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Mulheres pagam com a saúde pela criminalização do aborto

Por Adriana Lampert / Publicado em 8 de maio de 2018
A proibição não impede as mulheres de recorrerem ao aborto para interromper uma gravidez indesejada por motivos que a legislação omite. O resultado são sequelas físicas e psicológicas e o alto índice de mortes provocadas por abortos clandestinos

Foto: Fernando Frazão/ ABr

A proibição não impede as mulheres de recorrerem ao aborto para interromper uma gravidez indesejada por motivos que a legislação omite. O resultado são sequelas físicas e psicológicas e o alto índice de mortes provocadas por abortos clandestinos

Foto: Fernando Frazão/ ABr

Proibir ou legalizar? O debate sobre a questão do aborto quase sempre ignora a dimensão de saúde pública e se deixa contaminar pela hipocrisia e moralismo. Afinal, a criminalização nunca impediu as mulheres de abortarem. A diferença é que, com a proibição, ao invés da garantia e assistência do Estado para interromper uma gravidez indesejada, quem tem dinheiro recorre a clínicas clandestinas, muitas delas bem localizadas em bairros de classe média. Quem não tem apela para procedimentos caseiros que comumente terminam em sequelas físicas e psicológicas e morte

O direito ao aborto é estabelecido pela legislação brasileira somente em três situações: gravidez originada de estupro, diagnóstico de anencefalia fetal ou risco grave de vida à gestante. Mas nem por isso as brasileiras deixam de recorrer ao aborto para interromper uma gravidez não desejada por outros motivos. Paradoxalmente, menos de 1% dos abortos realizados no país são legais, como demonstra uma comparação entre a estimativa de interrupção da gravidez da Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016), coordenada pela antropóloga Debora Diniz, e informações do relatório mundial da Human Rights Watch, divulgado em janeiro deste ano. Um dos motivos para a baixa estatística de abortos dentro da lei é que grande parte das vítimas de estupro sequer sabe que tem direito a solicitar o procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No Rio Grande do Sul, o Ministério da Saúde registrou 41 procedimentos legais em 2017, 64 em 2016 e 79 no ano anterior.

Muitas mulheres não se reconhecem como vítimas, porque a violência está dentro de casa, diz a advogada e antropóloga Renata Jardim

Foto: Igor Sperotto

Muitas mulheres não se reconhecem como vítimas, porque a violência está dentro de casa, diz a advogada e antropóloga Renata Jardim

Foto: Igor Sperotto

“Muitas mulheres relatam algum tipo de violência sexual ao longo da sua vida, sendo que algumas acabaram engravidando por conta disso – uma vez que não foram procurar as profilaxias existentes”, afirma a advogada e mestre em Antropologia Social Renata Jardim, ex-coordenadora do Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência Patrícia Esber, em Canoas, na região Metropolitana de Porto Alegre. “Elas não se reconhecem como vítimas, porque muitas vezes a violência sexual parte dos próprios companheiros”. Nos casos em que há percepção do abuso, a grande maioria não sabe que tem direito de interromper a gestação em caso de violência sexual e o próprio sistema de saúde pública nega esse direito às vítimas. “A situação da saúde em relação às mulheres é muito séria no Brasil: médicos e enfermeiras não recebem nenhuma informação e não sabem o que é a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres”, denuncia Ariane Leitão, coordenadora na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS e consultora do Coletivo Feminino Plural.

Boa noite, Cinderela!

“A ilegalidade do aborto afeta todas as mulheres”, alerta Luiza

Foto: Igor Sperotto

“A ilegalidade do aborto afeta todas as mulheres”, alerta Luiza

Foto: Igor Sperotto

Silvana* tinha 15 anos quando foi a uma festa com o primeiro namorado. Era a primeira experiência em tudo. Os dois se empolgaram. Para impressionar, ela topou misturar anfetaminas com álcool. Apagou. Na manhã seguinte acordou nua, em uma cama improvisada na casa do namorado, para onde ele a levara. Tinha sido abusada enquanto estava inconsciente. “Não tinha experiência e achei que a minha primeira vez tinha sido consentida de alguma forma. Perdoei, porque não entendi como estupro. Só mais tarde me dei conta”. Dois meses depois descobriu que estava grávida. Sem apoio dos pais e apavorada com os conflitos que surgiriam de uma gravidez na adolescência, decidiu abortar. Com a ajuda de uma amiga procurou uma clínica no bairro Menino Deus, região de classe média de Porto Alegre. “Por sorte, deu tudo certo, mas sei do risco que corri”, pondera hoje, aos 45 anos.

Aos 21, Luiza* abortou voluntariamente, em meio ao pânico de não ter “a menor condição” de criar um filho. “Lembro da sala cheia de compartimentos, a gente ficava numas cadeirinhas, esperando, ia para o procedimento, tomava anestesia geral, acordava em meio a outras três macas. Lembro de uma mulher muito mais velha que eu, que chorava muito, e lamentava, e eu fiquei muito assustada com aquilo”, recorda. Para ela, a ilegalidade do aborto afeta todas as mulheres, mas incide ainda mais fortemente nas de classes econômicas menos privilegiadas e em outras situações e marcadores sociais de vulnerabilidade. “O mais cruel desta história é que quem tem dinheiro faz o aborto ilegal em uma clínica clandestina, que cobra em torno de R$ 5 mil, mas quem não tem recursos, usa agulha de crochê, e normalmente fica com sequelas ou morre”.

Aborto inseguro e mortalidade materna

"Mesmo de forma clandestina e insegura, as mulheres estão garantindo o direito de escolha", diz Kátia Rodrigues, do Coletivo Entre

Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil

“Mesmo de forma clandestina e insegura, as mulheres estão garantindo o direito de escolha”, diz Kátia Rodrigues, do Coletivo Entre

Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil

A estatística mais recente sobre mortes de mulheres em decorrência de aborto do Sistema de Notificação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, é de 2016 e informa 63 óbitos. Os dados de morbidades relativos ao aborto levantados pelo Departamento de Tecnologia da Informação do SUS (Datasus) indicam que naquele ano ocorreram 197.026 internações de mulheres devido a complicações de saúde após abortos espontâneos e os casos legais. Essas internações vêm diminuindo desde 2009, quando o registro era de 223.165 atendimentos. O custo das internações no ano de 2016, de acordo com o Datasus, totaliza R$ 46.779.250,35. Nenhum órgão de saúde fornece informações detalhadas sobre mortalidade relacionada ao aborto e os números são contraditórios. De acordo com o SIM, foram 69 mortes em 2015 e 63 em 2016, enquanto que os dados de morbidade do Datasus relacionam 70 óbitos decorrentes de procedimentos de aborto em 2015 e 53 em 2016. De acordo com o Datasus, a variação estatística está relacionada à inconsistência de dados no registro das declarações de óbito. Não há informações seguras sobre estatísticas de abortos clandestinos, pois não há notificação. “Nesses casos, o procedimento não é computado como aborto, cabendo ao profissional de saúde prestar assistência a fim de preservar a saúde da mulher”, afirma em nota o Ministério da Saúde.

Para se ter uma ideia do impacto na saúde das mulheres gestantes no Brasil, a criminalização do aborto interfere muito além do aspecto físico de quem precisa passar por um procedimento do gênero: é psicologicamente devastador. “O aborto, seja espontâneo ou por deliberação da mulher, é sempre uma situação de conflito e gera uma espécie de trauma”, observa a psicanalista Ana Paula Terra Machado, titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. “Se uma mulher decide abortar, isso impõe, naturalmente, uma situação de conflito, dor e perda – e se o procedimento for clandestino o sofrimento se torna exacerbado”, compara.

Julgamento moral, maus-tratos nos serviços de saúde

Especialista em direitos das mulheres, a advogada Gabriela Souza aponta maus tratos e ameaças na rede pública

Foto: Igor Sperotto

Especialista em direitos das mulheres, a advogada Gabriela Souza aponta maus tratos e ameaças na rede pública

Foto: Igor Sperotto

Ana Paula lembra que nunca um aborto é desejado: é consequência de um conflito psíquico e sempre vai causar um dano emocional. Para ela, o argumento bastante utilizado por quem é contra a descriminalização do aborto de que as mulheres iriam passar a adotá-lo como método anticoncepcional é totalmente infundado. De fato, é difícil acreditar que alguma mulher pense em experimentar uma gravidez indesejada, imaginando que pode fazer um abortamento para interromper. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016) – que escutou via levantamento domiciliar mulheres de 18 a 39 anos – aproximadamente 416 mil brasileiras interromperam a gravidez em 2015. Estudo publicado em 2017 pelo Guttmacher Institute revela que no Brasil entre 6% e 7,7% das mulheres em idade reprodutiva não têm acesso a qualquer método contraceptivo, o que equivale a uma população entre 3,5 e 4,2 milhões.

Fenômeno frequente e persistente entre o público feminino de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões, o aborto foi realizado por uma em cada cinco mulheres que completam 40 anos de idade. “Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos grupos sociais, com maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste”, diz a pesquisa. Na primeira edição do estudo, em 2010, metade dessas mulheres utilizou medicamentos para abortar, e quase a metade das entrevistadas precisou ficar internada para finalizar o aborto.

A advogada especialista em atendimento à mulher, Gabriela Souza, lembra que os casos de aborto clandestino são sempre os mais delicados. “Muitas vezes as pacientes fazem o aborto em casa ou em clínicas ilegais e têm complicações médicas, precisando usar o sistema de saúde pública”, confirma. “Ali, são recebidas com hostilidade e maus-tratos, bem como ameaças. É uma situação bem complicada, que reflete todo o julgamento moral em cima da questão do aborto”.

“Cavalo de Troia”, retrocesso nos direitos reprodutivos

Mulheres protestam contra a PEC da Morte, imposta por parlamentares ligados às igrejas: retrocesso histórico nos direitos reprodutivos

Foto: Mídia Ninja

Mulheres protestam contra a PEC da Morte, imposta por parlamentares ligados às igrejas: retrocesso histórico nos direitos reprodutivos

Foto: Mídia Ninja

Aprovado por uma maioria de deputados homens em uma Comissão Especial da Câmara, em novembro de 2017, a PEC 181, batizada pelos movimentos sociais de “Cavalo de Troia”, estabelece que a vida “começa na concepção”. A medida articulada pela Bancada Evangélica bate de frente com a legislação atual e representa um retrocesso nos direitos reprodutivos. O texto-base visava ampliar a licença-maternidade, mas acabou incluindo, de contrabando, a proibição incondicional do aborto no país. Agora, pode ir a plenário, onde precisaria de 308 votos favoráveis, em dois turnos, antes de seguir para o Senado. Em caso de aprovação, tornará o país um dos mais rigorosos no que tange à legislação sobre o direito ao aborto, observa a psicóloga do Coletivo Entre, Kátia Rodrigues. “Em países da América Latina, como Cuba e Uruguai, o aborto é legalizado e desde então não há mais registros de mortes em decorrência desses procedimentos”. No Uruguai, a lei existe desde 2012 e no ano seguinte foram realizados pouco mais de 6,5 mil abortos em que nenhuma morte foi registrada. Cuba permite o procedimento desde 1968 e disponibiliza a assistência gratuita em qualquer tempo gestacional, sendo necessária apenas a solicitação pela mulher.

Na Espanha o procedimento é legalizado e irrestrito até a 14ª semana gestacional. Em 2013, o governo de Mariano Rajoy tentou modificar essa lei e restringir o direito ao aborto, gerando comoção nacional com mais de 70% de rejeição à proposta, fazendo com que ele desistisse da mudança. Em 2016, a OMS concluiu um estudo que indica que nos países em que o aborto foi legalizado o número de procedimentos diminuiu significativamente, enquanto que em países com posição de criminalizar o aborto este número aumentou muito, principalmente na América Latina. “Com a legalização do aborto pode-se investir em medidas como o planejamento familiar, informação e acesso à saúde. Precisamos falar sobre o aborto e, sobretudo, escutar a experiência das mulheres”, observa Kátia. “O SUS atende mais mulheres pós-aborto do que faz abortos. O que significa que as mulheres, mesmo na clandestinidade, estão garantindo o direito de escolher sobre seu corpo, ainda que de forma insegura”, lembra a psicóloga do Coletivo Entre.

*Os nomes reais das mulheres que relataram suas experiências foram preservados.

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