MOVIMENTO

Mulheres vítimas de violência podem ficar sem abrigo

A Ocupação Mirabal, que realiza trabalho com mulheres que sofreram algum tipo de abuso, pode ficar sem sede caso seja efetuada desocupação por ordem da Justiça
Clarinha Glock / Publicado em 5 de abril de 2017
Mulheres vítimas de violência podem ficar sem abrigo

“Esta ocupação é uma forma de luta contra a meritocracia, e contra a cultura que diz que mulher apanha porque gosta”, diz Natanielle Antunes, 24 anos, estudante de Políticas Públicas na UFRGS e aluna de um curso de Construção, participa como coordenadora na Ocupação Mirabal. Ao fundo,  Dione Moraes, participante da ocupação

Foto: Igor Sperotto

O sobrado azul que um dia abrigou crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no antigo Lar Dom Bosco, na Rua Duque de Caxias, 380, em Porto Alegre, hoje abriga mulheres igualmente vulneráveis. Quem passa pela rua mal vê a faixa: Ocupação Mirabal. Mas cartazes e grafites indicam: “Nem uma a menos”. Localizado na área central da Capital gaúcha, o prédio é palco de uma disputa judicial desde que foi ocupado, em 25 de novembro de 2016, em uma ação organizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário para acolher mulheres vítimas de violência.

A Inspetoria Salesiana São Pio X, proprietária do imóvel, entrou na Justiça para reaver o casarão, que estava desocupado há pelo menos um ano. No dia 15 de março de 2017, três desembargadores da 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul votaram por unanimidade a favor da reintegração de posse do prédio e deram 30 dias para a desocupação. Mas, até as 16h do dia 4 de abril de 2017, a decisão ainda não havia sido publicada no Diário Oficial, e as mulheres continuavam no local.

A decisão da Justiça é questionável e cabe recurso tão logo seja publicada, afirma a advogada Elisa Torelly, que assessora a Ocupação Mirabal. Segundo Elisa, o Ministério Público também pediu a suspensão do julgamento porque não teve acesso aos autos e é previsto que intervenha em casos como este. “É um caso de interesse público, e envolve mulheres com crianças menores de idade e violência doméstica”, destaca a advogada.

Em janeiro, Marco Rippel, assessor da Inspetoria Salesiana, havia declarado que a congregação tem intenção de instalar no local um projeto de justiça restaurativa para jovens infratores e que não haviam executado a reintegração porque queriam o diálogo, o que acabou não ocorrendo, segundo ele. Em contato com o Extra Classe, na manhã desta quarta-feira, 5 de abril de 2017, o advogado limitou-se a reafirmar que o prédio já estava destinado a um projeto social e que uma nota pública da Inspetoria seria divulgada em breve.

Mulheres vítimas de violência podem ficar sem abrigo

Reintegração de posse do prédio pode desalojar mulheres vítimas de violência

Foto: Igor Sperotto

MOVIMENTO – A Ocupação Mirabal oferece uma porta aberta para o acolhimento, encaminhamentos e referência de mulheres vítimas de violência. As mulheres chegam ali geralmente por indicação, via Delegacia de Mulheres, Defensoria Pública ou de outras pessoas que sabem o quanto é difícil dar o primeiro passo para deixar o ambiente violento e cessar com as agressões – especialmente quando a violência parte de maridos e namorados. Às vezes precisam deixar casa, emprego, amizades, para se afastar do agressor, levando as crianças, a dignidade e autoestima feridas.

O Movimento de Mulheres Olga Benário tem apoio de organizações não governamentais, da Defensoria Pública e do Ministério Público. Mesmo a vizinhança e simpatizantes, que de início desconfiavam da movimentação, passaram a colaborar com doações de roupas, comida e material de casa, observa Claudia Moraes, 43 anos, uma das coordenadoras da Ocupação Mirabal e do Movimento Olga Benário.

De vítimas a protagonistas do movimento

Mulheres vítimas de violência podem ficar sem abrigo

Claudia Moraes está na Mirabal há três meses com seus três filhos e uma filha

Not available

Claudia está no local há três meses. Veio com os três filhos e uma filha do bairro Rubem Berta, de onde foi despejada de sua casa. Na Mirabal, aprendeu a acolher, dividir, aceitar, ajudar – verbos que transformam a vida de outras mulheres vítimas de violências e abusos, mas também dela própria. Vestindo a camiseta da Ocupação, abre um sorriso tímido ao falar do quanto sua vida deu uma guinada ao aceitar o convite para apoiar a causa. “Aqui conheci pessoas e lugares por onde não pensei que ia passar. Saber que posso fazer a diferença na vida de alguém me fez crescer ”. Voltou a estudar e quer fazer faculdade para se tornar Assistente Social ou Educadora Social.

O casarão está como o encontraram, garante Claudia, fazendo um rápido tour pelo lugar. As salas amplas, os móveis, os ventiladores, cadeiras, tudo está preservado. O número de ocupantes não é revelado por segurança, avisa. Na rotina, há regras: não usar drogas – incluindo álcool -, dividir tarefas, obedecer os horários de entrada e saída (entre 7h e 23h30min). “Somos uma família Mirabal”, resume Claudia.

Uma vez por semana as mulheres realizam uma assembleia geral para discutir o que for preciso, e há rodas de conversa sobre temas específicos, como saúde. Uma equipe multidisciplinar dá apoio psicológico, médico, jurídico. “Muitas chegam aqui no limite, demoram a se recuperar”, constata Claudia. Outras conseguem voltar a estudar. “Também fiquei nesta situação: sem trabalho, sem ter onde morar, sei o que é ser agredida. Aqui me sinto feliz de poder ajudar”, diz Dione Moraes, 50 anos, socorrista que dá apoio na equipe.

Ocupação recebe apoios voluntários

Com ajuda do voluntariado, as moradoras usufruem de oficinas como capoeira e biodança. As que não podem sair trabalham ali com tatuagem, como cabelereira e manicure, para obter uma renda. A Ocupação também tem um brechó e a venda dos produtos reverte para o sustento de todas. “Faltam camas e colchões”, salienta Claudia. A necessidade é evidente.  “Faltam centros de atendimento”, observa a coordenadora.

Natanielle Antunes, 24 anos, estudante de Políticas Públicas na UFRGS e aluna de um curso de Construção, participa como coordenadora na Ocupação Mirabal desde o primeiro dia. É ela quem explica a origem do nome, associada às irmãs Patria, Minerva e Antonia María Teresa Mirabal, conhecidas como “Mariposas”, que lutaram contra a ditadura do presidente Rafael Leónidas Trujillo de Molina, da República Dominicana, e foram assassinadas em 25 de novembro de 1960 em uma emboscada. Em 1999, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou 25 de novembro como o Dia Internacional da não Violência contra a Mulher, em homenagem às irmãs. “Esta ocupação é uma forma de luta contra a meritocracia, e contra a cultura que diz que mulher apanha porque gosta”, diz Natanielle. “A gente salva vidas. Não é fácil sair de um ciclo de violência”, resume.

Mulheres vítimas de violência podem ficar sem abrigo

“Também fiquei nesta situação: sem trabalho, sem ter onde morar, sei o que é ser agredida. Aqui me sinto feliz de poder ajudar”, diz Dione Moraes, 50 anos, socorrista que dá apoio na equipe

Foto: Igor Sperotto

Festival Mirabal arrecadará doações

De 7 a 9 de abril, das 13h às 17h, acontece no prédio da Ocupação Mirabal um festival reunindo música, teatro, atividades para crianças, feira de economia solidária e afetiva. Os espetáculos são gratuitos. Visitantes poderão contribuir com doações de alimentos, roupas, livros e brinquedos infantis, materiais de higiene pessoal e fraldas.

Mais informações pelo e-mail mulheresmirabal@gmail.com, pelo fone (51) 98260-3869 ou no Facebook Ocupação Mulheres Mirabal. A programação do Festival pode ser encontrada aqui.

Comentários