MOVIMENTO

Aves gordas, contas magras

Indústria do frango se beneficia do valor agregado pela agricultura familiar e mantém pequenos produtores reféns de um modelo de produção
Por Gilson Camargo / Publicado em 4 de junho de 2010

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

A lógica dos negócios da avicultura – que prioriza o lucro sem contabilizar o adoecimento dos trabalhadores nos frigoríficos como estratégia para reduzir custos – também se sustenta da precarização das relações de trabalho com o setor produtivo. A produção de matrizes e ovos, reprodução e engorda das aves entregues para as indústrias para abate se utilizam da agricultura familiar por meio de contratos de integração de pequenas propriedades rurais – que se colocam com exclusividade a serviço da indústria. O sistema é adotado em larga escala no país. Começou com as plantações de fumo e foi disseminado pela avicultura. Além da engorda de aves, suínos e gado, a agricultura integrada é adotada na produção de leite, frutas, hortigranjeiros, fumo e também na viticultura. Nessa relação, as empresas não têm obrigações sociais nem encargos trabalhistas. “Os contratos são unilaterais, impõem somente obrigações ao produtor”, diz o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag/RS), Elton Weber. “A importância do sistema de integração é inegável. O que questionamos é a forma como se dão as relações dos agricultores com as empresas. Por que eles têm que assumir todos os riscos, inclusive o passivo ambiental?”, indaga.

O futuro dos agricultores integrados nas relações de trabalho foi debatido nos dias 18 e 19 de março deste ano no Seminário Regional de Integrados, promovido pela Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), em Porto Alegre. “As empresas estão reformulando cada vez mais os contratos com os agricultores, incluindo cláusulas unilaterais que prejudicam consideravelmente os integrados”, aponta o assessor da Regional Sul da Fetag, José Cadoná.

Alessandra Lunas, da Contag

Foto: René Cabrales

Alessandra Lunas, da Contag

Foto: René Cabrales

A vice-presidente da Contag, Alessandra Lunas, defende a articulação do movimento sindical com os integrados. “É preciso olhar a situação dos agricultores para entender suas demandas e buscar a mediação nas suas relações com as empresas. O sistema representa oportunidades de trabalho e renda, mas sob que condições sociais?”, pondera a dirigente.

Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ipiranga, no Paraná, José Amauri Denck é também produtor de aves integrado. Em março, ele entregou o último lote de perus, porque depois disso a empresa passaria a aceitar apenas frangos, o que exigiria um novo investimento. Denck, que antes era plantador de fumo pelo mesmo sistema integrado, produz com a ajuda da esposa 3,6 mil aves a cada cem dias e fatura em média R$ 3 mil por mês. “O pagamento é trimestral, mas o agricultor sempre tem surpresas, porque tudo é decidido pela empresa, o contrato só prevê obrigações”.

Em Imigrante, no Vale do Taquari, um dos principais polos de produção de aves do RS, o agricultor Luciano Carminatti relata que vêm ocorrendo atrasos nos pagamentos dos lotes e que o preço pago ao produtor despencou. “O integrado não tem qualquer possibilidade de discutir: ou aceita ou não, porque tem muito agricultor na fila de espera. A empresa não tem obrigações e mantém o contrato enquanto tiver interesse”, aponta.

Jair Kleinschmitt: frango versus lavoura

Foto: René Cabrales

Jair Kleinschmitt: frango versus lavoura

Foto: René Cabrales

Mesmo produtores que já liquidaram as dívidas com bancos e estão faturando com a atividade reclamam desses problemas e também do atraso na entrega da ração, provocado pelo fechamento de uma fábrica subsidiária da Doux, em Caxias do Sul. “Quando a ração chega, já perdemos parte da produção e o que vem não é suficiente para alimentar os frangos por mais de cinco dias no confinamento”, diz um agricultor de Montenegro, que pede para não ser identificado.

“O custo de um galpão construído nos padrões da empresa subiu de R$ 9 mil para R$ 60 mil. Se descontar isso da produção, não sobra nada”, calcula o produtor Francisco Kleinschmitt, de Morro do Cedro, em Harmonia, no Vale do Caí. Ele tem dois aviários com capacidade para engorda de 49 mil frangos a cada 50 dias e três pocilgas nas quais engorda 1,1 mil suínos a cada cem dias. Por essa produção, recebe em torno de R$ 15 mil, mas do faturamento é preciso descontar os insumos e a mão de obra. “Pagavam até R$ 15 por suíno e hoje dificilmente chega a R$ 13,00. O frango não passa de 22 centavos”, relata.

Jair, primo de Francisco, mantém três aviários com capacidade para 66 mil frangos e também admite dificuldades, especialmente devido aos atrasos na entrega da ração e nos pagamentos pela entrega dos lotes de frangos. Mas ressalva que a atividade é mais lucrativa que a plantação de cítricos, que ocupa mais da metade das suas terras. “Com os dois primeiros lotes de frangos fiz mais do que ganharia em um ano trabalhando na lavoura”, compara.

Frango temperado com o “ethos camponês”

João Carlos Tedesco, da UPF

Foto: Gilson Camargo

João Carlos Tedesco, da UPF

Foto: Gilson Camargo

As empresas controlam os integrados por meio do arrocho dos preços, reduzindo cada vez mais a margem ao produtor, e se apropriam do valor cultural que os agricultores, em geral descendentes de imigrantes europeus, agregam aos seus produtos. A afirmação é do professor da Universidade de Passo Fundo, João Carlos Tedesco, mestre e doutor em Ciências Sociais pela Ufrgs e pós-doutorado nessa área pela Unicamp, que já publicou seis livros sobre agricultura familiar e agroindustrialização do meio rural, eixo das suas pesquisas. Em um dos trabalhos de campo, investigou a estratégia de uma empresa que produz tênis e bolas de futebol com mão de obra de mulheres agricultoras. “O trabalho é pesado, mas existe trabalho mais pesado que trabalhar na roça?”, ele questiona, reproduzindo o que ouviu de muitas agricultoras. Essa lógica, esclarece, vale para todos os agricultores integrados, inclusive os da avicultura.

“O agricultor sabe que é explorado e que os preços pagos são aviltantes, mas sabe que essa relação garante renda fixa, cartão de crédito, talão de cheques. Ele e os filhos podem permanecer no campo”, pondera. Ele diz que, no final das contas, sobra muito pouco ao agricultor. “Aliás, ele fica é com o esterco do frango para utilizar como fertilizante na lavoura”, critica. O RS concentra as grandes agroindústrias do Brasil, grandes corporações que vinculam as unidades produtivas de descendentes de imigrantes europeus e que guardam vínculos históricos com os produtos dessas indústrias. “Esse suposto dinamismo secular e o ethos camponês são mobilizados para otimizar a produção. Com muito mais ganhos para as empresas do que para essas famílias”, analisa Tedesco.

Paulo Waquil, da Ufrgs

Foto: Cláudio Fachel

Paulo Waquil, da Ufrgs

Foto: Cláudio Fachel

“O agricultor possui um capital social que é utilizado e otimizado pelas empresas. Por medo de perder esse capital, grande parte se submete a um processo de exploração na esfera do preço. O medo de se mobilizar é o medo de ser excluído e perder esse patrimônio subjetivo que os relaciona com a agroindústria”. A dependência se dá por uma relação de dívida ou remuneração precária. “O preço mínimo pago ao produtor é a caixa-preta, que os produtores não entendem. A indústria não explica, por exemplo, um aumento de 35% no preço do leite sem o repasse de um único centavo ao produtor”.

Já o agrônomo e professor da Ufrgs, Paulo Waquil, vê com naturalidade a relação entre empresas e integrados. “Existem vantagens e desvantagens para ambos os lados. Não concordo com esse viés de que o sistema só é ruim para o produtor”, contrapõe. Mestre em Economia Rural pela Ufrgs, doutor em Economia Agrícola pela Universidade de Wisconsin (EUA) e professor de Economia da Ufrgs, Waquil é orientador de pesquisas na cadeia produtiva do fumo no RS. Ressalta que o sistema integrado é praticado com êxito na Europa, na África e nos EUA e que, no caso brasileiro, em muitas regiões, representa a viabilidade da produção agrícola para muitos setores. “A empresa não está ali para ajudar os produtores. Ela fornece a matéria-prima para o fornecimento nos padrões que ela deseja e tem responsabilidades”, defende.

Seminário definiu estratégias de articulação dos agricultores integrados

Foto: René Cabrales

Seminário definiu estratégias de articulação dos agricultores integrados

Foto: René Cabrales

A unilateralidade dos contratos é notória, sustenta João Carlos Tedesco. “As determinações são todas de cima para baixo e preveem cada vez mais trabalho. O produtor deve ficar atento ao aumento da produção, ao clima, às tecnologias poupadoras de mão de obra que facilitaram o trabalho, mas que exigem investimentos. Há um acervo químico altíssimo e o envolvimento com essa ração, que se caracteriza por um gigantesco desperdício de grãos. Tudo isso recai sobre o produtor. É uma grande questão não resolvida”, alerta o professor da UPF. Tedesco considera que o país tem uma dívida econômico-social com o meio rural, com as unidades familiares, que hoje são mais de 5 milhões. “Seriam necessárias novas estratégias de agroindústrias, mas isso implicaria adotar políticas públicas em um mercado muito concorrente”.

A BRF Brasil Food (Perdigão e Sadia), faturamento de R$ 24,4 milhões em 2009, mantém 8,5 mil produtores integrados no país e 3,3 mil no RS. Em nota, a empresa argumenta que a “parceria com os produtores é um modelo de produção essencial para o desenvolvimento das áreas rurais, tem grande influência na estabilização das famílias, pelo controle do êxodo rural e pela instituição da regularidade mensal em geração de renda”. A Doux (ex-Frangosul) e a Marfrig (Seara e Pena Branca) não se manifestaram.

 

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