MOVIMENTO

20 anos depois, Fórum Social Mundial busca reinvenção e retomada do internacionalismo

De 21 a 25 de janeiro, a capital gaúcha sedia o Fórum Social das Resistências, que tem como tema central Democracia e Direitos dos Povos e do Planeta
Por Marco Weissheimer / Publicado em 20 de janeiro de 2020

Foto: Divulgação/Arquivo

Edição do FSM em Porto Alegre, em 2003

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No dia 25 de janeiro de 2001, o Fórum Social Mundial reuniu-se pela primeira vez em Porto Alegre, com o objetivo de se contrapor ao Fórum Econômico Mundial que, desde 1971, reúne a elite do pensamento capitalista internacional na cidade suíça de Davos. Porto Alegre tinha se tornado então uma referência para a esquerda mundial em função das políticas implantadas por sucessivas administrações do Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade, em especial o Orçamento Participativo. Além disso, desde 1999, o PT governava também o estado do Rio Grande do Sul. A conjuntura nacional e internacional, por outro lado, era dominada por políticas neoliberais e por um modelo de globalização financeira que passava a ser cada vez mais contestado mundo afora. A Carta de Princípios do FSM definia a iniciativa como uma tentativa de criar “um espaço internacional para a reflexão e organização de todos os que se contrapõem à globalização neoliberal e estão construindo alternativas para favorecer o desenvolvimento humano e buscar a superação da dominação dos mercados em cada país e nas relações internacionais”.

Duas décadas depois, Porto Alegre já não é mais – e isso há muito tempo – uma referência para a esquerda internacional. Pelo contrário, a cidade e o estado são governadas hoje um alinhamento político conservador que está afinado com o ideário econômico do governo de Jair Bolsonaro. Serviços públicos sucateados ou desativados, fundações culturais e de pesquisa científicas extintas, empresas públicas privatizadas, servidores com salários atrasados e parcelados: essa é a realidade que marca o espaço público no Rio Grande do Sul e no Brasil como um todo. Neste cenário, o Fórum volta a se reunir em Porto Alegre. De 21 a 25 de janeiro, a capital gaúcha sedia o Fórum Social das Resistências, que tem como tema central “Democracia e Direitos dos Povos e do Planeta”.

No texto convocatório do evento, seus organizadores reconhecem que o crescimento das agendas neofascistas, neoliberais e de retirada de direitos se aprofundaram tanto no Brasil como no resto do mundo. “Os movimentos de orientação fascista e antidemocrática”, acrescentam, “seguiram crescendo, não só nos espaços institucionais, mas também na base de nossas sociedades”. Diante dessa realidade, defendem que os “Fóruns Sociais, apesar de seus limites, seguem sendo espaços abertos, plurais, de encontros horizontais e debate democrático que já produziram iniciativas comuns e podem contribuir na formulação de propostas e na articulação de ações capazes de se opor ao domínio do capital e de todas as formas de dominação”.

Considerando as ideias que animaram a criação do Fórum Social Mundial e essa conjuntura atual, de avanço de grupos conservadores e de extrema-direita pelo mundo (em especial no Brasil), qual é mesmo a atualidade da agenda proposta pelo FSM? O Extra Classe propôs esse questionamento a quatro lideranças políticas e de movimentos sociais que participam do processo do Fórum desde 2001. Suas respostas mesclam um balanço do período e uma avaliação consensual a respeito da importância estratégica da manutenção e aprofundamento do debate e do espaço de articulação política global, proposto pelo FSM desde sua origem. 

Foto: Sul 21

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Tarso Genro: Fórum pode readquirir vitalidade na atual conjuntura
Prefeito de Porto Alegre quando da realização da primeira edição do FSM e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro acredita que “é exatamente neste momento que o Fórum pode readquirir vitalidade, desde que consiga construir – em dois níveis – uma agenda comum, reunindo uma pluralidade de forças políticas e sociais, dispostas a enfrentar a barbárie global que já está aí”.  O que os Estados Sociais tiveram de democrático e progressista, assinala Tarso Genro, nas suas diversas formas engendradas nas lutas do século passado (lutas pela igualdade, por direitos individuais e coletivos, de gênero e condição sexual, defesa da sanidade ambiental, da soberania nacional) estão sendo simplesmente implodidos no mundo inteiro.

Para ele, um primeiro nível de unidade diz respeito ao que chama de “questão democrática” e à falência do sistema liberal-representativo. Esse sistema, afirma ainda, está sendo “erodido pelo fascismo, tanto societal, impelido pelo mercado sem travas, bem como pela ação política orgânica das agências e think-tanks, privados e estatais, do capital financeiro global. “É a luta contra o fascismo e a defesa da soberania popular, nas suas diversas facetas, que sustenta a propriedade desta agenda”, sustenta o ex-prefeito da capital gaúcha.

O segundo nível de unidade a ser buscado pelo Fórum, acrescenta, é a produção de políticas comuns, em escala continental e global, “para retirar o Estado da tutela da burguesia financeira global, que é apoiada, internamente, no rentismo das altas classes médias”. Neste processo unitário, propõe, “as lutas cidadãs, das classes trabalhadoras e demais grupos e classes oprimidas de todo o mundo, devem além de rejeitar às reformas ultraliberais, opor a elas um novo sistema de proteção social, programas de criação de emprego, renda e atividade, no campo e na cidade, que reorganizem a vida comum”. O Fórum, conclui, pode produzir aí insumos importantes para serem socializados nas experiências de luta em todo o mundo.

Mauri Cruz (Guilherme Santos/Sul21)

Mauri Cruz (Guilherme Santos/Sul21)

Mauri Cruz: o Fórum nunca vai ser maior do que o estágio das lutas
Para Mauri Cruz, integrante da direção executiva da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), o contexto do Fórum está ajustado hoje ao contexto do mundo. Quando o FSM nasceu, em 2001, assinala, esse contexto era bastante distinto. “Tínhamos a ascendência do neoliberalismo como caminho único pós-queda do Muro de Berlim e fim da União Soviética. Naquele período, a polarização entre o capitalismo de mercado e uma agenda social com a participação do Estado foi considerada extinta, com a vitória definitiva do capitalismo que seria o único caminho. O Fórum nasce se colocando como contraponto a Davos e à lógica do mercado e também como uma alternativa às experiências socialistas. Talvez até por isso, a agenda ambiental tinha uma presença até discreta”, assinala.

Os primeiros fóruns organizados em Porto Alegre foram realizados em um contexto completamente diferente do atual, lembra Mauri. “Tínhamos apoio do governo do estado, de forma protagonista, e, a partir de 2005, passamos a ter apoio também do governo Lula. Depois, o Fórum saiu de Porto Alegre e creio que nunca mais encontrou esse ambiente em nenhum lugar. Quando ele tenta voltar para o Brasil, já havia um descompasso entre os movimentos sociais e a experiência de governo. Já não tinha aquela aderência antissistêmica que o Fórum representou na sua primeira etapa”.

Mauri Cruz considera que há duas agendas principais que permanecem atuais. A primeira é a da necessidade de radicalização da democracia. “O Fórum sempre buscou construir uma dinâmica de protagonismo real das pessoas no processo político e não meramente aquela lógica representativa, muito forte inclusive na lógica dos movimentos mais tradicionais”. A segunda questão, acrescenta, é a necessidade de uma transição pós-capitalista. “O Fórum nasceu anti-capitalista, querendo apontar alternativas a esse modo de vida insustentável do ponto vista social, econômico e ambiental. Essas duas agendas que geraram o Fórum se mantém muito vivas”. Para ele, a inovação do Fórum neste último período está ligada aos novos protagonismos que aos poucos estão ganhando mais espaço: mulheres negras, juventude negra de periferia, povos de movimentos de base, novas lutas urbanas. “Todos esses grupos estão se reencontrando no processo do Fórum, muito mais até do que os chamados movimentos tradicionais”, observa.

O diretor da Abong faz uma referência especial à agenda ambientalista que, no início do processo do FSM, não tinha tanto espaço. “Hoje essa agenda é muito forte. Praticamente toda a agenda ambientalista está no processo do Fórum. Então, não há dúvida alguma sobre a atualidade do FSM. O Fórum Social Mundial nunca vai ser melhor ou maior do que o estágio das lutas dos movimentos sociais. Nós vivemos hoje um processo de atomização dos movimentos. Então, é natural que o Fórum não consiga trazer todas e todos. Por outro lado, ele ainda é a única experiência internacional auto-gestionada, sem donos, sem estar sob a asa de alguma organização, com uma metodologia radicalmente horizontal, onde cada pessoa e cada coletivo consegue ter o seu protagonismo. Essa experiência e vivência de democracia radical é uma inovação que o Fórum trouxe desde o começo e que, na minha opinião, segue sendo a sua principal contribuição até aqui para a construção de um outro mundo possível”.

Bia Barbosa (Intervozes/Reprodução)

Bia Barbosa (Intervozes/Reprodução)

Bia Barbosa: é urgente uma rearticulação global de movimentos sociais
Jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Bia Barbosa também considera que as agendas pautadas e debatidas no processo e nas edições do Fórum Social Mundial seguem mais atuais do que nunca. Mais do que isso, defende, “faz-se urgente uma rearticulação global de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e ativistas diante da expansão de governos autoritários, sobretudo em nossa região, e do crescimento incessante da exploração capitalista por parte de corporações globalizadas”.

Para Bia Barbosa, a destruição do meio ambiente, os conflitos armados e a ameaça de uma nova guerra mundial, as violações e retiradas de direitos, a repressão e cerceamento às liberdades de expressão, de comunicação e artísticas, a vigilância em massa e extermínio das minorias e povos em resistência, o crescimento da desigualdade social, a privatização dos serviços públicos e mudanças brutais no mundo do trabalho compõem um cenário que só reafirma a emergência da construção de medidas que possam fazer frente a tais desafios.

“Medidas que serão operadas no local, mas que precisam ser articuladas internacionalmente se pretenderem ser efetivas, com todas as dificuldades que, sabemos, os movimentos sociais enfrentam neste momento em seus territórios. Mas precisamos avançar na retomada da construção de um movimento altermundista, ou as derrotas seguirão em curso”, defende a jornalista que participou do processo do FSM desde sua origem e integrou o grupo animador do Fórum Mundial de Mídia Livre.

Foto: Reprodução/Facebook

Foto: Reprodução/Facebook

Miguel Rossetto: recuperar e fortalecer a solidariedade e o internacionalismo
O gabinete do então vice-governador do Rio Grande do Sul, Miguel Rossetto, foi encarregado pelo governo Olívio Dutra de prestar apoio para ajudar na organização da primeira edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2001. “O FSM de 2001, realizado em Porto Alegre, num janeiro quente, abriu com esperança o século XXI”, lembra Rossetto. “Porto Alegre e o Estado do Rio Grande do Sul viviam tempos de movimentos populares fortes e governos democráticos e populares, que, com a liderança do PT, governavam  com a participação popular e com inclusão social, e o Orçamento Participativo se tornou uma referencia mundial. A ideia forte de que um outro mundo é possível foi a expressão das lutas sociais e políticas de resistência e denúncia contra o projeto capitalista neoliberal, um projeto de exclusão e miséria, autoritário, e produtor de guerras”, destaca o ex-vice-governador que mais tarde se tornaria ministro da Reforma e Desenvolvimento Agrário, no governo Lula.

Ao olhar para o presente e o futuro do processo em torno do FSM, Rossetto defende a necessidade de recuperar e fortalecer a solidariedade e o internacionalismo . “O Fórum conquistou uma força política e simbólica extraordinária e animou a luta social por anos, constituindo-se como um espaço de troca de experiências, de articulação política, de produção de políticas públicas comuns e de aprendizado. Também foi capaz de criar espaços de diálogos fortes entre as organizações populares e os partidos e parlamentares de esquerda, fortalecendo estratégias de luta em comum.  Viveu seu tempo. A continuidade desta experiência, se impõe”, defende.

Essa continuidade, sustenta ainda Miguel Rossetto, passa pelo fortalecimento dos laços de solidariedade e internacionalismo “na resistência  a um capitalismo  que ampliou sua força destruidora, e produz mais desigualdade e miséria,  joga milhões no desemprego e em condições de trabalho desumanas,  elimina os direitos sociais conquistados em décadas de lutas,  ataca as democracias e as liberdades de organização e opinião , estimula o racismo e o machismo e avança sem limites na destruição da natureza”.

Hoje, conclui, essa agenda do capital, “destruidora das democracias, das liberdades, dos direitos básicos para uma vida digna e da natureza é uma agenda da morte”. “É preciso libertar o futuro esperançoso e generoso, aprisionado neste presente distópico pelo neoliberalismo fascista. É preciso recuperar a agenda da vida, com a força necessária, com o aprendizado adquirido, com a solidariedade que nos une. Nunca ‘Um outro mundo é possível’ foi tão necessário.”

Um dos objetivos do Fórum Social das Resistências é transformar a identificação destas necessidades em mudanças concretas para o futuro do movimento iniciado em 2001, em Porto Alegre. “Estamos fazendo um fórum para nos reinventar. Daqui sai a construção do próximo Fórum Social Mundial”, resume Mauri Cruz. Essa reinvenção deve passar também pela pauta da reunião do Conselho Internacional do FSM, que ocorrerá dias 25 e 26 de janeiro na capital gaúcha.

Confira a cobertura completa do Fórum Social das Resistências

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