MOVIMENTO

Sementes crioulas mobilizam produtores do Vale do Taquari

Exposição de matrizes orgânicas produzidas e controladas por pequenos agricultores debate agrotóxicos e soberania alimentar em Dois Lajeados
Por Gilson Camargo / Publicado em 23 de maio de 2019
Encontro de Sementes Crioulas em Dois Lajeados reuniu agricultores familiares, estudantes e técnicos agrícolas

Foto: Gilson Camargo

Encontro de Sementes Crioulas em Dois Lajeados reuniu agricultores familiares, estudantes e técnicos agrícolas

Foto: Gilson Camargo

Em Dois Lajeados, município de 3,5 mil habitantes localizado na confluência dos rios das Antas e Taquari, a 190 quilômetros de Porto Alegre, o acesso à água potável é dificultado pela altitude, que chega a 450 metros acima do nível do mar nas partes mais altas. As raras fontes que brotam no pé da serra não têm vazão suficiente para o abastecimento. Para acessar a água potável que está nos lençóis logo abaixo da superfície, o município sempre recorreu aos poços artesianos.

Sementes, ramas, bulbos e mudas de diversas espécies de hortaliças e grãos foram trocadas e comercializadas por produtores

Foto: Gilson Camargo

Sementes, ramas, bulbos e mudas de diversas espécies de hortaliças e grãos foram trocadas e comercializadas por produtores

Foto: Gilson Camargo

Foto: Gilson Camargo

Foto: Gilson Camargo

 

Mas nos últimos meses, quase metade de 20 novos poços perfurados pela prefeitura foi abandonada, porque a água que eles forneciam estava com altos índices de contaminação por agrotóxicos e fertilizantes químicos utilizados nas lavouras do agronegócio.

No município, predomina o cultivo orgânico, sem o uso de venenos, nas pequenas propriedades rurais, mas o caldo de pesticidas empregado em larga escala por grandes produtores da região vai parar nos rios e no subsolo, desde a grande variedade de agrotóxicos e fertilizantes utilizada nas monoculturas de uva, fumo, arroz e cebola, até os rejeitos da produção de frango. Assim, uma solução para acessar água ainda livre de venenos já aponta para o Aquífero Guarani.

“Avançamos muito no desenvolvimento de um cultivo orgânico, livre de venenos, e que fortalece a nossa agricultura, mas nem por isso estamos livres dos agrotóxicos, que são o nosso grande problema”, desabafou o prefeito Tiago Grando (MDB) na abertura do 1º Encontro Arquidiocesano das Sementes Crioulas, Biodiversidade e Alimentação Orgânica, realizado nesta quinta-feira, no Salão Paroquial de Dois Lajeados. A programação começou às 7h30min e foi até o início da noite. O local permaneceu lotado por um público diversificado, predominantemente feminino, com ampla participação de produtores agroecológicos e estudantes de áreas relacionadas à agricultura.

Promovido pela Articulação em Agroecologia do Vale do Taquari (Aavt), um coletivo que envolve diversas entidades, entre as quais a Emater/RS-Ascar, o encontro celebra a Semana Nacional do Alimento Orgânico e também os dez anos de fundação da Aavt. Ao longo do dia, foram apresentados diversos painéis em que foram discutidos temas como alimentação saudável, homeopatia, manejo sustentável dos solos e uso de agrotóxicos. Ao meio-dia, a organização do evento – no qual os agricultores comercializam ou trocam sementes crioulas dos mais variados cultivos – ofereceu um almoço preparado com produtos orgânicos e sucos naturais preparados no local com frutas da região.

De acordo com Marcos Schäffer, assistente técnico regional em Manejo de Recursos Naturais da Emater/RS-Ascar, a proposta do Encontro “é valorizar o cultivo de alimentos limpos e promover a agricultura familiar, em consonância com a preservação da natureza”.

O agricultor Sadi Giacomin, destaca que o evento incentiva a prática da Agroecologia. “Estamos falando não apenas da saúde do produtor, mas do consumidor”, aponta. A variedade de espécies de milho cultivada pelos agricultores locais foi a grande atração entre as sementes crioulas. Ao menos 15 tipos de sementes de milho foram expostas para trocas entre os produtores.

Giacomin: soberania alimentar

Foto: Gilson Camargo

Sadi Giacomin (E): produção de sementes crioulas contra a lógica das multinacionais

Foto: Gilson Camargo

As sementes e a soberania alimentar

Além da alimentação orgânica e do alerta para a liberação e o uso indiscriminados de agrotóxicos, é recorrente para a comunidade o tema da soberania alimentar simbolizada no domínio que os agricultores têm sobre a semente.

Giacomin explica que “Os Guardiões das Sementes” produzem as matrizes longe de outras culturas, principalmente das híbridas e das transgênicas para não ter cruzamento, separando por área verde, longe de outras culturas de milho. “A importância é que se nós deixarmos nas mãos das grandes empresas, vamos ficar totalmente dependentes”, justifica.

O agricultor, que integra a direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, explica que quem domina as sementes exerce o controle sobre o custo do cultivo. “Quando nossos pais produziam as sementes em casa, a relação era um por um, um quilo de semente comprava um quilo de milho. No ano 2000 eram necessários 1,3 mil quilos de milho hibrido para comprar 60 quilos de sementes e, agora, em 2018 já são necessárias 7,2 mil quilos de milho pra comprar os mesmos 60 quilos de sementes”, ilustra Giacomin.

Segundo ele, a lógica instituída pelas multinacionais que dominam as sementes transgênicas deixa os agricultores reféns. “Então, essa é a questão, o agricultor aumenta a produtividade com um grão muito fraco em nutrientes, não é mais dono das sementes, não pode mais produzir em casa e fica totalmente dependente de duas ou três empresas. A semente crioula não produz muito, só que ela não é exigente em adubação, resiste mais à estiagem e às interpéries, a doenças e insetos, e a gente tem a semente na mão, custa menos e é muito mais rica em nutrientes”, compara.

A ameaça dos agrotóxicos está no ar e na água

Padre Casagrande: saúde acima da ganância

Foto: Gilson Camargo

Padre Casagrande: saúde acima da ganância

Foto: Gilson Camargo

Nos armazéns de campanha da região, assim como acontece em quase todo o território rural do estado, não se vê ferramentas para a capina à venda. Quer dizer, os agricultores não usam mais enxadas para remover as ervas daninhas das plantações. A capina é química, à base de agrotóxicos, sendo o mais popular deles o Round Up, veneno à base de glifosato produzido pela Monsanto e relacionado a doenças degenerativas. Na região de Santa Cruz do Sul, amostras da água que abastece o município foram reprovadas devido à concentração resíduos desses venenos, que contaminam o ar e os alimentos – mesmo aqueles produzidos sem o uso de agrotóxicos apresentam traços de veneno.

Em uma década, as intoxicações por agrotóxicos dobraram e já atingem 110 mil pessoas em todo o país. Os relatórios da Anvisa sobre resíduos em alimentos, que eram divulgados anualmente, agora são tornados públicos apenas a cada três anos.

Os dados mais recentes da Anvisa remontam ao período entre 2013 e 2015. O monitoramento incluiu 25 alimentos, que correspondem a 70% daqueles de origem vegetal consumidos pela população. Das 12.051 amostras, 80,3% foram consideradas satisfatórias, enquanto pouco mais de 19% apresentavam irregularidades, como o uso não autorizado ou acima do permitido de agrotóxicos.

A professora Miriane: "refletir sobre o ato de plantar e colher"

Foto: Gilson Camargo

A professora Miriane e seus alunos: “refletir sobre o ato de plantar e colher”

Foto: Gilson Camargo

ÉTICA ALIMENTAR – “Diante de tanto agrotóxico, tanta mudança que está sendo implantada para aumentar a produção de alimentos, a qualidade de vida piora cada vez mais”, avalia o Padre Ladir Casagrande, coordenador da Cáritas de Passo Fundo.

Para o religioso, a agricultura familiar orgânica presente no Encontro de Sementes Crioulas representa “o resgate da saúde, a recuperação da história de gerações que tinham essa prática de troca de sementes, o cultivo sem venenos. Mais do que nunca, se faz necessário resgatar essa cultura, para colocar a saúde acima da ganância. A prática da agricultura muitas vezes foge de princípios éticos em busca do lucro, perde a dimensão da ecologia. O Encontro resgata essa cultura e convida a fazer uma reflexão sobre as práticas de cultivo com essa perspectiva da saúde”, aponta.

“Não são apenas as águas de superfície, mas as águas profundas que estão contaminadas por agrotóxicos. Em 2018, 249 tipos de venenos foram liberados no Brasil para uso na lavoura. Em 2019, até meados de maio, foram liberados 169 tipos de venenos. E vão contaminar a água, justamente a água que é vida, que desenvolve a renovação celular já entra no nosso organismo intoxicada, agente de doenças, causadora de câncer”, alertou o gestor de cursos de Homeopatia Nestor Scherer em seu painel.

A agricultora Oldi Helena Jantsch, 68 anos, coordenadora do banco de sementes Solidariedade relata que o coletivo promove a troca e a comercialização de sementes crioulas entre centenas de famílias da América Latina, o que garante o acesso a um banco com 430 tipos de sementes. “Semente é alimento”, define, ao mostrar uma muda de soja crioula, cultivada sem agrotóxicos. “A soja crioula produz muito mais que a soja transgênica e dá mais lucro”. Ela relata que o combate às pragas é feito de maneira sustentável, com a aplicação de biofertilizantes nas sementes e adubação verde da terra antes do cultivo. “Não usamos Round up. Tenho 68 anos e nunca sequer pensei em ir ao médico”, provoca.

William e Kamilly participaram da "Mística" das sementes

Foto: Gilson Camargo

William e Kamilly participaram da “Mística” das sementes

Foto: Gilson Camargo

MÍSTICA – Em uma apresentação que simbolizou o acesso aos alimentos e a importância do cultivo das sementes para uma agricultura saudável, crianças entraram no Salão Paroquial carregando cestos com mudas e sementes crioulas. William, 10 anos, destacou que a produção de alimentos saudáveis passa pelo cuidado com as sementes. Kamilly, da mesma idade, disse que as plantas “são como pessoas que bem cuidadas nos devolvem o melhor de si: elas produzem sementes saudáveis”.

A professora Miriane Pilotto Buchi, que leciona na escola estadual Vicente Carvalho e na municipal Cornélio Mattei destaca o espaço que a alimentação saudável e a agricultura familiar orgânica ocupam no projeto pedagógico das instituições de ensino do município. “Antes de virmos pra cá, os alunos trabalharam com semeadura, que lida com a importância de manipular a terra e ser capaz de entender a importância do ato de plantar e colher, descansar e pensar, e refletir sobre o alimento que produzimos e consumimos”.

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