MOVIMENTO

A estatística do novo pobre

Marcia Camarano / Publicado em 16 de abril de 2004

Novo rico todo mundo conhece. É o cidadão que saiu do patamar da pobreza e, em razão de seu novo status, adquiriu comportamentos peculiares: compra muito e sem perguntar o preço, exibe jóias ao máximo, obtém roupas de grife, dirige carro importado. Mas a figura do novo pobre é diferente. Fenômeno, pode-se dizer recente, cujo ápice manifestou-se na era FHC. De acordo com o IBGE, o índice de desempregados com alta escolaridade cresceu 263% nos últimos 10 anos entre pessoas de 25 e 39 anos. Esse desempregado, porém, não freqüenta as agências de emprego que se espalham  pelo  país e estão sempre  lotadas  de pessoas sem uma qualificação específica, justamente por ter uma profissão. Mais do que isso, por ter vivido dela durante muitos anos, feito carreira e conhecido o sucesso.

O novo pobre – não com esse nome – é identificado na Síntese de Indicadores Sociais de 2002, com dados de 2001, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O fenômeno atinge desempregados com elevado nível de escolaridade (9 a 11 anos de estudo) e vem aumentando de modo alarmante. Com mais escolaridade, aponta a pesquisa, a taxa de atividade cresce, mas isso não garante a ocupação. Em 2001, o índice de desemprego para os sem-instrução ou com até três anos de estudo ficou em 5,4%, enquanto entre os com mais de oito anos de estudo foi de 6,4%. O desemprego é uma das faces dessa moeda, causando fracasso, não só profissional, pois, em muitos casos, acarreta também o desmoronamento da vida pessoal e afetiva. Quem nunca teve nada não se importa de mostrar o rosto em busca de qualquer emprego. Mas quem já conheceu a glória e perdeu prefere o anonimato. São pessoas que lotam não as salas de espera das agências de emprego físicas, e sim as salas virtuais, via internet, em busca de um trabalho que lhes garanta sobrevivência. “Quem vem até a empresa é o pessoal menos qualificado, os profissionais mais habilitados usam a internet”, constata Valdecir de Lima, gerente da agência Employer no Rio Grande do Sul. Muitos candidatos sequer dão o nome, preferem usar a senha “confidencial”. (segue)

Vidas amargas
Poucos se arriscam a mostrar o rosto e a assumir sua condição, como Newton Teixeira, que aos 55 anos vive a fase que considera a mais amarga de sua vida. Quando olha para trás, recorda a juventude bem-vivida em boas escolas. Tinha autoconfiança, conseguia os empregos que buscava. Freqüentava clubes de prestígio em Porto Alegre, possuía amigos influentes e não faltavam namoradas. “Trabalhei em banco por quase 30 anos e fiz de tudo, fui desde escriturário até gerente, sempre lidando com dinheiro, com valores”, lembra. Por força do meio, estudou administração e contabilidade. Ele foi gerente de instituições financeiras, como Mercantil de São Paulo, Fin-Hab, Sibisa, Bancesa, Banco de Fortaleza.

Newton, entretanto, foi vítima do enxugamento do setor. Com 47 anos, viu-se na rua, sem perspectiva de um novo emprego. Decidiu abrir um negócio com um amigo, uma empresa de facttoring, que durou três anos e deixou um prejuízo de mais de R$ 40 mil. Sem trabalho e endividado, ele ficou sem alternativas. A dificuldade profissional atingiu a vida pessoal: separou-se da mulher após 12 anos de casamento, com quem teve uma filha. “Sempre tive uma vida legal nesses 30 anos, tinha carro desde os 21 anos.”, conta. Por fim, seu último veículo, um Kadet, teve de ser vendido para poder comer. “Estou há cinco anos sem carro, sem apartamento, sem dinheiro. Para mim, nesses últimos cinco anos, foi como estar em um navio em alto mar no meio da tormenta.”.

O ex-bancário não esconde a revolta diante dos amigos e conhecidos, alguns deles deputados, vereadores, donos e diretores de empresas que sempre o rodearam e, na dificuldade, o abandonaram. “Eu era o Fulano de Tal, que chegava nos lugares e todo mundo vinha no meu colo e, de repente, estou sem amigos, sem trabalho, sem mulher, sem guarida.” O emprego que ele tanto buscou só veio depois de um ano de luta e desespero, por meio dos classificados de um jornal, em uma imobiliária, por um salário de R$ 280,00. “Nunca tinha trabalhado nessa área, mas tive de aprender, aceitei, porque tinha de comer.”

Newton voltou a morar com a mãe, de 83 anos, continua trabalhando na imobiliária, como comissionado (ganha uma porcentagem em cima do que vende). “Tenho de ir à luta, correr atrás. Sou um cara que sempre teve bons salários, amigos influentes, mas isso não foi o elixir da felicidade. Considero-me um náufrago, estou vivo, tentando melhorar, porque eu sou útil.”
A desigualdade é a marca da sociedade brasileira

A análise do IBGE revela que a metade dos trabalhadores brasileiros ganha de meio a dois salários mínimos. Além disso, indica que a camada da população considerada mais rica – 10% – ganham 18 vezes mais do que os 40% mais pobres. “A síntese confirma que o traço mais marcante da sociedade brasileira é a desigualdade”, constata o documento.

Os dados do IBGE comprovam um estudo que vem sendo realizado há algum tempo pelo professor de Economia e secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo, Marcio Pochmann. “Há uma novidade importante na condição de pobreza do Brasil e que diz respeito fundamentalmente aos grandes centros metropolitanos”, constata. De acordo com Pochmann, antes o pobre brasileiro era basicamente o migrante, vindo do interior, geralmente negro, vivendo em uma família grande, com baixa escolaridade e sem qualificação profissional.

O desemprego verificado a partir da década de 80, que atinge tanto jovens quanto pessoas com mais de 40 anos, é a chave para entender a mudança de perfil da pobreza no país, explica o secretário. E, importante, aumentou o índice de desemprego para pessoas com nível universitário. O índice de desempregados com alta escolaridade cresceu 263% nos últimos 10 anos entre pessoas de 25 a 39 anos. Pochmann sustenta que, na nova pobreza, o mercado de trabalho não só reproduz como produz a pobreza, já que o trabalhador, apesar de qualificado, não encontra postos de qualidade nem salários adequados e acaba fazendo bicos para sobreviver.

Para ele, somente para gerar cerca de 1,5 milhão de novas vagas que atendam o contingente de brasileiros que ingressam no mercado de trabalho anualmente, a economia nacional precisaria crescer acima de 5,5% ao ano. “Nos últimos 10 anos, entretanto, o Brasil teve uma média anual de crescimento abaixo de 2%, e o resultado disso não poderia ser outro que não a forte presença do desemprego, da pobreza e da má distribuição de renda.”

A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), divulgada em outubro de 2003, mostra que poucos postos de trabalho foram abertos em 2001 e 2002, e os que surgiram serviram apenas para sobrevivência precária. Nesse período, 96,3% das ocupações foram não-remuneradas ou com renda inferior a um salário mínimo. Além disso, a renda ficou ainda mais concentrada. Em 2002, os 10% mais ricos possuíam renda 58,7 vezes superior aos 10% mais pobres. Em 1995, era 47 vezes.

Segundo Pochmann, a nova pobreza é mais complexa e de mais difícil enfrentamento. Mas para que esse problema comece a ser encarado, ensina, é preciso que o país volte a crescer. Pochmann defende políticas amplas de proteção social ao desempregado e que combatam a extrema concentração da renda. À frente da Secretaria, ele vem desenvolvendo uma série de projetos que visam à inserção das pessoas ao mundo do trabalho. Entre eles, programas voltados para jovens e para trabalhadores com mais e 40 anos.

Problema está na mira do governo

O problema parece estar na mira do governo federal. Recentemente, o Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, tido como linha-dura justamente por ser o responsável pelo equilíbrio das contas do país, declarou que o Brasil vai crescer 3,5% em 2004 e que o governo deve trabalhar com políticas de renda para diminuir o desemprego. Ele disse que o governo está consciente de que está abrindo agora uma oportunidade histórica para a Nação. “Se tomarmos as medidas microeconômicas necessárias para organizar esse processo, vamos crescer 3,5% este ano, 4% no próximo, e o Brasil vai ganhar força para um crescimento sustentável de longo prazo”, informou.

O que se convencionou chamar de neoliberalismo é uma prática política e econômica baseada nas idéias de pensadores monetaristas ingleses e norte-americanos defensores de uma redução da ação do Estado na economia – uma teoria que ganhou forma com a ascensão de Margareth Thatcher ao cargo de primeira-ministra na Grã Bretanha em 1979 e com Ronald Reagan chegando à presidência dos Estados Unidos em 1980. Aqui no Brasil, conforme escreve o professor associado do Departamento de Ciência Política da Unicamp, Armando Boito Júnior, em seu artigo “Neoliberalismo e Burguesia no Brasil”, a implantação desse modelo alterou as relações de classe e de poder existentes: “O neoliberalismo desmontou o protecionismo típico do período desenvolvimentista e reduziu a já precária rede de direitos sociais herdados do populismo”. Para ele, as principais políticas que corporificaram esse desmonte foram a abertura comercial e financeira, a política de privatização, a redução dos direitos sociais e a desregulamentação do mercado de trabalho.

Há categorias profissionais que sofreram em cheio com a política implementada nos últimos anos no país, como os bancários, que na década de 1980 somavam 800 mil e hoje são menos de 400 mil. “Por conta da reestruturação do sistema financeiro, da introdução de novas tecnologias, principalmente da automação, e das privatizações, houve demissão em massa”, informa o diretor de comunicação do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, Ademir Wiederkehr. Com esse brutal enxugamento, uma vez desempregado, é difícil o retorno.

Magda Susana Garcia entrou no Banespa por concurso público em 1985 e permaneceu lá por 16 anos. Saiu em dezembro de 2001 por conta do Plano de Demissão Voluntária (PDV), adotado após a privatização do banco. “Eu não queria sair, minha perspectiva era de me aposentar lá, mas me senti compelida a aceitar o PDV”, conta . Formada em ciências contábeis, Magda, hoje com 41 anos, casada e mãe de dois filhos, critica-se por “ter me acomodado”, quando poderia ter procurado melhores opções de trabalho. A segurança daquele emprego a impedia de ver o quanto a vida estava difícil fora, o que ela só percebeu quando passou a procurar um novo posto de trabalho. “A concorrência é muito grande.” Magda atualmente está estudando para fazer concursos. “Faço todos os que aparecem.”

Qualificação não significa emprego

A vida também está dura para quem acabou de sair da faculdade. A jornalista Letícia Saldanha, 24 anos, formada em 2001, enquadra-se nesse perfil estudado pelo secretário Márcio Pochmann. Ela terminou o curso cheia de sonhos, pensando em trabalhar na profissão que escolheu e mais, em um segmento específico: a assessoria de imprensa. Porém não encontrou nada. Letícia mora com os pais e nem pensa em abandonar essa condição, já que não consegue emprego fixo. “Não está fácil para ninguém, mas nunca pensei que fosse tão difícil.” Ela, porém, pretende continuar investindo na carreira e planeja o futuro. “Em 2004, quero começar um mestrado.”

O tipo de pensamento da jornalista Letícia Saldanha é aplaudido pelo professor titular de Sociologia da UFRGS, Antonio David Cattani. Conforme ele, a culpa pela falta de emprego não é dos indivíduos, e sim da orientação econômica adotada pelo país nos últimos anos. “Não se deve desestimular quem busca qualificação, pelo contrário, é necessário que as pessoas se especializem cada vez mais”, aconselha.

Segundo Cattani, com esse modelo econômico, foi criado o mito da empregabilidade, que responsabiliza o indivíduo por não conseguir uma colocação, quando o problema é falta de mercado. “A década de 1990 não gerou empregos e não houve medidas de governo e do empresariado para gerar mais postos de trabalho. O resultado hoje é a sobra de pessoas qualificadas.”

Ele considera hipócrita a individualização da culpa por não alcançar o emprego: “Essa lógica faz com que a pessoa se julgue fracassada por não obter trabalho, quando na verdade, não são oferecidos postos”, e critica o comportamento dos veículos de comunicação, que reforçam essa idéia. “Outro dia, vi na televisão uma matéria sobre uma vaga de confeiteiro que há tempos não era preenchida, dando a entender que há empregos, mas as pessoas não são qualificadas. Partem de uma exceção para mascarar a realidade.”

O professor acredita que a solução para o problema “é possível, necessária e urgente”, mas não parte de iniciativas individuais. “É preciso uma resolução econômica com ênfase na geração de trabalho para que as pessoas possam sobreviver graças aos seus esforços, e o retorno disso é mais efetivo e mais barato.” Do contrário, acrescenta, “pode-se fazer a política mais repressiva possível, mas se o jovem de hoje continuar desempregado, não haverá exército que chegue”.

Aliado à criação de postos de trabalho, Cattani defende que seja feita a redistribuição de renda, pois “sem isso, é impossível desenvolver a economia; o salário mínimo é uma vergonha, a concentração de renda nesse país é extremamente desigual, onde poucos ganham muito e gastam em coisas como passar férias em Cancún ou comprar carros importados, o que não rende riqueza para o país”. Para ele, se a renda fosse mais bem distribuída, os mais pobres teriam mais poder aquisitivo e condições de consumir produtos nacionais, como chinelos Havainas, por exemplo, o que faz movimentar o mercado brasileiro e, por conseqüência, aumentar postos de trabalho. “Salário significa demanda e novas oportunidades para outros, multiplica serviços”, argumenta.

Mas quem são esses números?
Maria Carmen dos Santos pode ser um exemplo de indivíduo representado pelas estatísticas. Ela não é recém-formada, tampouco começou seus estudos agora. Ela se encontrou com o magistério ainda na década de 1960, quando teve contato com uma congregação religiosa no município de Barra do Ribeiro. A convivência marcou sua vida em dois aspectos: decidiu ser freira e cursar o magistério, o que fez em Porto Alegre e Pelotas. Deixou a congregação em 1979, mas continuou seu trabalho junto a ela até 1995. Durante esse período, aprimorou seus estudos. Carmen é pedagoga especializada em supervisão escolar, possui especialização em sociologia e didática e concluiu pós-graduação em psicopedagogia e em psicomotricidade.

Seu currículo a levou a desempenhar funções importantes em diversas escolas de Porto Alegre, como supervisora escolar e diretora. “Ao todo, são 34 anos de trabalho na área”, contabiliza. Hoje, a única coisa que a mantém ligada à profissão são as aulas particulares esporádicas para crianças que precisam de reforço escolar. Ela ainda produz artesanato, que faz e vende por encomenda ou oferece o trabalho acabado. Também já ensaiou como vendedora. “Nunca fiz isso, meu produto sempre foi a educação e isso eu vendi muito bem”. Com 57 anos, Carmen considera-se plenamente apta para o trabalho e continua entregando currículos.

Com 45 anos, 30 deles dedicados à vida profissional, João dos Santos Machado ainda não teve a felicidade de conseguir um novo emprego. Em seu pequeno apartamento, num condomínio popular, onde vive com a mulher e o filho de 11 anos, ele revela que não se cansa de enviar currículos para ver se consegue um novo posto. Após seis anos trabalhando em uma empresa petroquímica, na qual foi responsável por toda a área administrativa e de manutenção, ele esporadicamente tem feito alguns “bicos”, principalmente no setor de recursos humanos, que é sua especialidade. “É muita procura e pouca oferta de emprego”, reclama.
Se antes ele tinha um salário de R$ 2 mil, hoje se contenta com bem menos, contanto que tenha trabalho. Em função disso, as despesas tiveram de diminuir bastante. “Antes eu podia sair com a família, comer uma pizza, e agora tenho de estabelecer prioridades para conseguir comer o mês inteiro.” Quando olha para trás, Machado entende que fez uma escala profissional. “Conheço toda a área administrativa, mas, para o mercado, estou velho, quando, na verdade, sinto que estou na melhor forma.”

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