MOVIMENTO

Desobediência cidadã

Ana Esteves / Publicado em 20 de março de 2003

O que um estudante italiano, uma desempregada argentina e um cientista indiano têm em comum? À primeira vista, pode parecer uma charada sem reposta, mas, se a contextualizarmos entre os dias 23 e 27 de janeiro de 2003, em Porto Alegre, mais precisamente no III Fórum Social Mundial, com certeza conseguiremos encontrar os elos que os ligam, o principal deles, a rebeldia. Além disso, os três fizeram parte do painel Insurgência Cidadã Contra a Ordem Estabelecida, sendo um dos destaques do Eixo que tratava de Poder Político, Sociedade Civil e Democracia. Na ocasião, relataram suas experiências junto ao que se convencionou chamar de “novos movimentos sociais” e apontaram como essas novas formas de resistência e transgressão contribuem para ampliar os limites da cidadania. O debate precedeu as manifestações contra a guerra EUA x Iraque que levaram às ruas milhões de cidadãos em todo omundo a favor de uma solução pacífica para o conflito, o que mostra que os ecos do FSM ainda soam alto em alto e em bom tom.

Não queremos refeitórios populares, porque um país que exporta alimentos deveria poder alimentar todas suas crianças; se estamos num refeitório é porque é um desastre a distribuição da riqueza na Argentina. Nós queremos um país onde não haja refeitórios populares, pois, quando se tem trabalho e dignidade não se passa fome. A declaração de Sílvia Saravia do grupo de piqueteiros argentinos Barrios de Pié, arrancou aplausos entre os participantes. O movimento, criado em janeiro de 2002, realiza piquetes e marchas periódicas em Buenos Aires e em diversas regiões do país, protestando por trabalho e comida. “Trata-se de um movimento composto majoritariamente por desempregados, de bairros urbanos onde habitam pessoas que há bem pouco tempo tinham trabalho e que, com a crise econômica e social, saíram massivamente às ruas. Somos, na maioria, mulheres, que saem às ruas junto com nossas crianças com o objetivo de resgatar nossa cidadania. Por isso ocupamos espaços públicos, interrompemos as ruas e estradas como forma de reclamar ao Estado uma solução imediata aos nossos problemas mais urgentes: saúde, educação, serviços públicos, terra e comida”, afirmou Sílvia.

Segundo ela, o Barrios surgiu com a proposta de trabalhar com educação popular, baseado em Paulo Freire, ajudando as crianças que tinham dificuldades nas tarefas escolares. Mas, com o agravamento da crise Argentina, os manifestantes começaram a organizar refeitórios públicos e então a tomar as ruas e a Plaza de Mayo, na capital Argentina. As ações do Barrios de Pié já repercutem em outros movimentos sociais pelo mundo, como no caso do Desobbedienti, um grupo de ativistas italianos que pregam a desobediência como única forma de combater os fundamentalismos. Segundo Luca Casarini, um dos desobedientes que participaram do Fórum, os piqueteiros integram um movimento pacífico. “Assim como nós, nunca recorreram às armas de fogo. Há mil maneiras de combater a guerra. Cada cidadão é um veículo de marketing e deve se expressar contra a guerra”, disse.

Durante sua participação no painel sobre Insurgência Cidadã, outro desobediente, Francesco Caruso, anunciou que o grupo planeja invadir embaixadas norte-americanas e bases da Otan assim que os Estados Unidos lançarem a prometida ofensiva contra o Iraque. Para eles, a guerra no Iraque será a oportunidade para lançar uma mensagem contra as ações norte-americanas. O movimento, que, segundo Casarini conta hoje com 20 mil militantes, está articulando protestos semelhantes com outros países, especialmente na Europa, e também prepara campanhas para que as pessoas boicotem empresas e bancos que financiem o conflito. Um dos alvos já definidos é a base americana de Camp Derby, na Toscana (região central da Itália), um ponto estratégico para o envio de armas e equipamentos ao Oriente Médio. “Não basta apenas mobilizar milhões de pessoas nas praças. Temos de entrar lá e sabotar para que não possa haver guerra”, disse Caruso, preso em novembro de 2002, na Itália, sob acusação de subversão.

Casarini afirmou ainda, divulgando antecipadamente a ação, que os desobedientes sabem que irão encontrar segurança reforçada nas bases e embaixadas, mas ainda assim prometem levar o protesto adiante. “Estamos discutindo, sempre de forma pública, qual a melhor maneira de garantir nossa segurança. Certamente haverá policiais e bombas, num esquema de guerra contra os civis”, afirmou.

No dia 15 de fevereiro, os desobedientes emitiram um programa de televisão via satélite em solidariedade ao Iraque que pôde ser visto naquele país. Uma semana depois, eles fizeram, em Roma, uma reunião com representantes do Exército Zapatista de Libertação Nacional, grupo mexicano que reivindica melhores condições para os indígenas. “Somos contra qualquer tipo de fundamentalismo, seja o de Alá ou o de Wall Street. Achamos que nesse processo surgirá uma outra legalidade, uma mudança radical das leis nacionais e internacionais”, completou Casarini.

O físico indiano Vinod Raina, membro do People Science Movement (um movimento único na Índia, empenhado em desenvolver a chamada ciência popular, que busca encorajar as pessoas a planejar e implementar suas próprias idéias de desenvolvimento), afirmou que existem três tipos de resistência à ordem estabelecida: “Através do terrorismo, do endurecimento das identidades, sejam elas religiosas, culturais ou nacionais e a insurgência democrática”. Raina destacou ainda a importância de se incluir o conceito de solidariedade em toda a forma de resistência, e exemplificou. “Em 1972, as mulheres de uma aldeia viram que chegavam homens na floresta para cortar as árvores, elas correram para lá e abraçaram as árvores para que as mesmas não fossem derrubadas. Este foi um marco do movimento ecológico da Índia, já que a floresta era sinônimo de subsistência para essas pessoas, pois usavam as árvores para fazer fogo, comida. Elas agiram sem violência”.

Raina ainda relatou que pertence a uma região da Índia que, além de sofrer as conseqüências do neoliberalismo, trabalha com o combate aos fundamentalismos religiosos. “E as formas de resistência são muito complexas, pois não se trata apenas de uma luta de classes apenas, mas de castas, de índios e mulheres que resistem”. Ele finalizou afirmando que o Fórum Social Mundial funciona como uma plataforma de convergência entre todos os movimentos, “dos feministas aos ecológicos e sociais, tendo como grande desafio moldar a resistência política”.

É por essas e outras que o próprio FSM, representado por Francisco Whitaker, membro do Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), entidade que integra o comitê de organização do evento, fez parte da mesa de debates. “O Fórum Social Mundial se situa dentro de um quadro de diferentes possibilidades de insurgência. É uma expressão de insurgência cidadã e representa a concretização de métodos mais eficazes de mudança que levem a resultados mais perenes. No fundo o FSM propõe que entremos dentro de nós mesmos, mudando nossos comportamentos e nossas estruturas organizativas, bem como as nossas relações com os outros e as relações com as nossas organizações. Porque o outro mundo possível só será realmente possível se houver essa mudança profunda”, afirmou Whitaker.

Ele aproveitou a ocasião para fazer um breve histórico sobre as raízes do Fórum. “Ele não surgiu por acaso. As idéias passaram por muitas cabeças pelo mundo a fora, como Paulo Freire, Marcuse, todos anarquistas e libertários. Essas idéias se concretizaram no final dos anos sessenta, quando a indignação e a revolta fez com que diferentes jovens no mundo todo, especialmente em 68 na França, se voltassem contra os autoritarismos. Isso refletiu na década seguinte, que tinha outra maneira de se organizar politicamente e também nas décadas de 80 e 90. As pessoas passaram a perceber a necessidade de pensar e agir como cidadãos, filiados ou não a partidos, sindicalizados ou não. O Fórum surgiu no meio do processo de mobilização social contrária às decisões neoliberais e hegemônicas, organizou-se na linha, na perspectiva, na cultura das redes sem o comando de ditadores. Ele propicia, na riqueza dos entrelaçamentos, a interpenetração de ações até então estanques, buscando pela ação de todos a efetiva transformação do mundo”.
Estratégias de controle

Além do painel sobre Insurgência Cidadã, o Eixo 4 procurou refletir também sobre o papel das cidadanias na construção do tão falado mundo melhor. Para o membro da Balkan Social Movement Networks (Rede de Movimentos Sociais dos Balcãs), Andrej Grubacic, muitos movimentos sociais procedentes dos países balcânicos têm trabalhado, cada vez mais, com um conceito diferente de globalização. “Tentamos encontrar e desenvolver um novo tipo de luta, novos paradigmas de organizações e novos paradigmas para estabelecer alternativas ao modelo neoliberal. Buscamos, por exemplo a implantação de um sistema de orçamento participativo, a exemplo do que acontece aqui, em Porto Alegre”.

Grubacic relatou ainda que nos Balcãs os movimentos sociais estão muito preocupados com as questões da economia participativa como alternativa ao neoliberalismo e ao capitalismo. “Nossas ações se dão em quase todos os países que compõem Balcãs. Estamos tentando nos mover da oposição para a proposição, trabalhando com uma militância crescente, baseada em solidariedade e com mais de 10 mil ativistas”.

Outro exemplo de mobilização cidadã foi apresentado pela representante da Iniciativa da Quinta Mãe, a israelense Orit Lavnin-Dgani. O movimento organiza mulheres judias e árabes que buscam alternativas para paz entre israelenses e palestinos. “O movimento, criado em 2000, é uma continuação do Quarta Mãe, criado em 1970. Essa é a primeira vez em que as mulheres vão até os soldados, dialogam com eles, pois a guerra não é uma opção e todo o conflito tem uma solução, que virá através das palavras e não das balas. Nós queremos mudar a linguagem da guerra, pois acreditamos que, com as palavras, as pessoas passem a acreditar que é possível encontrar uma solução”.

Orit contou que a Quinta Mãe trabalha muito com conferências e seminários que visam estabelecer o diálogo com as pessoas, envolvidas direta ou indiretamente nos conflitos. “Trabalhamos a questão do medo, do estresse dessas pessoas”. Ela conta que o movimento também trabalha muito com a mídia. “A temos como uma ferramenta muito importante. Procuramos estabelecer contatos com mulheres que trabalham nos meios de comunicação e hoje sabemos que somos relevantes para elas, conquistamos nosso espaço. Agora também queremos trazer essas mulheres para o diálogo com as pessoas, pois temos a esperança que o público de Israel vá adotar um novo jargão: o de solução para a guerra, pois nem eu nem as mulheres do meu país temos filhos suficientes para levar à guerra”, ironizou.

Na mesa de debates, ao lado de Orit, estava o representante da Conferência Nacional Anual sobre Desenvolvimento Social (Conades/Peru), Héctor Bejar. Ele falou sobre a forma como os cidadãos peruanos, pós-Fujimori (e mesmo durante o governo do ditador), têm se organizado para “vigiar” as políticas públicas. “Temos desenvolvido discussões sobre ética e sobre formas de nos mantermos atentos quanto à conduta profissional dos nossos governantes”, disse. Ele citou, como exemplo, o caso de esterilização em massa de mulheres pobres, que, a partir de 1997, foi imposto pelo Ministério da Saúde. “Ao ano, eram esterilizadas 250 mil mulheres, sem ter direito à escolha sobre o que fazer com seu corpo. Houve então uma reação dos movimentos feministas e da sociedade civil, que denunciaram tal política, que veio a cair em 1998”.

Bejar também recordou outras ações dos cidadãos peruanos como a vigilância sobre o sistema estatal de distribuição de alimentos para a população carente, o controle sobre serviços públicos privatizados como as empresas de telefonia e também de ações voltadas para questões ecológicas. “Há pouco tempo, a população se opôs à instalação de uma empresa mineradora que poluía as águas dos rios”, completou.

As estratégias de controle cidadão, desenvolvidas pela Rede de Organizações de Mulheres Européias (Wide), também foram destaque durante o painel. Membro da Wide, Carmem Cruz, falou sobre os objetivos do movimento. “Trabalhamos fundamentalmente com temas ligados à macroeconomia e gênero, com o objetivo de definir uma estratégia para o desenvolvimento sustentável, centrado nas pessoas, com a definição de regras e direitos globais que protejam a cidadania (especialmente das mulheres) das arbitrariedades do mercado”, frisou. Carmem afirmou que, para isso, a Wide realiza pesquisas e análises de macroeconomia e de estruturas financeiras internacionais, sob o ponto de vista de gênero.

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