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90 anos de Casaldáliga, o bispo dos pobres que nunca se dobrou aos poderosos

São Félix do Araguaia amanheceu em festa nesta sexta-feira, 16, para comemorar o aniversário do seu bispo emérito, Dom Pedro Casaldáliga
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 16 de fevereiro de 2018

Foto: CNBB

Casaldáliga: Nem a ciência, nem a técnica podem exibir, em circunstância alguma, a bandeira branca de uma pretensa neutralidade. Todo ato técnico, todo gesto científico jorra ideologia

Foto: CNBB

A missa de Ação de Graças foi realizada no Centro Comunitário da cidade, pois a catedral não comportaria o número de fieis. Segundo o frei José de Jesus Saraiva, da Ordem de Santo Agostinho, a figura central, fragilizada pelo o que o próprio homenageado chama de “irmão Parkinson”, continua a dar um testemunho forte e emocionante, mesmo que em silêncio. “É um santo de Deus. Um místico dos nossos tempos, devotado a causa do Reino de Deus na face dos pobres”

Há 90 anos nascia na pequena Balsareny, município espanhol da província de Barcelona, Pere Casaldàliga i Pla que, em janeiro passado, completou 50 anos no Brasil, onde é conhecido como Dom Pedro Casaldáliga. Considerado o último bispo “profético” do período de ouro do Concílio Vaticano II, na linhagem de Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Tomás Balduíno, no Brasil, e Dom Oscar Romero, em El Salvador, Pedro ou Pedrinho, como prefere ser chamado, ironicamente saiu do seio de uma família católica de direita.

Bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, Casaldáliga, por sua defesa dos pequenos trabalhadores rurais e dos povos indígenas, colecionou ameaças, mesmo após a restauração da democracia no Brasil. Em 1971, provavelmente pela primeira vez na história contemporânea do país, uma Carta Pastoral da igreja Católica era censurada. O documento, preparado para se tornar público no dia da sua sagração como bispo, se intitulava Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. Elaborada por Casaldáliga e sua equipe, com a contribuição de cientistas sociais, a Carta acabou tendo a sua primeira edição publicada de forma clandestina, registrando em mais de 120 páginas a situação sociopolítica e pastoral da jurisdição do primeiro prelado de São Félix do Araguaia.

O documento – onde o novo bispo apresentava seus desafios, uma descrição detalhada das tribos que habitavam a região, uma análise da situação dos posseiros, dos peões, o conflito entre indígenas e os latifúndios –, tornou-se praticamente uma denúncia contra o governo brasileiro e a sua política na Amazônia. Casaldáliga afirmaria mais tarde: “pusemos-nos do lado dos índios, dos posseiros ou lavradores que ficavam sem terra e dos peões ou trabalhadores braçais”, justificando a postura que tem até hoje e que desagradou profundamente os grandes proprietários de terra e das multinacionais que já investiam no que viria a ser conhecido nos dias de hoje como agronegócio.

A reação à Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga foi imediata. O novo bispo passaria se transformou em objeto de ataques violentos e difamações. Fragmentos de um editorial de O Estado de São Paulo mostra um pouco o tom: demagogo farisaico, desvairado, não documentado, homem de má fé e provocador. Não faltaram ainda acusações de comunista e guerrilheiro.

O próprio Casaldáliga sobre a Carta Pastoral afirmou: “Na noite do dia em que assinei meu primeiro informe-denúncia, saí para ver a enorme lua, respirar o ar mais frio e me ofereci ao senhor. Sentia então que, com o documento, podia ter assinado também minha própria pena de morte; seja como for, acabava de assinar um desafio”.

A chegada em São Félix

Padre da ordem dos Claretianos (Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria), Casaldáliga se encaminhou ao Brasil em 26 de janeiro de 1968. Após quatro meses no Centro de Formação Intercultural (Cenfi), em Brasília, para conhecer melhor o Brasil e a Igreja no país e um mês e meio em São Paulo para um curso sobre moléstias tropicais, o missionário partiu para o Araguaia em uma viagem de caminhão que durou uma semana.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Residência de dom Pedro Casaldáliga em São Felix

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

De imediato o contraste chocou o catalão. Segundo religiosos próximos de Dom Pedro, as condições de vida praticamente infra-humanas seria a causa do não estranhamento de Casaldáliga ter assumido tão rapidamente a opção pelos pobres. Mais do que isso, Pedro Casaldáliga em toda a sua trajetória à frente da Prelazia de São Félix do Araguaia apontou o capitalismo como tema prioritário, ao assinalar os ídolos da sociedade, antecipando em décadas o posicionamento do atual Papa Francisco.

Sobre suas posições, Casaldáliga uma vez brincou ao dizer “eu sempre fui de esquerda. Quando pequeno já era canhoto, porém naquele tempo era proibido e não nos deixavam escrever com a esquerda. Assim sendo, sou da esquerda, até mesmo biologicamente”. De fato, mais do que “de esquerda”, Casaldáliga se declarou literalmente socialista, algo ainda muito polêmico no meio eclesial. “Eu passei para as opções do socialismo. Pelo contato com a dialética da vida, pelas exigências do Evangelho e também por algumas razões do Marxismo. Que espécie de socialismo não o sei com exatidão, como não sei com exatidão que Igreja será amanhã a que hoje pretendemos construir, por mais que saiba que a queremos cada vez mais cristã”, declarou.

Radicalidade Evangélica

“Deixamos de ser amigos dos grandes e os olhávamos de frente. Nenhum explorador ou colaborador que houvesse aproveitado da exploração poderia, por exemplo, ser padrinho de batismo”. Essa declaração de Casaldáliga mostra a linha pastoral imprimida pelo bispo. A recusa do uso dos símbolos eclesiásticos que demonstram sua posição hierárquica na Igreja, como a Mitra, o Báculo e o anel episcopal, são outros exemplos além das suas sandálias havaianas, adotadas pelo religioso na época em que não eram artigos de moda, mas peças da indumentária do povo pobre da época de sua sagração.

Por outra ironia da vida, o despojamento de Casaldáliga acabou evitando o seu assassinato. Em 12 de outubro de 1976, em Ribeirão Cascalheira (MT) o bispo que estava na cidade para uma festividade religiosa tomou conhecimento de que duas mulheres estavam sendo barbaramente torturadas na delegacia porque a polícia suspeitava que sabiam do destino de um rapaz acusado de matar um PM. Ao decidir intervir, o padre jesuíta João Bosco Penido Burnier resolveu acompanhar Dom Pedro. O “diálogo” com os policias durou de três a cinco minutos, com os agentes fazendo seguidas ameaças e insultos, culminando com um tiro na cabeça do padre Burnier desferido pelo soldado Ezy Ramalho Feitosa. “João morreu por acaso. O tiro, na verdade, era para dom Pedro”, afirmou Antônio Canuto, um dos coordenadores nacionais da Comissão Pastoral da Terra.

Fé e política

Política talvez seja um dos temas que mais provoca receios em muitos cristãos. Casaldáliga, ao contrário das correntes espiritualistas e carismáticas da igreja Católica, sempre se posicionou sobre a questão. Para ele, poucas verdades são tão claras no Evangelho como a de que Jesus foi justiçado pelo poder político e religioso. “Contra toda filosofia funcionalista, nós cremos que nem a ciência nem a técnica podem exibir, em circunstância alguma, a bandeira branca de uma pretensa neutralidade. Todo ato técnico, todo gesto científico jorra ideologia. Ou se serve ao sistema ou se serve ao povo”, escreveu uma vez, ressaltando que traçar uma estrada no papel, planejar um censo, classificar um remédio, é política. “Todo técnico, todo cientista é sempre um político, mesmo quando se negue a sê-lo: ou reacionário, ou reformista, ou transformador”, concluiu.

A convicção de Casaldáliga sobre o quanto a religião deva ser elemento de transformação não só etérea, mas das estruturas sociais que considera injustas, rendeu um fato real que acabou caindo no, hoje, anedotário do religioso. O bispo, que teve uma vez sua casa revistada em busca de material subversivo, fez questão de ir à delegacia e disse ao delegado responsável “vocês esqueceram do livro mais subversivo que eu tenho: Mateus, capítulo 25. Leiam”.

Repressão

Em 1978, solicitado por Dom Paulo Evaristo Arns, então Cardeal Arcebispo de São Paulo, e por Dom Tomás Balduíno, na época bispo de Goiás, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi) publicou o A Repressão na Igreja no Brasil, Reflexo de uma Situação de Opressão (1968/1978). No anexo do documento, 30 bispos que chegaram a sofrer difamações, sequestros, ameaças de morte, interrogatórios, invasão da catedral durante missas, censuras, ameaças de expulsão do país, prisão. Casaldáliga estava presente em todas as categorias de perseguições incluídas no informativo.

Em sua Prelazia aconteceram em 1973 manobras militares, com tropas do exército, marinha e aeronáutica. Ações conjuntas de intimidação das polícias militar, civil e até do Corpo de Bombeiros. Além disto, Casaldáliga foi ameaçado de expulsão do país e de morte. Por seu assassinato foi estabelecido um preço. Vicente Paulo de Oliveira, peão da companhia Bordón S.A., matador encarregado do serviço fez uma confissão oficial: “por matá-lo, ele me daria mil cruzeiros, um revólver 38 e passagem para onde eu quisesse”.
A tarefa de assassinar Casaldáliga coincide com a data de sua sagração como bispo, sinal de que o então padre Pedro já estava incomodando.

Pedro Poeta

Além do testemunho de vida, Dom Pedro Casaldáliga também é reconhecido por sua poesia. Zofia Marzec, professora da Universidade de Varsóvia e autora de Pedro de los pobres e El obispo Pedro Casaldáliga: Poeta de Liberación, defensor del outro, registra que o bispo situa-se no âmbito de uma grande tradição da literatura religiosa, mística espanhola. Para a professora, Casaldáliga pode ser chamado de poeta de libertação, “uma categoria ausente, por hora, na crítica literária e na história da poesia mundial. Um gênero, no entanto, que não passará despercebido no futuro”. Abaixo um de seus poemas:

Auto-retrato
Com um calor por anel, monsenhor cortava arroz. Monsenhor “martelo e foice”?

Chamar-me-iam subversivo. E lhes direi: eu o sou. Por meu povo em luta, vivo. Com meu povo em marcha, vou.
Tenho fé de guerrilheiro e amor de revolução. E entre Evangelho e canção sofro e digo o que quero. Se escandalizo, primeiro queimei meu próprio coração no fogo da Paixão, cruz de seu próprio Madeiro.
Incito à subversão contra o poder e o Dinheiro. Quero subverter a Lei que perverte o povo em grei e o Governo em carniceiro. (meu pastor se fez Cordeiro. Servido se fez meu Rei).
Creio na Internacional das frentes levantadas, da voz de igual para igual e as mãos entrelaçadas…
E chamo à Ordem de mal, e ao Progresso, de mentira. Tenho menos Paz que ira. Tenho mais amor que paz.
… Creio na foice e no feixe destas espigas caídas: uma Morte e muitas vidas! Creio nesta foice que avança – sob este sol sem disfarce e na comum Esperança – tão recurvada e tenaz!

Pedro Casaldáliga

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