MOVIMENTO

Uma casa do tamanho do mundo

Marcia Camarano / Publicado em 21 de maio de 2000

Moradores de rua enxergam a cidade que os abriga como um território de medo e

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Foto:René Cabrales

Foto:René Cabrales

violência, mas também de liberdade e comunhão.

O início de maio foi marcado pelo recrudescimento das ações de ocupação do MST, que gerou conflitos armados no Paraná. O agricultor Antônio Tavares Pereira, 38 anos, morreu no tiroteio com a Polícia na BR 277, em Campo Largo. Mais de 70 pessoas ficaram feridas e outras 200 foram presas.

Em Porto Alegre, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) acampou em frente à sede do Banco Central, no centro da cidade, para pedir crédito ao plantio. Mais de cem pessoas impediram a entrada dos funcionários. O abastecimento de dinheiro para as agências bancárias foi feito pelo Banco do Brasil.

O MST quer uma audiência com o presidente Fernando Henrique Cardoso para exigir cestas básicas de 45 quilos para todas as famílias acampadas no país. Além disso, o movimento quer a liberação de R$ 3,5 mil para cada família assentada viabilizar a produção agrícola.

Criança dorme sob marquise no centro de Porto Alegre

Foto:René Cabrales

Criança dorme sob marquise no centro de Porto Alegre

Foto:René Cabrales

Sentado embaixo das árvores, bebendo cachaça com limão com a Gringa, João, 53 anos (que parecem ser mais de 60), se orgulha de conhecer toda a cidade que o abriga, às vezes a contragosto. “Não estou na rua, eu participo da rua”, filosofa. Para mostrar que é diferente dos 206 homens e mulheres que moram na rua em Porto Alegre, catalogados pela prefeitura, João diz que é “líder comunitário” e que tem um filho, terceiro sargento em Itaqui. Difícil saber se é verdade.

Às 9h30min da manhã João já está bêbado, mas não tanto quanto Gringa, que mal consegue falar e é agressiva: “Por que quer saber meu nome? Não interessa. Você vai ajudar? Então não me enche”, diz, em frente ao copo plástico com cachaça e uma sacola com restos de comida. João e Gringa são assim: bebem, vêem o tempo passar de um dos lugares mais bonitos da capital, brigam, comem, bebem, passam o tempo.

Quem passa pela avenida Beira-Rio e contempla a beleza do Guaíba a qualquer hora do dia não percebe as pessoas que moram sob as árvores da margem. As 207 pessoas identificadas na pesquisa realizada ano passado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre População de Rua (NesPrua) – criado a partir de uma parceria entre a prefeitura, Hospital de Clínicas e universidade – têm as mais variadas histórias de vida. Eles são habitantes da cidade e, como tal, também a enxergam de maneira particular. Alguns não gostam, mas a maioria se acomoda e faz das marquises seu pequeno paraíso particular.

Para uns, a rua significa a fuga de uma família violenta; para outros, a liberdade para o consumo de álcool e drogas; para outros tantos, a perturbação mental é a causa. Mas, em todos os casos, as histórias de vida sempre envolvem perdas: do trabalho, da casa, da família, da auto-estima. Na rua, eles sequer têm documentos para mostrar quem são.

E não pense em abordar os moradores de rua da mesma forma. Os sentimentos são os mais variados. Há casos como o do andarilho que mora numa bicicleta, anda por tudo, mas não quer saber de papo.

– Poderíamos conversar um pouco?

– O que eu ganho com isso?

– Nada, só a nossa conversa.

– Então deixa pra outra oportunidade.

Antes dessa resposta, contudo, foi possível saber que a bicicleta é a sua casa. E que ele não se considera morador de rua por um motivo bem especial: já esteve em Brasília.

Na rua, a defesa é a fórmula para se manter vivo. E defesa pode-se traduzir por agressividade, como no caso da Gringa, ou andar em grupos ou ainda se isolar de tudo e de todos. Fábio, 29 anos, há quatro na rua, prefere ficar sozinho. “Tentaram me matar duas vezes”, conta. Tudo por causa da bebida. Alcoolista, ele decidiu largar mulher e filha, após a morte da mãe, para não ter de abandonar a bebida. Enquanto esteve em casa usava e abusava da violência. “Eu quebrava tudo e uma vez quis matar meu padrasto”.

Morador de rua usa monumento como cadeira para almoçar

Foto:René Cabrales

Morador de rua usa monumento como cadeira para almoçar

Foto:René Cabrales

Na rua, sozinho, Fábio vive do que ganha das pessoas e do que consegue vendendo revistas, latas e cuidando de carros. O dinheiro que ganha é gasto pouco com comida e muito com bebida. Todo mundo na volta do Gasômetro o conhece. O pessoal que passa lhe dá cigarro, alguns até param para conversar. Mas ele prefere andar sozinho, para evitar problemas. “É um monte de gente nessa situação. Tem muita bebedeira e tem sempre um querendo roubar as coisas dos outros”. Para tomar banho, ele procura o Abrevivência, um albergue da prefeitura. Mas não dorme lá. “É difícil arrumar vaga, tem muita gente. Vou lá, tomo banho e saio fora”. Na verdade, Fábio não consegue cumprir o principal requisito para permanecer no albergue, que é se manter sóbrio.

Fábio sente falta da família, mas fica “meio cabreiro” de voltar por ter feito “muita bobagem”. Ele é um dos moradores de rua que não gosta da vida que leva. “Se eu pudesse, mudava, mas cria um vício morar na rua. Para sair é difícil”. Mais difícil se torna porque Fábio não tem documentos. “Na rua, a gente perde tudo o que se tem”.

Moradora de rua arruma suas roupas: sem amigos

Foto:René Cabrales

Moradora de rua arruma suas roupas: sem amigos

Foto:René Cabrales

Quem sonha em mudar de situação é Paulo Conceição, 26 anos, há dois anos vivendo na rua. Ele com a mulher, Ilza Terezinha, 36 anos, e mais ninguém. Paulo não gosta de grupos. “Minha única amiga é minha mulher”, diz. Ele se mostra desconfortável com a vida que leva. Como Fábio, perdeu os documentos, levados pelas águas do Guaíba. Além disso, é analfabeto. Às vezes, ganha umas revistas e faz presente para Ilza. “Ela sabe ler”. O casal preocupa-se em deixar seu canto o mais parecido possível com um lar. Ilza tomou banho em um banheiro público e voltou de vestido limpo, cabelos penteados, para a entrevista.

Mesmo sem gostar de aproximação, o casal não consegue evitar as “visitas”, principalmente quando fazem comida. Solidários, eles repartem o que têm. “A gente tá cozinhando e vê alguém tomando uma facada, sendo espancado. Na rua a gente vê muita violência, a bebida leva à loucura”, diz Paulo. Ele e a mulher não bebem. Paulo mostra as batatas e os tomates já meio suspeitos que ganhou em um mercado próximo. O arroz, a massa, o pote de azeite, foi a mãe de Ilza quem deu.

Os dois se conheceram na rua, mas estão loucos para mudar de vida. “Não é nada bom viver assim, mas a gente tem de agüentar. Vamos conseguir uma casa”, sonha Ilza. Enquanto isso não acontece, eles andam pelos lugares carregando sacolas e sacolas com seus pertences. Na noite anterior à nossa conversa, eles tiveram de dormir em cima das tralhas para não serem roubados. “Não existe amigo na rua, só os dentes e ainda assim mordem a língua”, ensina Paulo.

Entre 1994 e 1995, quando foi realizado o primeiro levantamento sobre população de rua na cidade, Porto Alegre dispunha de 50 vagas em abrigos. Atualmente, são 160 vagas em prédios municipais e mais 60 em albergues conveniados (220 no total), todas sistematicamente lotadas, conforme o levantamento do NesPrua. Esse número, somado à população que está nas ruas (207 no final de 1999), chega-se a um contingente de 427 pessoas que teriam a rua como abrigo.

O estudo do ano passado ainda aponta que os processos de exclusão social são cada vez mais acentuados e responsáveis pelo aumento dessa população. “Para além do desemprego, temos a precarização das relações de trabalho, a fragilização de vínculos familiares, o desmantelamento de espaços organizacionais e das políticas públicas, restando poucos espaços onde os sujeitos possam fortalecer-se, reabastecer-se, reconhecer-se”, diz Vládia Paz, chefe de gabinete da Fundação de Educação Social e Comunitária (Fesc).

A maior parte dessas pessoas perambula pelo centro da cidade e pelos arredores, sendo raros os que vão parar nos bairros mais distantes. Isto porque o centro oferece mais oportunidade de sobrevivência, por meio de “bicos” e alimentação. Além disso, o centro possui imóveis abandonados, viadutos, abrigos e albergues. E a grande circulação de pessoas facilita a mendicância, principal sustento dos moradores de rua.

“A pesquisa serviu para quantificar e qualificar nosso atendimento à população que está morando nas ruas”, completa Vládia. O trabalho foi analisado pelo Fórum de Políticas Sociais de Porto Alegre. Como um dos resultados práticos está a intensificação do Programa de Reinserção da Atividade Produtiva. Trata-se de uma medida para atender a demanda de trabalho dessa população à margem do processo produtivo, pois, conforme Vládia, “não resolve simplesmente jogá-los no mercado de trabalho, é preciso fazer um acompanhamento”.

A primeira fase do programa durou seis meses e, dia 28 de abril, cerca de 60 participantes se “formaram”. Foram quatro horas diárias de trabalho em troca de uma bolsa-auxílio no valor de R$ 150. Outras 40 pessoas estão sendo encaminhadas para oficinas de trabalho da Secretaria da Secretaria da Produção, Indústria e Comércio (Smic).

Velho dormindo em banco de praça: com a roupa do corpo

Foto:René Cabrales

Velho dormindo em banco de praça: com a roupa do corpo

Foto:René Cabrales

Quem vive na rua muitas vezes encontra formas de relacionamento com significado emocional mais intenso que a própria família, revela o estudo. Exemplo disso é Sandra, 58 anos, que cuida do “lar” enquanto os três parceiros vão ganhar a vida catando lata e lixo. “A gente vive quietinho no canto da gente e não quer ser incomodado. Se você vai para o albergue hoje de noite, amanhã às 5h tem que sair. Se é só para dormir, durmo aqui mesmo”. Sandra lava a roupa da “família” no rio, com sabão, arruma os poucos pertences do jeito que parece uma casa, cria uma galinha e cachorros e organiza tudo ouvindo um pequeno rádio de pilha. Com ela moram dois rapazes e uma jovem de 20 anos, expulsa de cada pela mãe quando soube que a garota estava grávida.

“Já tive uma casa, que deixei para os meus filhos orgulhosos, que se fizeram gente. Eles brigavam muito e eu preferi sair. Hoje, tomo conta das coisas dos meus amigos, que são minha nova família há quatro anos. Fome a gente não passa”, relata. Sandra não sente inveja dos homens de vida normal, que passam na avenida há poucos metros, que ela sabe terem casa, emprego, família, cama para dormir. “Se eles têm, que Deus ajude eles e a mim não desampare”.

Mas, se ela ganhasse uma casinha, iria para dentro, sim, levando seus três parceiros. A solidariedade é a principal característica dessa mulher magra, já sentindo problemas nos pulmões. O último integrante de seu grupo chegou em casa só com a roupa do corpo. Tinham-lhe roubado tudo. Sandra lhe emprestou cobertor, deu de comer e lavou a única muda de roupa que sobrou para ele. Coisa de mãe que ficou em casa, enquanto os homens buscam o sustento.

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