MOVIMENTO

ÍNDIA: a realidade é muito pior

Jéferson Assumção, especial de Mumbai, Índia / Publicado em 16 de março de 2004

Maior encontro cultural e político de todos os tempos entre o Oriente e o Ocidente, o IV Fórum Social Mundial (de 16 a 21 de janeiro, em Mumbai, Índia), foi um necessário banho de realidade ao movimento altermundista. Foi essa a opinião que mais se ouviu durante os dias de Fórum. Da Índia, os militantes antiglobalização viram o mundo do fundo do poço, um poço de um bilhão de pessoas (a população do país é maior do que a soma das Américas e da Europa), de 200 milhões de intocáveis (os dalits), mais do que a população brasileira, e de problemas impensados mesmo se tratando do Fórum Social Mundial. A questão agora, para quem esteve em Mumbai, é entender como toda essa crua realidade deverá chegar ao próximo FSM, em janeiro de 2005 em Porto Alegre, e como poderá ser absorvida.

O Fórum foi, mais uma vez, um espetáculo, uma mostra da diversidade, de culturas e idéias. Mas em Mumbai, antiga Bombaim, o movimento antiglobalização econômica levou, mesmo, foi um choque. E talvez agora precise de algum tempo para se recuperar. Por todo lado, os ocidentais, principalmente, viram um colorido e constrangedor desfile de misérias. Esqueléticos trabalhadores de Bangladesh, agricultores indianos sem-terra, pastores do norte da Índia temerosos de uma guerra nuclear com o vizinho Paquistão, desempregados famintos, religiosos alertando para o problema do fundamentalismo deram ao evento um panorama brutal do mundo de hoje.

Ao todo, estiveram no IV Fórum Social Mundial 80 mil pessoas de 2.660 organizações de 132 países. Foram 80 voluntários de 20 países e 180 intérpretes, além de 3.200 jornalistas de 45 países que cobriram 13 grandes eventos realizados pelo Comitê Organizador do Fórum, 35 seminários autogestionados e 1.200 oficinas, também responsabilidade das organizações não-governamentais.

Do lado de fora das instalações onde se realizaram os painéis, no Nesco Ground – um parque a uma hora de trem do centro de Mumbai – foram montados alguns palcos, espalhados entre grandes estruturas de tecido e bambu. Ali, revesaram-se diariamente 1.500 artistas de diversas partes da Ásia, que totalizaram 1.500 eventos entre peças teatrais e shows musicais. A parte cultural se completou com um festival de 85 filmes sobre as outras edições do Fórum.

Dentro dos hall de conferências, no entanto, havia um ar de reprise. Para quem já participou de outras edições do evento, era como voltar no tempo, ao primeiro ano de realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2001. Temas e conceitos já tratados à exaustão pelo movimento altermundista foram reapresentados, mesa após mesa, a um público encantado, como na primeira vez. Visto por aí, o IV Fórum Social Mundial pode ter sido considerado uma freada no movimento que se opõe ao neoliberalismo, ao contrário do que percebeu Cristophe Aguiton, da rede de movimentos sociais Focus on the Global South e membro do Conselho Internacional. Para ele, uma das lições da Índia é a necessidade de fortalecer a participação popular, o que pode ser aprendido com uma cultura indiana de mobilização política muito forte. Segundo Aguiton, há na Índia duas raízes de movimentos. Uma é a dos movimentos de massa, dos partidos tradicionais, sindicatos e movimentos de mulheres. A outra é a dos movimentos populares, com características próximas ao dos sem-terra no Brasil. “Trata-se de saber como esses dois movimentos vão conseguir trabalhar juntos a partir deste Fórum”, disse Aguiton.

Os intocáveis e o futuro do FSM

Os dalits não podem ser tocados e, por isso, passam a vida a trabalhar em serviços braçais em que não tenham contato com os demais indianos, abrindo buracos e limpando latrinas, por exemplo. Este foi um dos grandes temas do Fórum: a discussão sobre o milenar sistema de castas indiano, que encobre uma rígida e injusta estrutura social. Para tratar do assunto, foi realizado, dentro do FSM, o Fórum da Dignidade Mundial, realizado pela Conferência Nacional das Organizações de Dalits. Outras discussões importantes foram Terra, àgua e soberania alimentar; Mulheres e a globalização; Militarismo, guerra e paz; Globalização, governo global e estado-nação; Testemunhos japoneses sobre as bombas H e A; Meios de comunicação, cultura e conhecimento; Ocupação dos Estados Unidos no Iraque e os problemas da Palestina e do Afeganistão; além de Exclusão e opressão religiosas.

Para o jornalista Bernard Cassen, diretor do jornal Le Monde Diplomatique e da Attac, essas temáticas também mostraram uma Índia que nem mesmo o Fórum Social Mundial conhecia, já que, sem informação de qualidade, o mundo ocidental sabe bem menos do que imagina sobre o que acontece na Ásia e na África. “A questão é que, agora, precisamos fazer com que o Fórum de Porto Alegre seja muito diferente do que tem sido. É preciso avançar, aprofundar, fazer com que essa estrondosa força política que temos caia em algum lugar da Terra, tenha algum impacto”, definiu o jornalista, que propôs uma reformulação total dos trabalhos do Fórum. “Temos que sair de Porto Alegre com uma pauta mínima para colocar em ação de uma vez”, defendeu uma das posições mais fortes no Fórum, atualmente. A outra é a de que o FSM segue bem como está e que amadurece ao seu tempo, posição defendida principalmente pelas ONGs.

E este é o outro lado. A edição indiana do Fórum foi um balde de uma necessária realidade aos militantes da chamada “nova geração política”, a maioria europeus e norte-americanos, além de uma boa camada da classe média latino-americana. Dois dos políticos que perceberam essa importante mudança foram o Prefeito de Porto Alegre, João Verle, e o ministro das Cidades, Olivio Dutra, integrantes da delegação brasileira na Índia que contou, ainda, com a presença do ministro da Cultura, Gilberto Gil, no show de encerramento do Fórum, dia 21. Verle foi à Índia junto com o chefe de gabinete, Eduardo Mancuso, para tratar da realização do próximo FSM, em Porto Alegre, 2005. Impressionou-se com a pauperização do público presente no Nesco Ground. “É marcante a diferença entre o público daqui e o de Porto Alegre. Vemos uma população empobrecida participando e trazendo questões completamente novas para o movimento”, disse o prefeito, que considera que o próximo Fórum de Porto Alegre não passará incólume ao que o movimento viu na Índia.

Convivência foi o grande acontecimento
Uma das formas de aumentar essa conscientização talvez seja a convivência, e esse foi o grande acontecimento do Nesco Ground. As ruas centrais do parque concentraram todos os dias uma multidão desfilando, sem parar, bandeiras, minimarchas, protestos, cartazes e música, muita música oriental, produzida por instrumentos exóticos de culturas distantes (para os ocidentais). Do Nepal, da Tailândia, de Bangladesh e do Japão, mostravam-se roupas tradicionais num colorido muitas vezes maior do de qualquer das edições em Porto Alegre. Para o jornalista Antonio Martins, da Ciranda Internacional da Informação Independente e integrante do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, não há dúvida de que este foi um dos grandes ganhos do Fórum. “O FSM mostrou o colorido e a pluralidade dessas culturas que pouco conhecemos e as diversas formas de resistência que existem por aqui”, define Martins. Ele foi um dos que diariamente, de seu local de trabalho, na sala de imprensa, até o local de realização das conferências, necessitava atravessar a mais movimentada dessas ruas e que serviu como uma imensa passarela dos movimentos sociais asiáticos. Martins referiu-se à movimentação como o “Fórum das Ruas”, uma colorida e espontânea mostra, para o mundo, da diversidade das lutas orientais.
A necessária absorção da realidade

Já antes de o IV FSM iniciar, militantes, como o brasileiro Fernando Costa, do Comitê do Acampamento Intercontinental da Juventude, um dos primeiros brasileiros a chegarem na cidade do Fórum, notavam a diferença com Porto Alegre. Instalado no comitê de organização do Fórum, uma grande e barulhenta sala na sede do Partido Comunista Indiano, Costa era um dos que trocavam impressões sobre a que ponto o “processo” Fórum Social Mundial chegou. Em seus primeiros dias de Mumbai, viu que a necessidade de construir um mundo melhor é bem mais urgente do que se pensa em Porto Alegre. “Precisamos agora de uma fórmula que mude também o Fórum para que possa absorver toda essa realidade daqui”, apontou, demonstrando uma preocupação geral que perpassaria todo o evento.

A verdade é que o Fórum não podia ter sido feito num lugar mais apropriado. Mumbai, antiga Bombaim, é uma cidade de cerca de 16 milhões de pessoas. Dessas, um milhão moram nas ruas, 6,5 milhões em favelas e 1,5 milhões alugam subabitações, conforme informações do arquiteto P. K. Das, responsável pela estrutura física do Fórum. Segundo ele, estima-se que, em 2020, Mumbai, chamada pelos indianos de “capital da esperança”, e que, por isso mesmo, atrai milhões de indianos do interior, passe a ser a cidade mais populosa do mundo. Há 20 anos, o arquiteto trabalha para tentar diminuir um dos maiores problemas da cidade: o déficit habitacional. Mas não é fácil.

Favela em Mumbai é uma coisa difícil de se imaginar até com o que se conhece no Brasil, mesmo nas piores regiões de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Não se trata de bolsões de miséria nas periferias, mas de uma massa de miseráveis espalhada por todos os cantos dessa que é a maior cidade da Índia. Em frente aos grandes hotéis do tempo da colonização inglesa (encerrada só em 1947), dormindo nos postos de gasolina sob praticamente todas as marquises, estão mais de um milhão de pessoas, quase a população inteira de Porto Alegre, nas ruas. Elas dividem o espaço com vacas, ratos e corvos. As vacas, sagradas, passam o dia nas lixeiras como vira-latas à procura do que comer. Mastigam jornal em busca de nutrientes. “O pior é que a grande maioria nem sabe se tem algum direito ou não a uma moradia mais digna. Espero que este fórum possa ajudar os indianos a resolverem seus problemas, pelo menos a começarem a ter uma conscientização sobre o que é a globalização neoliberal”, aponta Das.

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