MOVIMENTO

Supremo adia decisão sobre área indígena no RS

Sessão que julgaria ação sobre títulos de propriedade particular em terras indígenas no RS foi marcada por protestos de indígenas e quilombolas e pela pressão de ruralistas
Por Cristina Ávila, de Brasília* / Publicado em 16 de agosto de 2017
Indígenas e quilombolas fizeram manifestações e acompanharam sessão do Supremo

Tonico Guarani Kaiowá/ Divulgação

Indígenas e quilombolas fizeram manifestações e acompanharam sessão do Supremo

Tonico Guarani Kaiowá/ Divulgação

A sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que votaria nesta quarta-feira, 16, o chamado marco temporal e estimulou a vinda de índios e quilombolas de todas as regiões do país a Brasília, acabou não acontecendo. Essa tese defende que populações tradicionais somente têm direito a terras que estiveram sob sua posse em 5 de outubro de 1988, e a expectativa é que fosse apreciada no caso de julgamento da ação que questiona títulos de propriedade particular incidentes sobre a Terra Indígena Ventarra, localizada em Erebango, no Rio Grande do Sul. O plenário, porém, decidiu pela suspensão desse processo.

Em menos de duas horas, na manhã de hoje, o STF julgou improcedentes duas Ações Civis Originárias (ACOs) – a ACO 362 e a ACO 366, ambas ajuizadas pelo estado de Mato Grosso contra a União e Fundação Nacional do Índio (Funai), com pedido de indenização pela desapropriação de terras incluídas no Parque Indígena do Xingu e em terras dos povos Nambikwara, Pareci e Enauenê-nauê. Nessas, a questão indígena não era objeto dos processos, mas meio de provas. Ou seja, valeu a Constituição, que determina serem propriedade da União as terras ocupadas por índios. Portanto, sem direitos alegados pelo estado do Mato Grosso.

Porém, dois dos ministros não deixaram passar a oportunidade de falar sobre o marco temporal. Gilmar Mendes, que é seu principal defensor e o primeiro a aplicar essa tese em julgamentos no STF, se pronunciou longamente, apesar de estar impedido de votar, já que atuou nesses processos quando ainda fazia parte da Advocacia-Geral da União. E o ministro Luís Roberto Barroso, enfatizando que o marco temporal não reconhece que populações indígenas são comumente expulsas de seus territórios, e portanto, julgar a posse com data marcada é injusto.

Por isso, o marco temporal seria votado no caso de julgamento da ACO 469, impetrada pela Funai em 1994, pedindo a anulação de títulos de propriedades particulares que supostamente incidiriam sobre a TI Ventarra. Os índios não estavam em posse dela em 1988. Essa Ação Civil Originária, porém, foi suspensa. “Não sabemos objetivamente, pois não tivemos acesso aos autos, mas sabemos que o próprio governo do Rio Grande do Sul pediu a suspensão. E a Funai também pediu que não fosse julgada porque os Kaingang já têm direitos consolidados na TI Ventarra, que hoje já está demarcada e homologada, tendo passado pelas fases de desintrusão (retirada e ocupantes não indígenas), com indenização de benfeitorias de ocupantes de boa-fé”, explica o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto.

Mas o processo não termina aí. Segundo o advogado, a ação foi retirada da pauta, mas voltará ao plenário após o relator Alexandre de Moraes, ex-ministro da Justiça de Temer, apreciar elementos do processo, considerando-o apto ao julgamento. A matéria será pautada, então, pela presidente do STF, ministra Carmem Lúcia.

No RS, juíza que invadiu terras indígenas legisla em causa própria

Representantes de aldeias gaúchas viajaram de ônibus para vigília de dois dias em Brasília

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi/ Divulgação

Representantes de aldeias gaúchas viajaram de ônibus para vigília de dois dias em Brasília

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi/ Divulgação

Desde a terça-feira, o clima era de tensão no Supremo. Pelos corredores, se encontravam índios, quilombolas e políticos da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), nas últimas tentativas de convencimento dos ministros. Os ruralistas apostam em mudanças da lei para avançar o agronegócio em terras de populações tradicionais. Lideranças de comunidades de todo o país vieram a Brasília acompanhar as decisões do STF, e permaneceram concentradas em rituais religiosos e nos celulares, em contato com as bases – aldeias e quilombos – que fazem protestos nos estados. No Rio Grande do Sul, várias rodovias foram bloqueadas nesta terça e quarta-feira, especialmente na região noroeste, onde conflitos de terras são mais graves.

Um ônibus lotado com Kaingang, Guarani e Xoklen saiu de Porto Alegre, no sábado, em direção à Brasília, para participar da vigília da terça e acompanhar as votações de hoje, na Praça dos Três Poderes. “Sofremos muito. Tanto pela expectativa de decisão do Supremo, quanto pelo calor. A temperatura tá muito alta”, exclamou Diego Candinho, um dos líderes da TI Ventarra, localizada em Erebango. Se as sentenças em instâncias federais provocam tensão, ele considera que nos tribunais gaúchos elas são alarmantes. “Na nossa região, temos uma juíza responsável pelo julgamento de ações contra nós que julga em causa própria, pois tem lavouras em terras indígenas”, afirma, com a concordância do cacique Gedivaldo da Silva, da TI Passo Grande do Rio Forquilha, município de Cacique Doble.

É consenso entre índios e quilombolas que estiveram na Praça dos Três Poderes que as decisões jurídicas contra eles são influenciadas no país por questões políticas e econômicas. “Os ruralistas se sentem mais poderosos no governo Temer”, afirma o antropólogo Stephen Baines, professor da Universidade de Brasília (UnB) que se dedica a trabalhos sobre etnologia indígena. Ele lembrou que mesmo durante a ditadura militar os movimentos sociais conquistaram direitos, assegurados depois na Constituição Federal homologada em 1988. “Hoje há avanços, mas muitos retrocessos. O agronegócio está muito bem articulado com grandes empresas transnacionais, inclusive mineradoras, interessadas em terras indígenas, que colocam muito dinheiro para eleger políticos no Brasil”, disse ele ao Extra Classe, no início da vigília que durou a noite toda na Praça dos Três Poderes.

Indígenas pressionam por respeito à demarcação de terras de acordo com a Constituição

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi/ Divulgação

Indígenas pressionam por respeito à demarcação de terras de acordo com a Constituição

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi/ Divulgação

JULGAMENTO – Os indígenas gaúchos estão preocupados também com outro julgamento marcado para o próximo dia 22 no STF, que vai definir a situação de três Kaingang que foram presos, em novembro, durante uma megaoperação da Polícia Federal em Sananduva e Cacique Double, que resultou na prisão de dez índios. “São bandidos”, exclamou na época o deputado Luís Carlos Heinze (PP/RS). Ele se vangloriava da reciprocidade do Ministério da Justiça, onde os ruralistas debatiam estratégias de operações policiais, especialmente com o então ministro Alexandre de Moraes, que agora será o relator da ação referente a TI Ventarra no STF. Na época o parlamentar também incluiu entre seus aliados o governador José Ivo Sartori, a Brigada Militar em Caxias, além de “uma juíza e o Ministério Público de Sananduva”, disse, sem citar o nome. “Tivemos outras tantas reuniões na Advocacia Geral da União e na Casa Civil… que hoje [na época] coordena essa situação, a pedido do presidente Michel Temer”, propagava Heinze.

Indios e quilombolas que estiveram na Praça dos Três Poderes afirmam que decisões jurídicas contra eles são motivadas por questões políticas e econômicas

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi/ Divulgação

Indios e quilombolas que estiveram na Praça dos Três Poderes afirmam que decisões jurídicas contra eles são motivadas por questões políticas e econômicas

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi/ Divulgação

Os três Kaingang que continuam presos são Ireni Franco e seus dois filhos, Leonir e William. “Ireni é um marco na luta do Forquilha”, conta Genivaldo. Ele diz que o território repete a mesma história de Ventarra: expulsões por agricultores e retomadas de terras por índios, em conflitos violentos. “Nos anos 70, devido a situações de miséria, alguns Kaingang aceitaram invasores em suas terras, em troca de um porco, um cavalo… quando viram, o território estava reduzido”, lembra ele.

“Na Ventarra, fomos brutalmente expulsos nos anos 60, inclusive crianças e idosos foram levados em caminhões como animais, por agricultores que tinham apoio do governo do estado. Mas nos anos 90 começamos a rever os mapas dos territórios e organizar nossa resistência. Nossa terra é um ambiente sagrado dos antepassados, e por isso estamos lutando com toda a força”, afirma Diego Candinho. Ele é técnico em agropecuária e faz faculdade de agronomia na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Erechim, e diz que a população das aldeias é de aproximadamente 300 pessoas, que vivem do plantio de subsistência de cereais e criações de galinha de corte e postura, com apoio de uma associação indígena, da qual ele é dirigente.

*Colaborou Ana Mendes

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