MOVIMENTO

Pelo direito ao ócio

Entre a redução do lazer e a multiplicação de tarefas, trabalhadores hiperconectados sofrem com excesso de trabalho, enfrentam o isolamento e a indecisão jurídica
Por Clóvis Victória / Publicado em 1 de outubro de 2011

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Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

A rouquidão na voz e as dores pelo corpo são sinais do que os quase 30 anos como professora fizeram com a vida de uma mulher de 48. Também indicam a transformação operada pelas tecnologias da informação no mundo do trabalho nas últimas três décadas. A evolução digital da informática emergiu como a redenção para o trabalhador, que teria mais tempo para o lazer e a família. Na prática, o resultado é o favorecimento à exploração para melhorar a eficiência e multiplicar tarefas. A jornada de trabalho invadiu os fins de semana de professores, de operadores do direito, de vendedores e de profissionais de inúmeras atividades. Sem saber o que fazer com a novidade, o direito busca formas de regular essa nova configuração do trabalho.

O panorama desenhado pelo professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Leandro Amaral Dorneles, aponta para um estado de indecisão jurídica. Segundo ele, há discussões acadêmicas e no âmbito dos tribunais de Justiça do Trabalho sobre os “trabalhadores conectados” ou “teletrabalhadores”, mas falta uma cultura de jurisprudência capaz de modificar o contexto. Parte dessa dificuldade localiza-se numa dúvida em relação a como medir o tempo de trabalho exercido além da jornada regular. “O direito não encontrou uma maneira segura de impor um limite. Na medida em que o trabalho vai se intelectualizando, fica cada vez mais difícil utilizar o fator tempo para medir esse trabalho extra”, explica.

Com o nome mantido em sigilo, a professora reflete sobre a carreira que escolheu por paixão. Dar aulas em uma disciplina de ciências exatas para 600 alunos de duas escolas particulares de Porto Alegre, divididos em 15 turmas de 40 alunos, rende um salário de cerca de R$ 3,8 mil. Não compensa a rotina de 32 horas em sala de aula em cinco dias da semana e outras 35 em casa corrigindo provas, atualizando blogs, digitando e publicando notas nos sítios institucionais das escolas nas madrugadas, sábados e domingos.

A vida profissional e com poucos amigos da professora do Ensino Médio dessa reportagem ilustra bem a dificuldade dos tribunais em julgar casos relacionados ao que as discussões acadêmicas conceituam como “direito ao ócio” e, mais recentemente, “direito à desconexão”. Outra dificuldade relaciona-se a um recuo dos tribunais nos últimos cinco anos. Com base na Lei das Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, os tribunais têm entendido que o ofício de professor contempla horas de trabalho extra em casa. “É um recuo que faz parte da própria jurisprudência. É natural. O aumento do trabalho não é quantitativo, mas qualitativo. O que tem que ser feito é continuar o debate”, argumenta Dorneles.

Mais uma vez, a experiência da professora dessa reportagem ilustra o problema jurídico. Como ela provaria que está trabalhando mais em casa? Resta a ela ter uma visão privilegiada do que a tecnologia fez com a sua profissão. Sua atividade não se resume mais a ser somente aquela pessoa responsável por ensinar. “Antes, a gente tinha provas, trabalhos e temas para corrigir. Continuamos tendo essas mesmas atividades. A diferença agora é que todo o trabalho de secretaria veio para o professor”, comenta.

Se o direito utiliza o tempo como medida da exploração e para melhorar as condições do trabalho desde a virada do século 19 para o 20, a psicologia pensa nos efeitos psicossociais dessa virada. Para a professora Jaqueline Tittoni, do Instituto de Psicologia da UFRGS, as promessas de que a tecnologia iria ampliar o tempo livre das pessoas não se cumpriram. “Houve uma fragilização do limite entre a vida do trabalho e a vida de casa. O que aconteceu é que as pessoas passaram a trabalhar mais e o desemprego aumentou”, diz Jaqueline.

Essa sobrecarga tem sido ilustrada pelo termo “sobretrabalho” e se encarna como sofrimento. Segundo Jaqueline, os professores, de outra geração, sofrem por não conseguirem acompanhar os avanços tecnológicos na mesma velocidade que seus alunos. Também porque precisam se requalificar. Outra fonte de estresse é o grande tamanho que o mundo da informação assumiu.

A história da professora volta a ilustrar a precariedade. Exacerbada a concorrência entre as escolas, a pressão também aumentou. Os alunos não são mais vistos como aprendizes, mas como clientes imersos numa cultura de resultados. Os professores passaram a ser cobrados pela preparação adequada do aluno para o vestibular e Exame Nacional de Ensino Médio (Enem). “Hoje o professor tem que ser blogueiro, ser conhecido por todos. O importante é que esteja na mídia o tempo todo. A escola privada está muito focada na vitrina. Quem não está na vitrina, não existe. Mas agora tomei uma decisão. Decidi que não trabalho mais aos domingos.”

Em São Leopoldo, onde o Legislativo ostenta um histórico de casos de corrupção e mal-versação de verbas públicas na última década, quando ocorreram prisões de parlamentares após ação do Ministério Público e da Polícia Federal, a alteração na Lei Orgânica foi votada em 2009, optando por manter 13 vereadores. No município não houve manifestações públicas, mas vereadores contrários ao aumento, como o peemedebista Daniel Daudt Schaefer, promoveram abaixo-assinados, reforçando a proposta de não alterar a composição da Câmara.

Estudo demonstra sobrecarga

Há uma dúvida recorrente no mundo do direito do trabalho que um exemplo serve para dimensionar. Segundo o professor de Direito do Trabalho da UFRGS, Leandro Dorneles, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), dos anos 1940, não acompanhou a inserção tecnológica na vida social. O código toma a sobrecarga ainda como “sobreaviso”, quando as atividades eram mais físicas e repetitivas do que mentais. Ele ocorre quando um trabalhador fica em casa à espera de um chamado da empresa fora de sua jornada e é remunerado.

Esse dispositivo legal, no entanto, não guarda similaridade com o trabalho conectado. Hoje, os trabalhadores recebem telefones celulares de seus empregadores. Portanto, há uma maior facilidade de ele ser encontrado em qualquer lugar. Mas o trabalho aos fins de semana se enquadraria nestas condições? “É cada vez mais difícil aferir o tempo médio de trabalho e saber o que é trabalho. Curso de aperfeiçoamento é trabalho? O direito não sabe como lidar com isso”, diz Dorneles.

O jeito tem sido aferir cientificamente os efeitos. Os sindicatos procuram nos estudos qualitativos e quantitativos em parceria com universidades medir essa distorção. O Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal do RS (Sintrajufe) realizou pesquisa, em 2009, com 205 dos 257 trabalhadores dos 20 municípios gaúchos que possuem varas dos Juizados Especiais Federais ( JEFs). Com o título “Repercussões do trabalho virtual do Juizado Federal do Rio Grande do Sul na saúde do trabalhador”, em parceria com a UFRGS, o estudo apontou queixas relacionadas a dores no corpo, a lesões por esforço repetitivo (LER), além de aumento de demanda do trabalho e do tempo de permanência na frente do computador.

Criados em 1998 para julgar causas cíveis que não ultrapassassem 60 salários mínimos, crimes com baixo poder ofensivo (penas não maiores do que dois anos) e questões previdenciárias, os JEFs foram concebidos para acelerar a tramitação dos processos. E isso aconteceu à custa de problemas pessoais. O número de processos que tramitaram em 2008 foram 10,8% maiores em volume do que em 2004. Mas os 140.602 processos que passaram pelas varas de JEFs, no Rio Grande do Sul, elevaram em 53,3% o número médio de feitos jurídicos por servidor.

Há quatro anos, cada um dos 257 funcionários lidava com 493,8 processos. Em 2008, esse índice subiu para 547,1. A agilidade fez com que o volume de processos distribuídos aumentasse em 205 pontos percentuais seu volume em quatro anos. A consequência dessa sobrecarga é que 22,5% dos servidores pesquisados disseram trabalhar entre uma e seis horas por semana em casa, enquanto 32,2% contaram que costumam levar trabalho para casa aos fins de semana. De posse desses dados, o estudo recomendou que houvesse redução na carga de trabalho, capacitação e suporte para o uso dos recursos tecnológicos e educação continuada. Também comprovou “redução da qualidade da saúde dos servidores”.

Na esteira da alta produtividade, reclamações de cansaço (97,1%), de dor ou ardência nos olhos (93,7%) e de insatisfação com o sistema (50,3%) chamaram a atenção. “A tecnologia está sendo usada para intensificar o trabalho. Queremos tecnologia, mas também discutir as questões do trabalho decente. Depois de seis horas de trabalho, fica difícil julgar a vida de uma pessoa”, diz a coordenadora da Secretaria de Saúde e Relações de Trabalho do Sintrajufe, Mara Weber.

Reportagem de capa da edição de maio deste ano da revista Carta Capital, sob o título “Jornada sem-fim”, refere que há escassez de estudos sobre o avanço das “atividades profissionais sobre a vida pessoal”. A publicação cita um estudo britânico mencionado pelo presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann. Segundo o economista, um instituto britânico aferiu que o tempo de descanso dos trabalhadores nos fins de semana havia caído de 48 para 27 horas em média na Europa.

Dados do Censo do Ensino Superior 2009, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), dão uma ideia do que a tecnologia tem feito em termos de sobrecarga de trabalho com os professores conectados. Em média, cada um dos 27.827 cursos de graduação presencial das Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil tem 183,8 estudantes. As IES públicas apresentam 164,2 alunos por curso, enquanto as privadas 192,1. Mas a maior distância aparece nos cursos de ensino à distância (EAD).

Cada curso à distância tem 993 alunos matriculados por curso no Brasil, ou seja, 5,4 vezes mais do que na graduação presencial. No ensino privado, esse índice é ainda maior. As IES privadas têm 1.498,7 alunos por curso, 8,1 vezes mais do que a média nacional dos presenciais.

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