa proposta, que todas as cortes tenham o mesmo sistema para processar a folha salarial, com critérios padronizados”, afirmou Noronha por e-mail ao Extra Classe. “As folhas estão nos portais de transparência, mas não se consegue entender o material”, reclamou. O ministro lembrou que existem verbas pagas a juízes em um estado que não existem em outro tribunal do país. No total, o grupo de trabalho criado em 2016 para analisar a remuneração dos magistrados chegou a um universo de 2 mil rubricas de lançamento – Noronha quer reduzir esse conjunto, em um primeiro momento, a no máximo 800 rubricas de pagamento.

O corregedor nacional de Justiça, João Otávio de Noronha, propôs uniformização eletrônica dos contracheques dos magistrados

Foto: Gláucio Dettmar/Agência CNJ

O corregedor nacional de Justiça, João Otávio de Noronha, propôs
uniformização eletrônica dos contracheques dos magistrados

Foto: Gláucio Dettmar/Agência CNJ

O ministro explicou ainda que o CNJ vai começar a fazer também um “juízo de valor” sobre as chamadas verbas indenizatórias, para saber se são mesmo de caráter indenizatório, sobre as quais não incidem impostos e nem contribuição previdenciária, ou se se trata de instrumentos para burlar o teto salarial e garantir mais remuneração aos juízes. O ministro afirmou que o presidente de um Tribunal de Justiça poderá responder por improbidade administrativa se houver identificação de qualquer fraude pela inclusão de verbas não autorizadas.

O descontrole é tamanho que na Justiça estadual do Mato Grosso do Sul os magistrados custaram R$ 95.895 por mês aos contribuintes, mais que o dobro da média mensal paga no país. No Tribunal é comum encontrar vencimentos de juízes e desembargadores acima dos R$ 40.000. Só que em agosto – último dado disponível no Portal da Transparência – três magistrados receberam vencimentos brutos acima de R$ 80 mil.

Um deles recebeu R$ 96.138,04 no contracheque em agosto – dos quais R$ 49.532,48 a título de “vantagens eventuais” e outros R$ 14.473,78 na forma de “indenizações”. A magistrada, que é juíza de Direito em Campo Grande, tem um salário básico de R$ 28.947,55. Mas recebeu, depois dos descontos de praxe, R$ 78.098,89 na sua conta, quase três vezes o valor do teto salarial da magistratura. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul se absteve de explicar a que se referem, no caso da servidora, as indenizações que justificaram a elevação do seu salário.

Em Goiás o custo médio mensal dos magistrados também foi muito acima da média, ficando em R$ 70.573. No Tocantins, a média ficou em R$ 68.967. O custo do sistema levantado pelo CNJ aponta que o Brasil gastou R$ 84,8 bilhões – 89% desse valor apenas com pagamento de servidores. Isso significa algo em torno de 1,5% do PIB, um índice muito superior a países como França (0,2%), Itália (0,3%) e Alemanha (0,35%). O cientista político e pesquisador Luciano Da Ros, vinculado à Universidade Federal do rio Grande do Sul (Ufrgs), usou dados de 2014 e concluiu que a Justiça custa mais que o PIB de 12 estados brasileiros.

Da Ros acredita que as distorções do sistema brasileiro não estão necessariamente nos salários dos magistrados – embora reconheça que estão muito acima da média mundial – mas na estrutura criada a partir do regime militar (1964/1985) que gerou o que ele chama de “indústria”. Hoje, o Brasil tem o mais alto índice de servidores per capita do planeta na Justiça: 205 para cada 100 mil habitantes, contra 30 da Inglaterra, 42 do Chile, 67 da Alemanha e 150 da Argentina.

Servidor do judiciário recebeu quase R$ 24 mil em agosto

Rprodução

Servidor do judiciário recebeu quase R$ 24 mil em agosto

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“Mesmo considerando que os salários de nossos juízes são de fato altos e com pouquíssimas variações de nível entre os mais altos e os mais baixos, o fato é que a maior parcela de gastos se destina ao corpo de servidores, assessores, cedidos, terceirizados e afins, muitos dos quais com remuneração bem elevada”, diz Da Ros, que em 2015 publicou o estudo O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória.

Além disso, a tal indústria provocou um efeito devastador no número de processos no país: segundo Da Ros, no início dos anos de 1990 eram 5 milhões de novas ações no Brasil a cada ano; agora, são 30 milhões. “Hoje é possível dizer que existe um processo em andamento para cada dois habitantes, o que é uma aberração”, afirma.

O pesquisador vai além. “De forma geral, temos um Judiciário que tem garantias de independência e atua com muitos recursos. Mas a grande questão é que há pouco controle e pouca transparência sobre sua atuação e, quando isso existe, essas práticas são muito recentes. Ninguém estuda, por exemplo, como funcionam as Corregedorias da Justiça no país. Ou seja, como é que se punem magistrados para além do CNJ? Que tipos de punições existem? Há poucos estudos sobre isso e essas são questões essenciais para se compreender como se constrói um Judiciário íntegro e probo”, finaliza.

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